Parceiros
adm    
Euclides e o berço de Os Sertões
Usuarios Online: 1
13:32:39 , Thursday, 28 de March de 2024 , Boa Tarde!

Menu
<< Próximo || Anterior >>

A AMAZÔNIA DE EUCLIDES DA CUNHA
2011-06-24 13:41:44

 

A AMAZÔNIA DE EUCLIDES DA CUNHA
Dra. MARLEINE PAULA MARCONDES E FERREIRA DE TOLEDO
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP) 
ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETIMG (ESPM)
E-mail: marleinepaula@hotmail.com
 
RESUMO: Este artigo visa a traçar um painel da atividade de Euclides da Cunha em sua missão amazônica, como engenheiro, escritor e brasileiro; consequentemente, contribui para o conhecimento de sua vida e caráter, bem como para a divulgação da literatura que produziu depois de Os sertões. Pressupõe cortes transversais de toda sua correspondência pertinente e de todos os seus escritos amazônicos . Euclides da Cunha preparou-se intelectualmente para a missão na Amazônia, com leituras e pesquisas sobre a região. Como engenheiro, ajudou a tecer a História e a Geografia do Brasil, subindo o Purus e mapeando-o. Como escritor, rastreou a Amazônia em pequenos ensaios, publicados posteriormente em livros. A resultante desses escritos é a Amazônia vista por Euclides, uma sequência e um amálgama de Geografia, Geologia, Climatologia, Etnografia, História, Sociologia – e poesia. Como brasileiro, protagonizou lances patrióticos durante a singradura do Purus. Sua dedicação chegou ao ponto de comprometer-lhe a saúde, com um insidioso impaludismo trazido da Amazônia, que o acompanhou cronicamente até 1908. Euclides foi uma alma desassombrada e heróica.
 
Palavras-chave: engenheiro, escritor, brasileiro, Amazônia, Purus.
 
Euclides da Cunha, espírito inquieto, tinha a vocação de desbravador e pioneiro. Depois de Canudos, a Amazônia:
 
Que melhor serviço poderei prestar à nossa terra? Além disto, não desejo Europa, o boulevard, os brilhos de uma posição, desejo o sertão, a picada malgradada, e a vida afanosa e triste de pioneiro - escreve a José Veríssimo, do Guarujá, em 7 de julho de 1904 (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 212).
 
            Terminado o tempo de São José do Rio Pardo, escritos e publicados Os sertões, Euclides alia à preocupação de estabilidade financeira e profissional o desejo de uma viagem ao norte do país. Pleiteia e consegue, por intervenção de José Veríssimo ao Barão do Rio Branco, nomeação como chefe da parte brasileira da comissão mista brasileiro-peruana, que se estava organizando para efetuar o reconhecimento das nascentes do Rio Purus.
            A viagem de reconhecimento das nascentes do Purus era imprescindível para o estabelecimento da fronteira definitiva entre o Brasil e o Peru. A questão de limites entre os dois países foi decidida posteriormente, em 1909, pelo uti possidetis, que atribuiu ao Peru as cabeceiras dos rios Juruá e Purus. Mas para tanto foi necessário estabelecer concretamente essas cabeceiras, em expedições de reconhecimento. 
            À semelhança do que já fizera antes de partir para Canudos, Euclides começou a preparar-se intelectualmente para essa nova missão. Desde inícios de 1904, passou a acumular conhecimentos sobre a Amazônia, lendo Humboldt, Agassiz, Bates, Wiener, Tavares Bastos, Sousa Coutinho, Soares Pinto (cf. RABELLO, 1966, p. 252). 
            Nomeado, dá seguimento aos preparativos intelectuais, tratando de estudar o que pode a respeito da região que agora lhe competia desbravar. Escreve a Domício da Gama, ainda do Guarujá, em 22/08/1904: “Recebi ontem o interessante folheto de Chandless. Obrigadíssimo” (GALVÃO e GALOTTI, 1997, p. 222). Folheto que ele certamente leu com toda a atenção, porque torna a referir-se a ele no dia 27: “Saúdo-o. Escrevi-lhe há dias comunicando haver recebido a monografia de Chandless e agradecendo-lha” (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 224). O inglês William Chandless percorrera o Purus alguns anos antes.
            Nessa mesma linha preparatória, durante a viagem para Manaus, a escala em Belém permitiu-lhe que, a partir de uma indicação de José Veríssimo, tivesse um encontro com o naturalista suíço Emílio Augusto Goeldi, diretor do museu que leva seu nome. A correspondência dirigida ao próprio Veríssimo, datada, por engano, de 13 de janeiro de 1904 (no autógrafo), porque, em verdade, já se estava em 1905, evidencia seu contentamento:
 
