Ao professor Dr. Luiz Roncari, da USP, autor de “O Brasil de Rosa”, por instigar-me à leitura profunda de “Grande sertão: veredas”;
Ao historiador-escritor professor Nicola Costa, por haver revelado para mim a beleza da literatura roseana e por me encorajar na travessia destas veredas.
... De repente, acompanhando a celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desconhecidos singulares, que ali estão – abandonados – há três séculos.1 Esta foi a impressão de Euclides ao se deparar com aqueles “rebeldes monarquistas” que o governo dizia precisar combater, para que não ameaçassem a estabilidade da República ainda infante. Eram, na verdade, pobres sertanejos que apenas tentavam sobreviver às agruras da terra e à miséria, e haviam encontrado em Antônio Conselheiro um líder, uma vez que o governo se esquecera deles.
Anos depois, na Amazônia, Euclides vê uma natureza ainda em formação, como uma página do Gênesis, mas que, em sua grandiosidade, acaba isolando o seringueiro do resto da civilização. E ali, mais uma vez, encontra uma população esquecida, abandonada à própria sorte.
Essa questão do isolamento a que ficou relegado o homem do sertão brasileiro também se faz presente em Sarapalha, de Guimarães Rosa, conto que gira em torno de dois personagens – os únicos que restaram no lugarejo abandonado, mais a mulher que lhes servia – cujo organismo já estava minado pela maleita.
O objetivo desta análise é estabelecer o cruzamento de trechos desses dois grandes escritores, mostrando a presença do sertão como local de isolamento e doenças. Para isso, este estudo se baseará na interpretação de trechos de Os sertões e de À margem da História, de Euclides da Cunha e do conto Sarapalha, de Guimarães Rosa.
Euclides tenta explicar, em Os sertões, as causas e as conseqüências desse insulamento do sertanejo do nordeste do Brasil, “ali esquecido há três séculos”.
Em primeiro lugar, vêm as causas históricas (FARIA, 1998), que revelam a maneira pela qual foi ocupado o território brasileiro, particularmente na região cortada pelo Rio São Francisco, onde predominou a miscigenação entre o índio e o branco oriundo de São Paulo, que para lá seguia com as bandeiras. Outras causas históricas foram as sesmarias e a carta régia de 1701, proibindo o comércio livre entre nordeste e sul do Brasil. Esses fatores somados ao meio físico, de difícil integração, atuando como “isolador étnico”, formam a teoria de Euclides.
Obviamente, três séculos de isolamento social mostram características antropológicas e sociais bastante visíveis. Se de um lado temos o imprevisto predomínio da “raça fraca”, que seria o cruzamento do branco com o índio, por outro lado temos o fato de que esse isolamento impediu todo o contato com as transformações que ocorriam no litoral, que se “civilizava”, copiando constantemente os hábitos europeus.
Conforme Euclides, o sertanejo construiu uma sociedade à margem desses influxos de progresso, atada ainda a práticas sociais e culturais consideradas atrasadas, o que não possibilitava a seus integrantes a compreensão ou o diálogo com a forma mais avançada de civilização.
Mas, ao observar aquele agrupamento social de Canudos, o escritor percebe que mesmo as teorias científicas mais avançadas da época não podiam explicá-lo, portanto só lhe restava uma atitude: a observação empírica, apreendendo-a por um prisma diverso, bem mais amplo do que o científico. É o que vemos em Os sertões, como na descrição do sertanejo, por exemplo. Até mesmo Antônio Conselheiro, “exemplo vivo de atavismo social”, é apresentado como resultado desse isolamento de uma sociedade divorciada da civilização, atada ainda a formas primitivas de vida. O seringueiro é visto, por Euclides, da mesma forma, ou seja, é o resultado de um povo miserável, que para fugir da seca nordestina aceita o trabalho no seringal, mas que lá é abandonado e explorado como escravo pelo patrão.
Já Guimarães Rosa, em Sarapalha, não tem essa preocupação de explicar as origens científicas do isolamento, apenas relata o fato:
Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: casas, sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozinha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu.
