O “TAPUIA” EUCLIDES: HUMANISMO OU IDEALISMO?
Maria Olívia Garcia R. Arruda
Doutora em Teoria e História Literárias/UNICAMP
Especialista em Análise do Discurso/PUC-Campinas
Docente da UNIP-Rio Pardo
Membro do Conselho Euclidiano
RESUMO: Este trabalho faz uma reflexão acerca do tema da Semana Euclidiana 2010: Euclides tapuia: humanismo ou utopia? Fundamentados na explicação de ”tapuia” dada por Tomislav R. Femenick e nos conceitos de “humanismo”, “idealismo” e “utopia” do Dicionário de Filosofia Moral e Política do Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade Nova de Lisboa, procuramos pontuar esses três aspectos nos escritos de Euclides da Cunha, principalmente em sua correspondência reunida por Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti, buscando compreender esse “misto de celta, tapuia e grego” com que ele se autodefiniu.
Palavras-chave: Euclides da Cunha, tapuia, celta, idealista utópico.
Ao pensar em “Euclides tapuia”, tema proposto para a Semana Euclidiana deste ano, a idéia primeira foi de relacionar o escritor ao seu espírito nativista e ecológico, porém, após uma pesquisa sobre o termo “tapuia”, foi possível perceber no texto euclidiano a busca pela exatidão das palavras, característica importante para compreendê-lo.
O escritor autodenomina-se “misto de celta, de tapuia e grego”, em verso de um poema que escreveu em um cartão postal, enviado a Lúcio de Mendonça, em 26/12/1903.[1] “Tapuia”: termo histórico utilizado ao longo dos séculos no Brasil, para designar um grupo cultural– e não uma tribo – de povos nativos. No início, eram os tupis-guaranis e os tapuias, termo este que denominava os indígenas das regiões mais interiores, em menor contato com a civilização. Ser “tapuia”, portanto, era ser “gentio”, “bárbaro”, avesso à civilização e à mudança de costumes.
Conforme Tomislav R. Femenick, tapuia é de origem tupi, corruptela de tapuy-ú, cujo significado é “o gênio bárbaro come”. Os tupis assim chamavam os inimigos que viviam na Tapuirama ou Tapuiretama, afirma Tomislav. Em Iracema, de José de Alencar, tapuia significa bárbaro, inimigo, vem de “taba”, que é aldeia, e “puir”, que é fugir, portanto “tapuia” significa, etimologicamente, “o fugido da aldeia.”
Melhor explicação do que entendemos do “celta, tapuia e grego” em Euclides será feita no final deste texto. Para melhor elucidar o tema desta Semana, vejamos a seguir um breve significado de “Humanismo”.
O Humanismo é uma corrente filosófica que considera os humanos como primordiais, portanto idealiza uma sociedade baseada no homem, sem metafísica, porém com dignidade e ética em sua conduta, sempre guiada pela razão. Contrapõe-se, portanto, a uma sociedade hierárquica baseada no sobrenatural. Em uma sociedade humanista, quem governa o homem é a sua própria consciência. No entanto, durante o decorrer da História, surgiram diferentes correntes humanistas. Aqui nos interessa apenas a concepção mais em voga no início do século XX, que é o Humanismo Secular ou Positivismo.
Movimento racionalista, que sustenta a capacidade que as pessoas têm de auto-iluminação, de uma conduta ética e digna, sem o apelo para um recurso sobrenatural. Defende a moralidade como racional e de base secular; os direitos humanos, a liberdade moral e intelectual e a democracia secular, com a efetiva separação entre igreja e estado. Prega o desenvolvimento do potencial da criatividade humana através da educação, das artes e das ciências; da livre investigação em uma sociedade pluralista e universalista. Enfim, uma filosofia para aqueles que amam viver, que crêem encontrar a felicidade aqui, não em algum lugar distante, em outra possível existência. Seria o caso de Euclides?