Entreguei a carta ao Dr. Goeldi e não preciso dizer-lhe como me recebeu ele, e que duas horas inolvidáveis passei a seu lado pelos repartimentos e entre as maravilhas de um dos mais notáveis arquivos do mundo (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 252).
 
A permanência forçada em Manaus, de 30 de dezembro de 1904 a 05 de abril de 1905 (cf. RABELLO, 1966, p. 267), à espera de consertos nas embarcações peruanas, ultimando os próprios preparativos e aguardando as instruções para a singradura do rio Purus, não o deixou ocioso. Continuava a preparar-se. Hospedado na “Vila Glicínia”, de Alberto Rangel (cf. RABELLO, 1966, p. 262), pesquisava o roteiro de expedições já realizadas, estudava mapas e documentos.  
A carta de 1º. de fevereiro de 1905, endereçada de Manaus ao Barão do Rio Branco, dá notícia de uma pesquisa fundamental: conseguira com o general José Siqueira de Menezes um esboço do alto Purus desenhado por um caucheiro conhecedor daquelas paragens, designando os vários pontos habitados, bem como os afluentes e varadouros, com a indicação dos tempos necessários para as respectivas travessias. Anexou-o à carta dirigida ao Barão. Aparecem também no esboço os dois galhos extremos do Purus, em cuja intersecção parou o explorador W. Chandless. Num desses galhos, o rio Cujar, “o varadouro para a bacia superior do Ucaiale é, talvez, no máximo, de um quilômetro”, quinze minutos de marcha. Além disso, o mesmo mapa mostra numerosos varadouros entre os rios Purus e Juruá, e faz prever meio dia para percorrer a distância entre os últimos afluentes do Juruá e do Ucaiale. A fidelidade de todas essas informações foi garantida pelo general Menezes. Euclides confrontou esse esboço com o mapa impresso no Boletim da Sociedade de Geografia de Lima, o qual ele ampliara, e observou que o mapa rudimentar do caucheiro era mais pormenorizado “e muito mais seguro nas designações locais e disposição geral da rede hidrográfica das cabeceiras.” Embora necessitasse de ulterior confirmação, Euclides acreditava que seria um bom auxiliar na singradura (cf. GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 260).
Todos esses preparativos visavam a dar conta da tríplice investidura que o próprio Euclides se atribuíra nessa expedição: “um brasileiro que vai prestar um serviço à sua terra”, “um engenheiro que não pode ter um trabalho mais digno” e um “escritor que não poderá ter melhor assunto”, conforme escrevera ao pai, do Guarujá, em 08/08/1904, assim que recebera de Oliveira Lima a boa nova de que seria nomeado (cf. GALVÃO; GALOTTI, p. 219).
Como “um engenheiro que não pode ter um trabalho mais digno”, Euclides, naquelas paragens, protagonizou nossa História e ajudou a tecer nossa Geografia. À frente de um pugilo de homens (além dos técnicos, 30 praças, que a partir do dia 25 de junho ficaram reduzidas a 9) fez a subida do rio Purus, mapeando-o, em condições precárias e correndo perigos. (Cf. GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 279-286 e CUNHA, 1995, v. I: “Relatório da comissão mista brasileiro-peruana de reconhecimento do Alto-Purus”, p. 753-763).
     A partida da expedição deu-se em Manaus, em 05 de abril de 1905, na vazante, que vai de abril a novembro e constitui a pior quadra para a navegação.
A singradura foi feita em lanchas e batelões. A subida foi muito irregular, em virtude dos paus e torrões de argila que dificultavam a passagem das embarcações. Foram necessárias muitas sondagens e paradas.
A lancha brasileira Cunha Gomes encalhou, o batelão brasileiro Manuel Urbano naufragou. Recuperou-se o que foi possível dos víveres, a comissão peruana prestou socorro, mas a comissão brasileira teve de ser reduzida, seguindo viagem apenas Euclides e pouco mais de uma dezena de auxiliares.
