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Euclides e o berço de Os Sertões
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O terremoto de 2 de maio de 1982 em São José
2006-07-21 10:57:44

 

E a terra tremendo acomodou-se às cinco e meia do domingo, dia 2 de maio de 1982, madrugada escura de outono.
Acordado, no quarto que dá para a rua movimentada onde moro, na casa que sempre trepidou com o passar de pesados caminhões, nada estranhei. Para mim, era mais um pesado veículo. Quis identificá-lo pelo som. Não consegui. Pelo ruído e velocidade, pareceu-me uma carrocinha com aros de ferro, como as antigas que se dirigiam ao mercado, transformada numa chispa crepitante, puxada por alados animais. Depois de um estrondo, o veículo se arrastou, atritando pedras do calçamento.
Ouvi janelas abrirem-se nas imediações.
Minha mãe tirou o capacho do corredor, pensando em tempestade. Depois, estranhou o céu azul, estrelado. Dirigiu-se ao meu quarto.
— Você ouviu?... Um trovão engraçado!... Vinha da terra e corria dentro dela!... Tem estrelas no céu... Acho que foi em 1929, teve coisa parecida, só que as xícaras e as louças da cristaleira se encontraram, fazendo barulho... Será que foi um tremor de terra?... Você ouviu como os vidros balançaram?
— Que nada, mãe!... Foi um carro!... Aqui os vidros tremem sempre!
— Mas foi diferente!...
Horas depois, quando amanheceu, a cidade alvoroçada com o sismo conheceu aumentados fatos, vividos e imaginados...
Falava-se do vulcão de Poços de Caldas, enfurecido por lhe roubarem a rocha dinamitada, fazendo com ela um bolo amarelo, que alimenta usinas atômicas...
No momento do tremor, dona Lisa, que mora perto de uma tulha, pulou com o estranho levitar, pensando que um gambá estivesse levantando sua cama... Célia acordou o marido, dizendo-lhe de um novo bombardeio nas Malvinas... Maria gritou, pensando que lhe roubavam o trator... Os animais assustaram-se, e a gata Rebeca sujou-se com o estranho tremor...
É que os ribombos vindos das entranhas da terra apavoram, causando por vezes um terror pânico.
Lazinha teve uma crise de nervos, precisando chamar médico. Seu Ferrúcio, quando se deu conta, estava na rua, descalço, de óculos e de ceroulas... O velho italiano, rodeado de vizinhos, contava passagens de grandes terremotos, na sua terra, no sul da Itália. E falava uma estranha língua: o portuliano.
— Io non fico dentro de la casa!... Io voglio estare longe de tijoli, telhato, vigue... Io voglio vedere il céu... Sopra la mia cabeça, nada!...
E contava que Concheta, sua mulher, resfriada, não quis sair, ficando sob o portal, com porta aberta.
— S’il telhato cai, il portale protege!
Os moradores dos bairros, que dormem com o canto dos grilos e latidos ecoantes de cães presos, pularam da cama com o estrondo, que feriu o persistente silêncio.
As luzes dos terraços acenderam-se. Abriram-se portas e janelas. A rua movimentou-se. Foi uma festa na cozinha de dona Eneida, com reunião de vizinhos, tomando café e comendo crescidos sonhos, fritos na hora... O sol nascente, entrando na movimentada cozinha, ouviu até que o berço do nenê foi parar na sala...
Dona Flávia chorava, recordando-se do filme da televisão a que assistira na véspera. Para ela, aquele abalo era um intruso meteoro, que não se incendiara, caindo nas proximidades...
O jovem Mário, acordado nas duas madrugadas seguidas, era um irado espirituoso. Gritou:
— Que saco, gente!... Aqui não se pode mais dormir!... Ontem, alvorada, foguetório, piquenique... Hoje, esse tremor de merda... Só chamando o Capitão Gay (fazendo alusão ao novo personagem de Jô Soares). Capitão Gay!... Capitão Gay!...
Muitos, como eu, acostumados com barulho e trepidação, continuamos na cama, esperando o estranho veículo passar... E nem percebemos o espreguiçar da terra, que se acomodava, na madrugada fria e estrelada.
9/5/1982

 
RODOLPHO JOSÉ DEL GUERRA
 
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