[...]
Ela veio de longe, do São Francisco. Um dia, tomou caminho, entrou na boca aberta do Pará, e apegou a subir. Cada ano avançava um punhado de léguas, mais perto, mais perto, pertinho, fazendo medo no povo, porque era sezão da brava – da “tremedeira que não desamontava” – matando muita gente. 2
Ou seja, em poucas palavras ele explica ser a malária sem perspectiva de cura a culpada pelo abandono da cidade. As terras haviam desvalorizado, muitos habitantes do local haviam morrido, a solução era deixar o local, abandoná-lo a quem quisesse se arriscar. E o texto vai mostrando o avanço da sezão no mesmo ritmo da natureza:
Aí a beldroega, em carreirinha indiscreta – Ora-pro-nobis! Ora-pro-nobis! – apontou caules ruivos no baixo das cercas das hortas, e, talo a talo, avançou. Mas o cabeça-de-boi e o capim-molambo, já donos da rua, tangeram-na de volta; e nem pôde recuar, a coitadinha rasteira, porque no quintal os joás estavam brigando com o espinho-agulha e com o gervão em flor. E, atrás da maria-preta e da vassourinha, vinham urgentes, do campo – oi-ái! – o amor-de-negro, com os tridentes das folhas, e fileiras completas, colunas espertas, do rijo assa-peixe. [...] A gameleira, fazedora de ruínas3 , brotou com o raizame nas paredes desbarrancadas. Morcegos das lapas se domesticaram na noite sem fim dos quartos, como artista de trapézio, pendentes dos caibros. E aí, então, taperização consumada, quando o fedegoso em touças e a bucha em latadas puderam retomar seu velhíssimo colóquio, o povoado fechou-se em seus restos, que nem o coscorão cinzendo de uma tribo de marimbondos estéreis.4
Essa visão cósmica da natureza, da qual o homem é apenas uma partícula, é bem mais evidente nos sertão, como afirma Euclides da Cunha:
O homem dos sertões – pelo que esboçamos – mais do que qualquer outro, está em função imediata da terra. É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as tendências pessoais como que se acolchetam às vicissitudes externas, e deste entrelaçamento resulta, copiando o contraste que observamos entre a exaltação impulsiva e a apatia enervadora da atividade, a indiferença fatalista pelo futuro e a exaltação religiosa. 5
E o narrador mostra que, mesmo naquele lugar totalmente abandonado, ainda se encontram moradores resistentes, no meio do brejo, à beira-rio, em condições insalubres. E antes mesmo de apontar quem são os remanescentes do local, fala sobre o mal que afastara dali os habitantes:
O mosquito fêmea não ferroa de-dia; está dormindo, com a tromba repleta de maldades, somente as larvas, à flor do charco, comem-se umas às outras, brincando com as dáfnias e com as baratas-d´água; as touceiras cheirosas do capim-gordura espantam para longe a urutu-coatiara; a jararaquinha-da-barriga-vermelha é mansa, não morde; e essas outras cobras claras, que passam de cabeça alçada, em nado de campeonato, agora, mesmo que queiram, não poderão morder. Mas é bom não pisar forte naquelas esponjas verdes, que costuma haver uma cisterna profunda, por baixo das folhas dos aguapés.6
A narração utiliza-se da natureza para revelar o esquema de dominação na sociedade. Ali cessara a competição inerente à sociedade capitalista; a dominação, antes exercida pela “urutu-coatiara”, metáfora utilizada para significar o mais poderoso do lugar; nem mesmo os que podiam sustentar apenas a aparência – “é mansa, não morde”. Há, também, uma crítica implícita à força militar: “esponjas verdes”, contra as quais melhor seria ter sempre cautela.