Depois do rio Chandless, vencidos já três quartos do Purus, a travessia continuou dificultosamente, em canoas e pequenos batelões, na vazante e ao arrepio da corrente. Tiveram de enfrentar também uma epidemia de beribéri, mas felizmente não apareceu nenhum caso da doença em nenhuma das tripulações, já enrijadas pelo próprio regime severo a que estavam submetidas.
Sempre subindo, passaram pelos últimos barracões de seringueiros brasileiros, avançaram pelos peruanos. Enfrentaram uma tempestade; os encalhes e esbarradas em paus já eram rotina; a comissão brasileira acabou por ficar reduzida a 9 pessoas, porque voltaram presos para Manaus 5 soldados rebeldes às ordens recebidas.
Finalmente as duas comissões atingiram a Forquilha do Purus. Apesar de todas as dificuldades, sobretudo para a comissão brasileira, com víveres escassos e sem meios de supri-los, prosseguiram as duas comissões para as cabeceiras, subindo o rio Cujar (um dos formadores do Purus; o outro é o Curiúja). Era a fase do máximo esgotamento do rio. Atingiram a confluência do rio Cavaljani, última das divisões dicotômicas tão características do Purus. 
Dali para frente avançaram pelo trecho do Purus ainda não apresentado à ciência geográfica, porque até ali chegara o explorador inglês Chandless, que depois mudara de rumo, investindo para o norte e percorrendo apenas mais umas poucas milhas. Navegando para o sul, em ubás quase sempre impulsionadas por alavancas no leito seco e areento do Cavaljani, em 03 de agosto de 1905, as duas comissões atingiram a confluência do Rio Pucani, a mais meridional de todas as nascentes do Purus. Ao fim dessa travessia, subindo um varadouro em aclive, fizeram uma descoberta inédita: as nascentes dos três grandes rios Ucaiale, Madre de Dios e Purus são independentes, mas próximas, e pode-se passar de uma a outra através de varadouros.
Com víveres escassos, as comissões voltaram rapidamente para a Forquilha do rio Purus e concertaram em cumprir a última parte de seu objetivo: a subida do outro galho do Purus, o rio Curiúja. Tentaram-na, mas foram obrigadas a desistir, porque a vazante exigia grandes esforços dos homens já esgotados e os víveres não seriam suficientes. Contudo, ao ver de Euclides, o objetivo da expedição fora alcançado, uma vez que sobre o não explorado Curiúja sobejavam dados seguros.
Voltaram a Manaus, aonde chegaram nos últimos dias de outubro de 1905 – magros e rotos, porém vitoriosos. Euclides foi realmente um desbravador.
Como “escritor que não poderia ter melhor assunto”, Euclides, à semelhança do que fizera em Os sertões, juntou harmoniosamente as pesquisas preparatórias com a observação direta e a intuição. Consorciou ciência e arte e dispôs-se a escrever Um paraíso perdido, seu segundo “livro vingador”.
Não chegou a concretizá-lo. Mas rastreou a Amazônia em artigos e pequenos ensaios, publicados posteriormente em livros: 3 em Contrastes e confrontos(“Conflito inevitável”, “Contra os caucheiros” e “Entre o Madeira e o Javari”), 7 em Terra semHistória, primeira parte de À margem da história(“ Impressóes gerais”, “Rios em abandono”, “Um clima caluniado”, “Os caucheros”, “Judas –Asvero”, “Brasileiros” e “A transacreana”) e um em À margem da geografia (“Entre os seringais”) – além do Relatório da comissão mista brasileiro-peruana dereconhecimento do Alto Purus(Todos constam do v. I da Obra completa, da Edição Aguilar).
A resultante desses escritos é a Amazônia vista por Euclides, uma sequência e um amálgama de Geografia, Geologia, Climatologia, Etnografia, História, Sociologia – e poesia.
A primeira impressão que Euclides teve da Amazônia foi que o homem ali “é ainda um intruso impertinente”, porque chegou quando a natureza não tinha ainda arrumado seu luxuoso salão: os rios não se tinham ainda firmado nos leitos, a fauna e a flora não eram hospitaleiras. Geologicamente, a Amazônia, nascida da última convulsão geogênica que sublevou os Andes, talvez seja a terra mais nova do mundo. O rio Amazonas, ao contrário do que acontece com os outros rios, não é causa de desenvolvimento, mas de destruição: lança milhões de metros cúbicos de água mar adentro; suas margens estão sujeitas a desabamentos (as “terras caídas”); seu leito não se fixa; forma “furos”, chegando a ser tributário de seus próprios tributários (Cf. CUNHA, 1995, v. I: “Impressões gerais”. À margem da história, p. 249-261).