Passemos para a compreensão de “utopia”, antes de arriscarmo-nos a qualquer dedução apenas especulativa. “Utopia” lembra-nos imediatamente algo de concretização impossível, porém O Dicionário de Filosofia Moral e Política de Viriato Soromenho-Marques[2], do Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade Nova de Lisboa, , traz “utopia” com o significado de “em nenhum lugar”, nusquam em latim. “Tema forjado por Thomas More, em 1516”, que se difundiu rapidamente e se trata de um equívoco, pois foi inicialmente idealizado como “eutopia”, “lugar do Bem”.
Em geral, as utopias procuram resolver o problema de justiça, que já era o tema principal da República de Platão e continuará nesse sentido na maioria das construções utópicas posteriores. O exercício utópico da imaginação geralmente engloba a tradição do milenarismo e a nostalgia da Idade de Ouro, assim como o messianismo.
A utopia representa a correção ou a integração ideal de uma situação política, social ou religiosa existente, tanto no estágio de simples aspiração ou sonho genérico, resolvendo-se numa espécie de evasão da realidade, como de geradora da energia necessária para a transformação dessa realidade, tornando-se vontade inovadora e encontrando os caminhos da inovação. Adotaremos então o termo “utopia” como instrumento de transformação social, de desmascaramento da falsidade da ideologia estabelecida, mas consideramos que talvez o melhor termo seja “idealismo”, em vez de “utopia”. Vem a dúvida: Euclides seria utópico ou idealista? O escritor não criou um lugar perfeito em suas obras literárias, ao contrário, denunciou justamente o que de pior havia no sertão baiano e nos seringais do Acre.
Verificando o termo “idealismo”, veremos que, no sentido ontológico, significa “doutrina filosófica segundo a qual a realidade apresenta uma natureza essencialmente espiritual, sendo a matéria uma manifestação ilusória, aparente, incompleta, ou mera imitação imperfeita de uma matriz original constituída de formas ideais inteligíveis e intangíveis, assim como ocorre no Platonismo.
No sentido gnosiológico, idealismo é a “teoria que considera o sentido e a inteligibilidade de um objeto de conhecimento dependente do sujeito que o compreende, o que torna a realidade cognoscível heterônoma, carente de auto-suficiência, e necessariamente redutível aos termos ou formas ideais que caracterizam a subjetividade humana”, como ocorre especialmente no kantismo. Para a Ética, “idealismo” significa doutrina que supõe o caráter fundamental dos ideais de conduta como guias da ação humana, a despeito de uma possível ausência de exeqüibilidade integral ou verificabilidade empírica em tais prescrições morais; propensão a idealizar a realidade ou a deixar-se guiar mais por ideais do que por considerações práticas.
Por último, conforme definição de Houaiss, “idealismo” é uma “propensão a idealizar a realidade ou a deixar-se guiar mais por ideais do que por considerações práticas” – e este parece ser o caso de Euclides, portanto esta definição justificará o emprego do termo “idealismo”, referindo-se ao pensamento do escritor.
Arriscamo-nos, então, a dizer que o autor de Os sertões apresenta a característica de “bárbaro”, como também a de “humanista” e a de “idealista utópico”, e nisto está a grande complexidade de seu gênio tumultuado, que parece não concordar com alguns estudos biográficos já feitos sobre ele. É o que tentaremos mostrar nestas rápidas considerações.
Comecemos pelo tapuia, a parte bárbara que Euclides forçava por manter refreada, porém nem sempre com sucesso, o que ele mesmo confessa nas cartas. Era tapuia toda vez que se comportava de forma arredia, a que ele chamava de temperamento de “bugre” ou de “caboclo”. Na verdade, era avesso às regras de comportamento social que julgava fúteis, porque baseadas na hipocrisia, ou porque talvez não fosse dado a seguir normas que para ele não tivessem sentido.