Utilizando-se de um foco narrativo semelhante ao de Euclides no início de Os sertões, isto é, o narrador-câmera, a descrição vai mostrando ao leitor onde se localizam aqueles sobreviventes que não abandonaram as terras:
É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda, denegrida e desmantelada; uma cerca de pedra-seca, do tempo de escravos; um rego murcho, um moinho parado; um cedro alto, na frente da casa; e lá dentro, uma negra, já velha, que capina e cozinha o feijão. Tudo é mato, crescendo sem regra; mas, em volta da enorme morada, pés de milho levantam espigas, no chiqueiro, no curral e no eirado, como se a roça se tivesse encolhido, para ficar mais ao alcance da mão.
Fazendo uma leitura da camada mais profunda desse texto, percebemos que ele revela, em meio aos escombros das coisas construídas pelo homem – “moinho parado”, “cerca de pedra-seca”, “rego murcho” -, em meio ao mato que crescia “sem regra”, ao redor da casa ainda havia vida, representada pelos “pés de milho” que “levantam espigas”: é a natureza que continua o seu ciclo, no curral, no chiqueiro, no eirado. As plantas e os animais seguem o seu ciclo vital. Mas o espaço do homem encolheu: só há vida em torno da casa grande. O cedro, alto, à entrada da casa, é símbolo de incorruptibilidade, característica inerente ao caráter dos homens que ali habitam.
E como parte da paisagem, os dois primos são introduzidos no conto: “E tem também dois homens sentados, juntinhos, num casco de cocho emborcado, cabisbaixos, quentando-se ao sol.” Esses personagens aparecem como um detalhe no conjunto descrito, o que fica reforçado pelo advérbio “também”. Estão numa espécie de “sobrevida”, apenas aguardando o desenlace final da moléstia que já os atacara e os mantém em estado de permanente vigília, entremeada por delírios da febre. Não vivem: vegetam, apenas. “Primo Ribeiro dormiu mal e o outro não dorme quase nunca. Mas ambos escutaram o mosquito a noite inteira. E o anofelino é o passarinho que canta mais bonito, na terra bonita onde mora a maleira”. O “pássaro”, na verdade, é o mosquito transmissor da malária, o que os seduz, e os leva ao delírio da febre alta.
O narrador mostra a confusão entre realidade e sonho, quando um deles reclama do zumbido do mosquito e o outro responde que era o quinino em excesso que provocava aquilo.
Assim como Euclides empresta à natureza sinais premonitórios do que estava por acontecer, como a degola dos presos, ou o massacre de Canudos, Guimarães coloca nos insetos as fraquezas da fêmea, pivô de toda a tragédia da história:
Enquanto as fêmeas suga, todos os machos montam guarda, psalmodiando tremido, numa nota única, em tom de dó. E uma a uma, aquelas já fartas de sangue abrem recitativo, esvoaçãntes, uma oitava mais baixo, em meiga voz de descante, na orgia crepuscular. 7
É a antecipação do fato que vem mais adiante: a traição da mulher, a revelação do amor que o primo também sentia por ela.
Esses dois homens, que ali permaneceram apesar de todas adversidades, lembram bem as palavras de Euclides: “Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a estóico.”8
Aos sertanejos de Minas também a malária e a solidão não apavoram, apenas acrescentam um sofrimento a mais em vidas já tão difíceis. E, assim como o sertanejo de Canudos, os de Sarapalha também alimentam “a todo o transe esperanças de uma resistência impossível.”9 É, ainda, situação semelhante à daquele que, na Amazônia, “realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se”10 , ou seja, o seringueiro abandonado em meio a uma natureza que o impossibilita de fugir e à mercê de exploradores que o manterão em um trabalho escravo até o final da vida. Ali, em meio à selva,
“cria-se uma nova sorte de exilados – o exilado que pede o exílio, lutando por vezes para o conseguir, repelindo outros concorrentes, ao mesmo passo que vai adensando na fantasia alarmada as mais lutuosas imagens no prefigurar o paraíso tenebroso que o atrai.” 11
E os dois personagens de Guimarães mostram que a civilização realmente os abandonara de todo: até mesmo o médico desistira da luta contra a doença:
[...] se alembra de quando o doutor deu a despedida p´ra o povo do povoado? Foi de manhã cedo, assim como agora... O pessoal estava todos sentado nas portas das casas, batendo queixo. Ele ajuntou a gente... Estava muito triste... Falou: - “Não adianta tomar remédio, porque o mosquito torna a picar... Todos têm de se mudar daqui... Mas andem depressa, pelo amor de Deus!” ... – Foi no tempo da eleição de seu Major Vilhena... Tiroteio com três mortes...