Em consequência da viagem exploratória, o referencial de Euclides são as circunjacências do rio Purus. O Purus é um extenso rio de baixada (1.733 milhas), meândrico, de extraordinária massa de água, sem corredeiras ou redemoinhos apreciáveis, com pouquíssimas ilhas. À primeira vista, parece estável, mas um exame acurado mostra que seu leito ainda está em evolução geológica e sofre modificações, encurtando-se em alguns trechos e alongando-se em outros: é um rio “divagante”. Apresenta oscilações de nível: quem o sulca nos primeiros dias do ano encontra-o cheio, mas, ao voltar, passa pelo fundo de uma calha desmedida.
Do curso médio até as cabeceiras, na vazante, apresenta muitos entraves à navegação: paus caídos da floresta que o margeia e bancos de argila solapada das margens na enchente. Em sua “divagação”, forma numerosos lagos no primitivo leito abandonado, como é comum na maioria dos tributários da margem direita do Amazonas. Seus afluentes, de forma geral, copiam essas mesmas disposições (Cf. CUNHA, 1995, v. I: Relatório,  p. 763-767 e “Rios em abandono”, À margem da história, p. 261-272).
Geologicamente, os terrenos até a confluência do rio Chandless apresentam as três camadas características da Amazônia – grés estratificado, argila e grés ferruginoso. Sua justaposição variada forma os diferentes aspectos da terra. De Curanjá para cima os terrenos são constituídos principalmente de uma espécie de quartzito muito duro, talvez ainda não definido pela ciência (Cf. CUNHA, 1995, v. I: Relatório, p. 774-775).
A flora espalha-se pela floresta das “terras firmes”, inacessíveis às enchentes, e os “igapós”. Nessas “terras firmes”, há matas densas, de tom verde-escuro, de pequena altura, destacando-se poucas espécies mais altas. Nos “igapós”, regiões alagadas que margeiam os rios, a vegetação é a característica das praias.
Algumas espécies: paxiúba, buriti, imbaúba, samaúma, embiruçu, seringueira, caucho; madeiras de construção, como pau-mulato, peroba, maçaranduba, ipê, cedro (cf. CUNHA, 1995, v. I: Relatório, p. 775-778).
Graças às florestas que cobrem a região, o clima tem quase a regularidade de um clima marítimo. A temperatura decresce progressivamente na subida do rio, mas, na eventual“friagem”, há inesperadas altas e quedas em curto espaço de tempo. A umidade, como em toda a bacia amazônica, é excessiva. Essas condições climáticas são muito favoráveis ao desenvolvimento da microflora e microfauna, com as epidemias consequentes; porém, a região é perfeitamente habitável, exigindo apenas a observância das regras de higiene tropical - e os que acusam de insalubre seu clima são os que não conseguiram fixar-se lá. (Cf. CUNHA, 1995, v. I: Relatório, p. 771-772).
A região foi povoada por cearenses que fugiram das grandes secas, desde 1879: “... cem mil sertanejos, ou cem mil ressuscitados, apareciam inesperadamente e repatriavam-se de um modo original e heróico, dilatando a pátria até aos terrenos novos que tinham desvendado” (CUNHA, 1995, v. I: “Um clima caluniado”, À margem da história, p.276), definindo assim o estado do Acre, que antes era uma vaga ficção geográfica. Dessa forma, o clima das adjacências do rio Purus exerceu a seleção natural:
 ... policiou, saneou, moralizou. Elegeu e elege para a vida os mais dignos. Eliminou e elimina os incapazes, pela fuga ou pela morte. E é por certo um clima admirável o que prepara as paragens novas para os fortes, para os perseverantes e para os bons (CUNHA, 1995, v. I: “Um clima caluniado”, À margem da história, p. 281; cf. “Entre o Madeira e o Javari”, Contrastes e confrontos, p. 186-189). 
 
