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Euclides e o berço de Os Sertões
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Viver é perigoso!
2006-08-02 12:28:36

 

(Com licença de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha)

 

— Então isto é o sertão?

— Sabia não? Aqui o sertão é passado, ficou nos antigamentes...

— Mas é cidade tão pequena ...

— O senhor tolere: isto é o interior. Mas sertão, aqui, só dentro da gente. Moço veio tarde,  aqui os costumes tresmudaram. De vero, verdadeiro, sobrou foi nada. Pouquinho de nada restou.

— Tem diferença?

— Tem muita. Lugar sertão se divulga: é onde pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador. Sertão é lugar onde manda quem é forte, com as astúcias. No sertão o senhor sabe: Deus mesmo, quando vier, venha armado!

— Mas o sertão de todo se impropriou à vida, referto de emboscadas.

— O senhor atente: sertão se sabe só por alto. Ou ele ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro muito desastroso. O sertão não chama ninguém às claras; mas, porém se esconde e acena. Mas o sertão de repente se estremece, debaixo da gente...

— Como assim?

— Moço não tem conhecimento? Não vive cheio de doutoramentos? Pois atente: sertão: é dentro da gente. Por isso, sertão não é malino nem caridoso... ele tira ou dá, ou agrada ou a marga, ao senhor, conforme  o senhor mesmo.

— Disso sei bem. Filho lá dos sertões, nas múmuras florestas, nesses berços de luz, de aromas, de giestas, eu prefiro antes as catas desoladoras do deserto.

O homem simples do interior no outro acreditou, num abrir e fechar de ouvidos.

— Senhor me entende? Porque é pela língua que começa a confusão.

— Isso é bem verdade. Os fortes não destroem os fracos pelas armas, esmagam-nos pela civilização!  Mas esta cidadezinha já é uma grande prova de que a civilização avançará nos sertões, impelida por essa implacável “força motriz da História”.

— Moço tem razão. Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento, cobra desfecha desferido, dá bote, se deu...

— Mas todos nós estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos.

— Civilização carrega no lombo a pobreza. E pobre é que nem buriti...

— Ora, por quê?

— O buriti é das margens. Ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam. A cidade primeiro me produz, depois me engole, depois me cospe do quente da boca...

— Isso é o progresso... Tão destemperados andam os homens e os tempos!

— É... Viver é muito perigoso!

— Na capital há sempre uma legião inumerável de doutores desempregados, que entope as escadas das secretarias. Vê se concebe, de momento, com o melhor de sua fantasia, o quadro de uma espécie de Encilhamento da Miséria. Há em cada caracol das escadas que levam aos gabinetes dos ministros uma espiral de Dante.

— Sei não... que é isso?

— Um quadro semelhante ao do purgatório. Pessoas que aguardam conseguir uma vaguinha no céu.

— Senhor desconhece? A gente viemos do inferno – nós todos – compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia.

— Ora, isso é conversa!  É que vocês conhecem apenas os reflexos da vida civilizada!

— Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros – as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Já falei pro senhor: Viver é muito perigoso.

— É preciso que saiam dessa fase religiosa de um monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, que faz a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta. Sem a sobrecarga intelectual e moral de uma civilização, o desequilíbrio é inevitável!

— Mas o senhor me diga: o senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?... Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu, eu sei.

— É necessário que mesmo o interior e o sertão sigam o grande caminho da civilização brasileira!  Essa diferença entre capital e interior se explica: tivemos, de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço de nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo: o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa.

— Nisso o moço está recoberto de razão. As coisas, neste país, estão do jeito que elas querem, porque do jeito que nós queremos elas não estão. Digo sempre aos meus compadres: sertanejos, mire, veja: o sertão é uma espera enorme.

— Mesmo assim, eu procuro, nesta hora, cidades que se ocultam majestosas na tristeza solene do sertão. Mas sou minoria. Mas a muitos intelectuais o verdadeiro Brasil aterra: trocam-no de bom grado pela civilização mirrada que os acotovela na rua do Ouvidor. Sabem dos sertões pouco mais além da sua etimologia rebarbativa, desertus; e, a exemplo dos cartógrafos medievos, ao idealizarem a África portentosa, podíamos escrever em alguns trechos dos nossos mapas a nossa ignorância e o nosso espanto.

— O senhor atente: o príncípio pior de toda bobagem é um se prezar demais o próprio de sua pessoa.

— Você é inteligente! O que de mais há nas grandes cidades, além do consumismo desenfreado e a guerra pelo dinheiro, é o terrível jogo de vaidades. É a indiferença pelo outro. Até mesmo nojo por aquele pobre diabo sujo e maltrapilho, sem-teto, sem emprego, sem vida digna, de quem ninguém ousa se aproximar...

— Nojo é invenção do diabo pra se impedir que se tenha dó.

— Mas sabe, ainda tenho a esperança de que em breve os brasileiros se enjoem dessas velharias enganadoras que por si só empestam uma civilização inteira!  E aí, então, surjam, em grande maioria, os homens superiores à sua época. E o nosso país comece a caminhar na justiça, na igualdade e na fraternidade. Que a miséria seja extirpada de nosso meio, que todo cidadão tenha orgulho de ser brasileiro.

— O senhor assuntou certo o que há de ser: aprender a viver é que é o viver, mesmo!

 

 

(P.S.: O leitor releve, mas após três meses entre Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, não resisti à brincadeira, com toda a seriedade possível. Porque o leitor mire, veja: todo abismo é navegável a barquinhos de papel!)

 

 
Maria Olívia Garcia Ribeiro Arruda
 
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