Mais uma vez encontramos, nos implícitos, a crítica às atitudes dos políticos: em meio a uma epidemia, o jogo do poder ainda era o que importava: estão presentes repressão e morte, a política “de cabresto” tão comum pelos sertões afora, presentes na figura do Major Vilhena e no “tiroteio com três mortes”.
E a esse homem resistente do sertão mineiro também podemos dirigir o mesmo comentário do narrador de Os sertões: “Resignado e tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem, nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas.”12
Em Sarapalha, além do isolamento social e da doença, está presente a tragédia pessoal, a dor da traição e do abandono da esposa: “Se ela chegasse, até a febre sumia...” As lembranças trazidas com a fraqueza e a febre afloram no desabafo ocorrido após tantos anos de convivência com o outro, tempo em que a dor ficara silenciada no fundo da alma:
Eu hoje cansei de sofrer calado... [...] Chorei no escondido. [...] Ela foi uma ingrata, não foi, Primo Ribeiro? A gente toma amor até à criação, até aos cachorros. E ela... [...] Só três anos de casados! ... Não tenho raiva dela... Não tenho não. Ainda ficava mais triste, se soubesse que ela andava penando por aí à-toa. Agora, o tal, esse... Mesmo doente e assim acabado, eu ainda havia de...
Além do isolamento social, há, também, os valores da sociedade patriarcal, a questão da “honra” do macho que deve ser preservada a qualquer custo, e que contribui para a tragédia e a infelicidade, mesmo ali no ermo do sertão:
Eu não podia ficar com ela mais... [...] Tive vergonha dos outros... Todo-o-mundo já sabia... E, ela, eu tinha obrigação de matar também, e sabia que a coragem p´ra isso havia de faltar... Também, nesse tempo, a gente já estava amaleitados, pois não estava? ... Foi bom a sezão ter vindo.
Em Sarapalha a malária se apresenta como uma espécie de lenitivo para o sofrimento do sertanejo, assim como ela é, em Um clima caluniado, de Euclides, a liberdade para o seringueiro: “O impaludismo significa-lhe, antes de tudo, a carta de alforria de um atestado médico.”13
É neste ponto que esta análise se concentrará: a doença como algo inevitável para o homem do sertão, relegado ao abandono dos governantes. E Guimarães Rosa faz, neste conto, um retrato impressionante das seqüelas deixadas no homem pela malária. Este enfoque é interessante, pois nos ajuda a refletir um pouco mais na situação do seringueiro e na própria biografia desse grande lutador pela sobrevivência, que foi Euclides.
Em À margem da História, afirma o autor, sobre o seringueiro:
Aquele tipo de lutador é excepcional. O homem de ordinário leva àqueles lugares a imprevidência característica da nossa raça; muitas vezes carrega a família, que lhe multiplica os encargos; e quase sempre adoece, mercê da incontinência generalizada.
Ali, na Amazônia, o homem deve ser forte para sobreviver, pois a malária e outras doenças são inevitáveis para ele, tão distante da civilização. “O homem envelhece é do que não agüenta viver”, diz um personagem de G. Rosa.14 Euclides também mostra que no sertão amazônico o seringueiro também sucumbe, em pouco tempo, na mórbida impassibilidade de um felá desprotegido dobrando toda a cerviz à servidão completa.” 15 Envelhece cedo, morre prematuramente, pois o regulamento dos seringais
... é impiedoso: “Qualquer freguês ou aviado não poderá retirar-se sem que liquide todas as suas transações comerciais...” Fugir? Nem cuida em tal. Aterra-o o desmarcado da distância a percorrer. Buscar outro barracão? Há entre os patrões acordo de não aceitarem, uns os empregados de outros, antes de saldadas as dívidas, e ainda há pouco tempo houve no Acre numerosa reunião para sistematizar-se essa aliança, criando-se pesadas multas aos patrões recalcitrantes. [...]