 
Quatro quintos do grande rio estão povoados por esses sertanejos. São os seringueiros. Extraem o látex da hevea brasiliensis, que não sucumbe após a extração, mas tem produção constante; por isso, formam uma sociedade rude, mas estável.Vivem num regime de semiescravidão, porque a propriedade da terra é mal distribuída e está na mão de um número restrito de possuidores: “o sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sobre a qual nunca é demasiado insistir: é o homem que trabalha para escravizar-se” (CUNHA, 1995, v. I: “Um clima caluniado”, À margem da história, p. 278). Chega,
 
... ergue a cabana de paxiúba ... e pressente que nunca mais se livrará da estrada que o enlaça, e que vai pisar durante a vida inteira, indo e vindo, a girar estonteadamente no monstruoso círculo vicioso da sua faina fatigante e estéril (CUNHA, 1995, v. I: “Entre os seringais”, À margem da geografia, p. 559).
 
Faz débitos com o patrão, trabalha para pagar-lhe, mas está sempre devendo. Explorado, torna-se escravo. Não é dono da terra que pisa e nem pode deixá-la, aprisionado pelas dívidas.
Por isso, “no sábado de Aleluia os seringueiros do Alto- Purus desforram-se de seus dias tristes”, numa sanção litúrgica à ambição que ali os levou. O chefe de família, ajudado pelos filhos, constrói um boneco de palha e roupas velhas, o judas. No fim do trabalho, um lance dramático: coloca na cabeça do boneco seu sombrero – e as crianças atônitas nele reconhecem a figura triste do próprio pai. Mas não termina aí a purgação; o seringueiro quer tornar pública sua desdita: põe o judas numa jangada e solta-o no rio. Acorrem os vizinhos com espingardas e vão atirando no mostrengo, enquanto ele desce o rio. Não segue sozinho: encontra outros bonecos companheiros de infortúnio – e todos juntos vão descendo, descendo, rio abaixo... (Cf. CUNHA, 1995, v. I: “Judas-Asvero”, À margem da história, p. 292 e segs.),
A marcha ascensional do povoamento do Purus por brasileiros parou na cidade de Sobral. A montante desse sítio, os povoados são peruanos, habitados por caucheiros, sociedade nômade, adstrita à extração do caucho da castiloa, que sucumbe à primeira incisão. Tentaram adentrar a região explorada pelos brasileiros, mas tiveram de recuar, vencidos à bala: “para o caucheiro um domador único, que o suplantará, o jagunço” (CUNHA, 1995, v. I: “Contra os caucheiros”, Contrastes e confrontos, p. 185). Aprisionam e escravizam os índios, ficam nos barracos até enriquecerem, partem depois para as cidades grandes, deixando a terra em abandono (cf. CUNHA, 1995, v. I: Relatório, p. 802-804 e “Os caucheros”, À margem da história, p. 282-292).
Olhando para o futuro, Euclides pensa na integração nacional. Analisando a conquista do Acre, observa que o povoamento não se expandia, mas estirava-se, acompanhando os tributários do Amazonas, de cursos paralelos; estes não se intercomunicam a não ser por “varadouros”: veredas atalhadoras de um metro de largura, abertas a facão, ligando uma vertente fluvial a outra, ou então duas secções do mesmo rio. Imitando esses varadouros, Euclides vê a necessidade de uma via férrea que atravesse o Acre, fazendo a ligação transversa dos grandes rios: a transacreana. A ferrovia terá importância econômica, facilitando e intensificando a extração da borracha, e poderá transformar-se em estrada internacional de extraordinários destinos, interligada à Madeira-Mamoré (cf. CUNHA, 1995, v. I: “A transacreana”, À margem da história, p. 308-352). Acresce que terá valor estratégico, num previsível conflito com o Peru: o verdadeiro oceano desse país dividido pelos Andes não é o Pacífico, é o Atlântico; para alcançá-lo via rio Purus, o Peru poderá pegar em armas contra o Brasil. (Cf. CUNHA, 1995, v. I: “Conflito inevitável”, Contrastes e confrontos, p. 179-182 e “Brasileiros”, À margem da história, p. 297-307).
Como “brasileiro” que prestou “um grande serviço à sua pátria”, Euclides, além de ter sido protagonista de nossa história e de ter desenhado nossa geografia, deu mostras de exaltado nacionalismo em três episódios que podem considerar-se irradiações de sua odisséia através do Purus.  
      O primeiro é a entrevista que ele concedeu ao Jornal doComércio, logo que chegou a Manaus, fazendo uma resenha da expedição: o tempo parado em Manaus, que prejudicou em parte a singradura, por causa da vazante; a viagem penosa; o naufrágio do batelão; os mosquitos; as doenças; os desânimos; a coragem; a meia ração a partir de Forquilha; os perigos dos infieles; a chegada ao último galho meridional do Purus; a subida pelo varadouro em aclive, de cuja culminância seus olhos
 deslumbrados abrangiam, de um lance, três dos maiores vales da terra; e naquela dilatação maravilhosa dos horizontes, banhados no fulgor de uma tarde incomparável, o que ele principalmente distinguiu, irrompendo de três quadrantes dilatados e trancando-os inteiramente – ao sul, ao norte e a leste – foi a imagem arrebatadora da nossa pátria que nunca imaginou tão grande” (cf. CUNHA, 1995, v. I: “Os trabalhos da comissão brasileira de reconhecimento do Alto Purus”. À margem da geografia, p. 557-558).
 
