17 de março de 1934. Saio amargurado do Rio. Já estou há muito tempo neste trem que trepida, espreme-se, estica-se, gemendo nas curvas, apitando apitos longos, expelindo centelhas que furam roupas e encarvoam rostos. Meu pensamento está no Rio. No escritório de assuntos escolares do amigo Oscar de Almeida, conheci o engenheiro Abdiel Cavalcante Braga à procura de professores para o seu ginásio, no interior de São Paulo. Falava num ginásio modelo. — São José do Rio Pardo? Onde fica?... É muito longe... Segundo Dr. Abdiel, minha permanência na sua escola seria de seis meses. O bom homem entendeu que me era difícil, com pouco mais de vinte anos, recém-formado pelo Pedro II, trocar o Rio, os amigos, os bailes, as praias... por uma provinciana cidade do interior: São José do Rio Pardo. O trem apita insistentemente. Desembarco em São Paulo. Informo-me sobre trens e horários da Mojiana. Pernoito, num hotelzinho, perto da estação do Brás. É manhã do dia 18. Baldeação em Campinas. Todos correm. Corro. Entro num dos vagões da Mojiana. E o trem trilha trilhos, parando em pequenas movimentadas estações. Em Cascavel, percebo o separar dos vagões... — Como? Estou em trem errado? O guarda procura me acalmar, explicando-me que, em Campinas, eu entrara em vagões de Poços e não de Passos... Desembarco na pequena Jerivá. Retorno a Cascavel num trem leiteiro. Meu dinheiro se esgota. É preciso esperar o noturno, que me levará a São José. O trem corre e grita, com sua cabeleira de fumaça esvoaçante ao vento. Procura o dia, tentando safar-se da noite escura e imensa. Pára. Mata a sede nas estações. Continua, cuspindo fagulhas incandescentes, que riscam de fogo o negro da madrugada, queimando guarda-pós, ou apagando-se contra os vidros fechados dos vagões. — Casa Branca! Baldeação! – grita o guarda, com uniforme de casimira azul, com brasão dourado, bordado na gola e no quepe. Estou bem acordado, ligado às informações. — Itobi!... Vila Costina!... São José do Rio Pardo! Quatro e meia. Na madrugada, a estação fervilha de passageiros, carregadores, vendedores, carrinhos com cargas... O trem pára. Vejo o calmo Dr. Abdiel entre pessoas apressadas. Desço. Entrego as malas a um carregador. Traspassamos os grandes portões de ferro. Muita gente dorme nos bancos do saguão. As luzes fracas mostram uma praça vazia, deserta. Subimos ladeiras para os altos da cidade, conversando sobre São José, sobre o ginásio, sobre a viagem... A praça da igreja tem terra e pedregulho, tem jardim de muitas árvores, tem barraquinhas, tem relógio na única torre... Quinze para às cinco! Descendo um pouco, além do jardim, paramos diante de um sobradão majestoso, enorme, com portas e janelas de madeira maciça, mármore nas soleiras, e no saguão, e rendilhadas grades de ferro nas sacadas. — Este é o ginásio!... O prédio é do Juca Soares... Foi construído pelo seu sogro, o Honório Luiz Dias, no apogeu do ciclo do café... – diz-me o Dr. Abdiel. Adentramos. Mostrou-me o quarto de dormir. Desejou-me um bom dia e uma rápida adaptação. Despediu-se e foi para sua casa, alugada nas imediações. Os dez meninos do internato e dona Jovita, a encarregada das refeições e da limpeza, dormem. No silêncio do dia que nasce, desfaço minha mala. Uma carrocinha passa, com roda de ferro roendo pedregulho. Abro a janela. O verdureiro assobia... Não tenho sono. Penso no Rio de Janeiro... Cinco e meia! Ao longe ouço uma banda. Penduro uma folhinha à parede: 19 de março de 1934. Clareia. Chego à janela. O vermelho do nascente reflete-se nos vidros das janelas dos casarões vizinhos. O som alegre do dobrado aumenta, aumenta e aproxima-se. A banda aponta na esquina. Desce a rua onde estou. Estou assustado, pensando ser homenagem para mim. — Será? Será que no interior costuma-se receber professor com música? A banda avizinha-se. Pára diante da minha janela. Nesse momento de indecisão, entre o permanecer e o entrar, aparecem os dez meninos e dona Jovita, atraídos pela banda. Aproximo-me e apresento-me. Conhecemo-nos. Quase todos são filhos de fazendeiros das redondezas... A banda toca sem parar. Os músicos viram-se à direita, dando-me às costas, com olhares fixos no casarão colonial de grandes portas e janelas, que se abrem. Outras janelas se abrem. A alegria da banda e do dia bonito que nasce põe emoção nos rostos ainda sonolentos de muitas meninas com papelotes e de muitos adultos semi-escondidos. Percebo um dia festivo. Dona Jovita e a meninada contam-me tudo de uma só vez: das grandes festas religiosas e do aniversário da cidade que se iniciavam naquele 19 de março, sem aulas; da festa movimentada, com barraquinhas e leilões de gado. Meu susto da homenagem passou... A banda, que acordou o povo, veio saudar o fazendeiro vizinho, Saint-Clair Junqueira, um dos grandes festeiros da quermesse da igreja... Seis horas. Muitos rojões assustam os pombos e pardais dos beirais e da rua. O Luiz Pedro tosse muito. Sua grande loja de esquina está aberta. — Preciso ficar!... Eu prometi!... Tentarei passar seis meses longe do Rio... E o professor Vinício Rocha dos Santos ficou... 4/5/76.
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