Não o ligam sequer à terra. Um artigo do famoso “Regulamento” torna-o eterno hóspede dentro da própria casa. [...]
Daí o quadro doloroso que patenteiam, de ordinário, as pequenas barracas. O viajante procura-as e mal descobre, entre os sororocas, a estreitíssima trilha que conduz à vivenda, meio afogada no mato. É que o morador não despende o mais ligeiro esforço em melhorar o sítio de onde pode ser expelido em uma hora, sem direito à reclamação mais breve. 16
É necessário fazer algumas importantes observações a respeito desse trecho. A primeira é que esse regulamento citado por Euclides ainda pode ser encontrado no jornal Cruzeiro do Sul, do Estado do Acre, de 1904. A violência e a arbitrariedade dos representantes dos poderes constituídos era uma constante, conforme lemos no jornal Acreano, de 31 de janeiro de 1904, em uma coluna cujo título é: Polícia que mata! Transcrevemos abaixo um trecho dessa coluna:
MORTOS E FERIDOS – ASSASSINATOS REVOLTANTES – SCENAS DE CAFRES – SITUAÇÃO HORRÍVEL!
Ainda sob a dolorosa impressão que sussurra, como interminável ai de terror espalhado pela monstruosa tragédia que teve por teatro a cidade do Xapury, continuamos, linhas abaixo, a falar sobre os acontecimentos [...]
A verdade que se quer encobrir para tirar proveito dos vivos porque dos mortos nada se pode esperar, será aqui posta em relevo, aparecerá sublime, embora vestida de crepe, entre os dobres da tristeza pública que é a mais bela de todas as pompas fúnebres.
E a reportagem comenta o assassinato de 4 pessoas do local, “homens de valor, chorados cidadãos, caídos exangues sobre o solo acreano que tanto dignificaram”, e acusa os jornais Correio do Acre e Folha do Acre de defenderem os assassinos. Em um outro exemplar do mesmo jornal (cuja data não é possível ver, devido ao estado de deterioração do periódico), ainda na coluna Polícia que mata!, há o relato do assassinato de João Paulo Bandeira, comandante do vapor Aymoré, de um tabelião e mais dois empregados do comércio daquele local que, por fazerem uma serenata, foram advertidos pelo delegado Achilles Peret para encerrar a cantoria. Como se justificaram, dizendo que eram pessoas “de responsabilidade e que não estavam praticando atos ilegais”, o delegado, durante a noite, preparou-lhes uma emboscada, na qual foram abatidos logo ao amanhecer.
É ainda em Acreano, datado de 15 de fevereiro de 1904, que encontramos a seguinte notícia:
Benvinda Barroso C. Ribeiro, professora da escola “Euclides da Cunha”, em Xapury, comunicando que, em virtude da agitação que reina naquela cidade, motivada pelo bárbaro assassinato do Cel. Manoel de Oliveira, no seringal “Nova Esperança” e pelos boatos alarmantes de ataques a mesma cidade, deliberou-se suspender as aulas até que se restabeleça a ordem pública [...]
Essa violência também é inerente ao divórcio entre sertão e civilização. Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa também mostra essa sociedade em que o “capanga” é uma espécie de justiceiro que apenas realiza o que lhe é ordenado:
Olhe: Jagunço se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor. Assim sendo uma sabedoria sutil, mas mesmo sem juízo nenhum falável; o quando no meio deles se tranca, um ajuste calado e certo, com semelho, mal comparando, com o governo de bando de bichos – caititu, boi, boiada, exemplo.17
Para os que disseram haver Euclides exagerado, o texto Um homem de caráter, transcrição do discurso proferido por Fran Paxeco, na Escola Rodrigues Alves, em 3 de maio de 1906, na inauguração da foto do Dr. Gregório Thaumaturgo de Azevedo, serve como contestação:
Euclides Cunha, o possante publicista dos Sertões, que há pouco visitou a Região Acreana, pintou admiravelmente a mesologia ética destas plagas em duas sintéticas passagens de entrevista que teve com um redator do Jornal do Commercio, do Rio, em 11 de janeiro do corrente ano.