 
     “Valor de um símbolo” e “Sucedeu em Curanjá”, recolhidos em Fragmentos e relíquias, v. I da edição Aguilar, fixam lances patrióticosda expedição.
      Era uma tarde de julho de 1905. Os expedicionários brasileiros, nove apenas, depois do naufrágio do batelão, tinham atingido, a duríssimas penas, a foz do Cavaljani, último galho do Purus que era preciso ainda subir para completar a empreitada. Os homens estavam rotos, doentes, cansados e famintos. Euclides temia que não continuassem. Passou a noite em claro. Na manhã seguinte, exortou-os ao patriotismo, a mais um extremo sacrifício. Debalde. Foi quando os expedicionários peruanos, acampados em frente, bem nutridos, animados e sadios, hastearam a bandeira peruana na popa de uma canoa, para seguir em frente. Euclides não precisou dizer nada, diante da eloquência do símbolo: os brasileiros aprumaram-se, hastearam o nosso pavilhão e aprestaram-se a partir... 
Em segundo, diz ele, a nossa bandeira, que jazia, enrolada, em terra, aprumou-se por seu turno em uma das canoas, patenteando-nos aos olhos ‘as promessas divinas da esperança!’ E partimos, retravando, desesperadamente, o duelo formidável com o deserto... (CUNHA, 1995, v. I. “Valor de um símbolo”. Fragmentos e relíquias, p. 582).
 