[...] “À entrada de Manaus existe a belíssima Ilha de Marapatá – e essa ilha tem uma função alarmante. É o mais original dos lazaretos – um lazareto de almas!
Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência. Meça-se o alcance deste prodígio da fantasia popular. A ilha que existe fronteira à boca do Purus perdeu o antigo nome geográfico – chamava-se Ilha da Consciência, e o mesmo acontece a uma outra, semelhante, na foz do Juruá. É uma preocupação: o homem, ao penetrar nas duas portas que levam ao paraíso diabólico dos seringais, abdica às melhores qualidades morais e fulmina-se a si próprio, a rir, com aquela ironia formidável. [...]
“Quando estava em Manaus, antes da subida ao Purus, ouvi certa vez a um colega esta frase golpeante: - No Acre, como em toda a parte, o homem é uma formação do meio: o meio é detestável ; o homem, ignóbil . É, felizmente, erradíssimo o conceito. De fato, o seringueiro é um degradado que se degrada. Longe do solo nativo, que deixou num lance de aventureiro, o próprio afastamento e a grande cópia de desilusões que o alteiam – acabam por transmudá-lo. Obliteram-se-lhe mesmo os mais fortes e generosos sentimentos. Mas isto está longo de ter a generalidade e a fixidez de um atributo social. É um acidente, digamos, um espasmo, uma doença aguda, mas transitória - e provém quase todo da mais falsa, da mais revoltante e da mais criminosa organização de trabalho que jamais engenhou o mais absorvente egoísmo.”
Tudo isto, que a sagacidade observadora de Euclides Cunha desenhou magistralmente, já o coronel Thaumaturgo, com a sua incomparável perspicácia no trato das cousas públicas, havia visto em 1904.18
Euclides também faz críticas aos seringueiros, que não aproveitam a terra: “É que o morador não despende o mais ligeiro esforço em melhorar o sítio de onde pode ser expelido em uma hora, sem direito à reclamação mais breve.” Aqui é preciso esclarecer que, em leituras de obras de escritores acreanos, como Coronel de barranco, de Cláudio de Araújo Lima, vemos que o proprietário do seringal não permitia a nenhum de seus homens a plantação ou criação de animais para subsistência, pois isso acarretaria em menos horas de trabalho na colheita do látex e – principalmente – diminuiria as dívidas desses homens no armazém do patrão.
Em À margem da História ainda encontramos muitas referências ao abandono em que se encontrava, na época, a região amazônica, com exceção de Manaus e Belém. Há títulos como “Rios em abandono”, no qual ele afirma que “O Purus é um enjeitado”, que precisa ser incorporado ao progresso do resto do país. Assim como o rio, o povo ali também é relegado ao esquecimento, daí a “urgência de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada [...]19 “ “Não há leis. Cada um traz o código penal na rifler que sobraça, e exercita a justiça a seu alvedrio, sem que o chamem a contas.”20
Nordestinos de vários estados, ao fugir da seca, ali chegaram e estavam “amansando o deserto”.21 Quando buscavam o litoral do nordeste, eram enviados pelos governantes, por medida de “higienização”, em vapores que iam à Amazônia – “vastíssima, despovoada, quase ignota – o que equivalia a expatriá-los dentro da própria pátria”. E uma vez lá entregues, “cessava a intervenção governamental.”22
Pouco importava aos representantes da nação saber se aqueles homens sobreviveriam ou não. Como hoje, da mesma forma, não se importam com tantos sem-teto, sem-terra, sem-cidadania... É um só desígnio que esses pobres homens podem esperar desses governantes: que os banidos da sociedade levem consigo “a missão dolorosíssima e única de desaparecerem...”
A DOENÇA
COMO ESTIGMA
Em Sarapalha, os dois primos vão mostrando claramente, no desenrolar do conto, o sofrimento de quem contrai a malária:
- Olh´ele aí... o friozinho nas costas...
[...]
E a maleita é a “danada”...
Primo Argemiro não pode olhar muito: ficam-lhe muitas garças pulando, diante dos olhos, que doem e choram, por si sós, longo tempo.
Primo Ribeiro parece um defunto – sarro de amarelo na cara chupada, olhos sujos, desbrilhados, e as mãos pendulando, compondo o equilíbrio, sempre a escorar dos lados a bambeza do corpo. Mãos moles, sem firmeza, que deixam cair tudo quanto ele queira pegar. Baba, Baba, cospe, cospe, cospe, vai fincando o queixo no peito; e trouxe cá para fora a caixinha de remédio, a cornicha de pó e mais o cobertor.
Nos recônditos da floresta amazônica, a “decadência espiritual subitânea e profunda” parece a Euclides a maior doença de todas, “de onde as demais se derivam como exclusivos sintomas.”23 Lá se formam “sociedades precárias de perpétuos convalescentes jungidos a dietas inflexíveis e vivendo através das fórmulas inaturáveis dos receituários complexos.”24
Para lá foram “todos os fracos, todos os inúteis, todos os doentes e todos os sacrificados expedidos a esmo, como o rebotalho das gentes, para o deserto”, como numa “seleção natural invertida”. “A multidão martirizada, perdidos todos os direitos, rotos os laços da família, [...] ia, com os seus famintos, os seus febrentos e os seus variolosos, em condições de malignar e corromper as localidades mais salubres do mundo.”25 A alimentação do seringueiro é precária, “adstrita aos fornecimentos escassos de todas as conservas suspeitas e nocivas, com o derivativo aleatório das caçadas” – o que também era proibido pelo dono do seringal. Mas, “sobretudo isto, o abandono.” Naquelas paragens, o que acontece é a “conservação sistemática do deserto, e a prisão celular do homem na amplitude desafogada da terra.” O seringueiro, ao contrair a malária, consegue, então, dependendo da gravidade do caso, a única forma de se livrar da escravidão e daquela “paragem maldita”, devastada pelas moléstias.
De volta a Sarapalha, no trecho em que os dois primos comparam os ventres inchados, pelo aumento do baço, vamos percebendo, a partir deste momento do conto, que a maleita provoca mais estragos do que percebemos: “No vão esquerdo, abaixo das costelas, os baços jamais cessam de aumentar.”26
Pois bem, lembrando de uma frase do mesmo Guimarães, “Sertão: é dentro da gente”, uma questão parece-nos intrigante: o quanto havia de “sertão” em Euclides e o quanto a tuberculose e a malária contribuíram para isso? Gostaríamos de lembrar que o escritor, assim como Guimarães, era do interior. O amor pela natureza já é visível em seus versos de adolescente, como : “Eu quero à doce luz dos vespertinos pálidos/ Lançar-me, apaixonado, entre as sombras das matas/ Onde a Poesia dorme, aos cantos das cascatas... “27 Por toda a vida Euclides sempre se refugiou na natureza, à moda dos românticos. Daí a busca contínua do seu “deserto bravio e salvador”; a espera “até que se me abram outra vez as estradas perigosas do deserto”, a recusa da improdutiva “agitação estéril” da grande cidade. Mas há um detalhe que não se pode ignorar: o quanto estava Euclides física, mental e psicologicamente abalado pela soma de tuberculose e malária, nos últimos anos de sua vida?
Buscamos compreender um pouco disso tudo cruzando as leituras de Sarapalha, Tuberculose e literatura28 e a correspondência euclidiana29 , a partir do momento em que ele contraiu a malária, como parte final deste estudo, para compreender um pouco dessa relação entre “sertão” e Euclides.