 
O episódio de Curanjá deu-se dois dias antes, em 03 de julho. As principais pessoas do lugar ofereceram um banquete  ao chefe peruano e a Euclides. No local havia uma profusão de bandeiras peruanas e nenhuma do Brasil. Euclides pensou em retirar-se, quando divisou entre a folhagem verde que decorava a sala do festim algumas folhas de palmeira, cujas faces internas, intensamente amarelas, contrastavam com o verde das outras folhas. Tomando então de improviso a palavra, agradeceu a inteligente gentileza de seus anfitriões, que, para a bandeira do Brasil, não tinham recorrido ao “seio mercenário de uma fábrica de tecidos, mas ao “seio majestoso das matas, tomando-a exatamente da árvore que entre todas simboliza as idéias da retidão e da altura.” Ao que o chefe peruano, disfarçando o constrangimento, respondeu que ele havia compreendido muito bem o pensamento deles...(CUNHA, 1995, v. I. “Sucedeu em Curanjá”. Fragmentos e relíquias, p. 583).
Mas a dedicação ao ideal exige prova de sangue. Euclides deu-a no Purus, comprometendo para sempre sua saúde.
De volta ao Rio, ultimando o relatório oficial da viagem, queixa-se a Escobar (18 de abril de 1906) de um insidioso impaludismo, que certamente trouxera da Amazônia. Impaludismo que o acompanhou cronicamente, pois em 1908 (12 de fevereiro), de Petrópolis, torna a lamentar-se a Escobar:
 
Você deve estar – com razão – surpreendido da minha atitude, não respondendo a tua última carta. Explico a demora: 1º) – doença= assombroso resfriamento, complicado do meu velho impaludismo amazônico (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 350).
 
 
Em 13 de março faz a mesma queixa a Oliveira Lima, escrevendo-lhe do Rio: “... voltei para casa, a tiritar de frio, sob uma temperatura de 30° (!), e passei oito longos dias em estreita intimidade com o meu impaludismo amazônico!” (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 351). A última referência à doença amazônica é de 04 de dezembro, do Rio, a Vicente de Carvalho: Euclides declara-se, finalmente, curado (embora perseguido pela tuberculose crônica):
Continuo meio adoentado; mas não creio que as moléstias vinguem na aridez maninha deste meu organismo asperamente seco, de onde o próprio beribéri acreano já fugiu espavorido (sem remédio) para nunca mais voltar (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 392).
 
 
     Lamentando para Vicente de Carvalho, em carta do Rio, 18 de setembro de 1908, a morte de Plácido de Castro, com quem viajara no Purus, diz Euclides:
 
A morte de Plácido de Castro abalou-me profundamente. Conheci-o e conversei-o largo tempo, quando viajamos juntos, no Purus, em 1904. Era uma alma desassombrada e heróica. Tinha talvez muitos defeitos. Mas não se pode negar excepcional valor a quem, de fato, dilatou o cenário da nossa história (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 376).
 
 
     Plácido de Castro teve importante papel no estabelecimento do Estado independente do Acre, chefiando a insurreição de brasileiros contra bolivianos, entre 1902 e 1903 (cf. RABELLO, 1966, p. 244-246). O que Euclides disse a seu respeito pode perfeitamente aplicar-se a sua própria pessoa. Por sua atividade na Amazônia, também ele dilatou o cenário de nossa história e teve uma alma desassombrada e heróica. Não há negar-lhe valor excepcional.  
REFERÊNCIAS
 
CUNHA, Euclidesda. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1995, v. I. Relatório da comissão mista brasileiro-peruana de reconhecimento do Alto Purus.
CUNHA, Euclidesda. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1995, v. I. Contrastes e confrontos. “Conflito inevitável”. “Contra os caucheiros”. “Entre o Madeira e o Javari”.
CUNHA, Euclidesda. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1995, v. I. À margem da História. Terra semHistória. “Impressões Gerais”. “Rios em abandono”. “Um clima caluniado”. “Os Caucheros”. “Judas –Asvero”. “Brasileiros”. “A Transacreana”.
CUNHA, Euclidesda. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1995, v. I. À margem da geografia. “Entre os seringais”. “Os trabalhos da comissão brasileira de reconhecimento do Alto Purus”.
CUNHA, Euclidesda. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1995, v. I. Fragmentos e relíquias. “Valor de um símbolo”. “Sucedeu em Curanjá”.
GALVÃO, Walnice Nogueira; GALOTTI, Oswaldo. Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo: Edusp, 1997.
RABELLO, Sylvio. Euclides da Cunha. 2. ed.Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966.

 
Dra. MARLEINE PAULA MARCONDES E FERREIRA DE TOLEDO
 
Apoio
Protéton