Em 12 de janeiro de 1905, o engenheiro já se queixava a Afonso Arinos: “Eu escrevo-te doente. [...] A febrícula de 38º que me assaltou é menos um caso patológico que um incidente físico.”30 O seu organismo, já minado pela tuberculose e debilitado porque passara mal durante quase toda a viagem, ressente-se, então, com o clima da Amazônia. Por isso Euclides se queixa da “aclimação difícil”. Ele sentia-se numa “Cápua abrasadora”, que lhe devorava as energias. É preciso recordar que o escritor era fumante inveterado, e nem a saúde fragilizada o fazia parar com o vício, como vemos em carta a Artur Lemos, em 1905: “... escrevo, como fumo, por vício.”31
No Diário de marcha, em 22 de junho de 1905, está registrado: “Tanto o chefe Dr. Euclides da Cunha, como o auxiliar Arnaldo da Cunha, achavam-se enfermos. Este, conseguiu curar-se até o dia seguinte, ao passo que a enfermidade daquele, prolongou-se por mais dois dias.”32
No dia 24 de junho: “À noite, agravou-se o estado de saúde do Dr. Euclides da Cunha, que foi prontamente melhorado com o medicamento proporcionado pelo Sr. Auxiliar. Curiosa foi a alimentação do enfermo – caldo de macaco.” Em 15 de julho: “A nossa gente ia dia-a-dia mais enfraquecida e adoentada.” Apesar dessa debilitação física, em 31 de julho, quando o Cavaljani estava com duas polegadas de água e os homens tiveram que tirar as botinas e lançarem-se nas águas, Euclides e Arnaldo também fizeram o mesmo, “puxando na mesma corda em que seguravam, animando-os, encorajando-os”, até conseguirem vencer o obstáculo.
A partir de 1 de agosto, os mantimentos esgotaram-se, e em 3 de agosto registram no diário que “o almoço foi sofrido”, pois alimentaram-se apenas de “carne seca com dezenas de grãos de arroz que por acaso ficaram numa lata.” Na volta da travessia do Pucani, Euclides teve que se apoiar no braço do auxiliar.
Em 10 de novembro de 1905, já em Manaus, é na correspondência de Euclides que encontramos: “O dr. Teixeira não me deixou sair ontem” – sinal de que a saúde não estava bem?
No Rio, em 18 de abril de 1906, em carta a Escobar, confessa estar, além de atarefado, doente: “Há uma coisa pior que a tuberculose, que é franca – é o insidioso impaludismo larvado que a medicina não atinge tão vário é ele e incaracterístico. Estou, por isto, aflito por terminar todas estas coisas, a fim de limpar o meu organismo dessa ferrugem que ameaça devorá-lo.”
Em 14 de julho de 1906, diz a Domício da Gama: “Felizmente há dois dias que não tenho febre [...] Peço-te que me recomendes ao sr. barão, a quem não vou visitar porque não posso sair.”33 E ainda acrescenta: “... Não poder sair... imagina que tortura para quem possui umas “botas de sete léguas”, como as minhas!”
No ano de 1908, já em 13 de março, conta a Oliveira Lima: “Depois da atrapalhada carta que lhe escrevi, a correr, [...] voltei para casa, a tiritar de frio, sob uma temperatura de 30º (!), e passei oito longos dias em estreita intimidade com o meu impaludismo amazônico!”34
Uma revelação encontra-se na carta a Vicente de Carvalho, em 4 de dezembro de 1908: além de tuberculose e malária, Euclides parece ter sofrido também de beribéri: “Continuo meio adoentado; mas não creio que as moléstias vinguem na aridez maninha deste meu organismo asperamente seco, de onde o próprio beribéri acreano já fugiu espavorido (sem remédio!) para nunca mais voltar.” 35 Em 11 de dezembro, conforme escreve a Escobar, o escritor ainda não se recuperara: “Demorei-me em responder-te – e respondo esta laconicamente, porque te escrevo ainda de cama, mal restabelecido de um resfriamento.”36