Já em 20 de junho de 1892, ele escreve a Pedro de Alcântara, queixando-se dos “misérrimos homens”, daquela “gente infeliz”, e afirma: “Eu já não sinto indignação por tanta baixeza; estou cansado de indignar-me e começo a olhar tudo isto com olhos de velho, velho de vinte e poucos anos – que é a pior e a mais triste espécie de velhos.”[3]
Em 15 de dezembro de 1893, ele toma o partido dos nativos, em carta a Porchat, ao dizer: “Não vês a maneira pela qual as gentes pseudo-civilizadas tratam os selvagens de todo mundo? A França, a Alemanha, a Inglaterra, exercendo miseravelmente o banditismo mais torpe roubando pátrias, saqueando os lares tranqüilos dos bárbaros na África e na Ásia.”[4] Condena também a atitude da Espanha contra os “Cabilas seminus e incultos.”
Nessa mesma correspondência, afirma Euclides: “Nunca senti tão violento como hoje o que dantes era para mim um sentimento mau [...] o nativismo.”[5] Coloca-se claramente contra o europeu invasor: “É o inimigo pior e covarde, de luvas de pelica e sorridente, que nos mata e ao mesmo tempo avilta-nos.”[6]
Em carta a Porchat, de 29 de dezembro de 1893, revela o engenheiro a confiança no poder da integração do homem à natureza, ao decidir partir para a fazenda do pai, por acreditar que o filho teria melhor saúde na roça.
Mas em Euclides conviviam vários “eus”.Ousamos dizer que ele mesmo reconhecia três, ao menos; daí definir-se como celta, aquele que crê na Mãe-Natureza, ou seja, na natureza geradora de todas as coisas; aquele que é um engenheiro-construtor que utiliza ferros e outros metais; como tapuia, o bárbaro, o avesso à organização e às normas hipócritas da sociedade burguesa e como grego, o racional, o humanista, o que utiliza a retórica para defender seus direitos, o que possui uma visão trágica dos fatos, crê na Fatalidade e no Destino...
É assim que conseguimos compreender as alternâncias de humor, de pensamento e de atitude desse escritor que, se em determinado momento defende a vida na roça como melhor opção, para logo depois considerá-la monótona e causadora de certo embotamento da inteligência, por somente utilizar esforços físicos.
É dessa forma que fica mais fácil entender quando ele sai da fazenda do pai, vai para São Paulo, e lá se queixa de estar entre “trogloditas que vestem sobrecasacas, usam cartola e lêem Stuart Mill e Spencer – com a agravante de usarem armas mais perigosas e cortantes que os machados de Sílex ou rudes punhais de pedras lascadas.”[7]
A Domingos Jaguaribe, em 23 de dezembro de 1897, já de volta de Canudos, alega evitar emitir opinião a respeito do trabalho do amigo, por estar o estudo sob a apreciação da congregação da Escola Politécnica do Rio, e completa: “nosso digno amigo sabe que a ciência, a suprema niveladora – apesar disto, também tem seus titulares, a sua aristocracia que não vê com bons olhos a precedência dada aos quase profanos, aos que ainda não se armaram cavaleiros numa luta séria – e eu estou neste último caso.”[8] Mas, como tapuia, não fica submisso às regras acadêmicas, confessa a Jaguaribe não considerar o “magister dixit” como “fórmula absoluta e esmagadora”, portanto não temeria em emitir opinião contrária à de algum membro da congregação, se julgasse necessário.
E Euclides chega a São José do Rio Pardo. Aqui, o “tapuia”- e o “celta” desaparecem ao menos ao escrever, em 24 de março de 1898: “Tenho a existência aspérrima de um condenado a trabalhos forçados, à margem de um rio odiento (grifo nosso), diante do espantalho de uma ponte desmantelada, ouvindo a orquestra selvagem e arrepiadora das marretas e dos malhos [...]”[9]
Recorremos a Modesto de Castro para compreender esse termo pejorativo ao aludir ao nosso Rio Pardo: à margem do rio, ao lado do barraco de zinco, ficava o matadouro municipal, que depois, a pedido de Euclides, foi transferido para outro lugar, mas ali havia um amontoado de carcaças dos animais abatidos, que atraíam moscas e urubus, além de exalar um “budum terrível”, como diz Modesto em seu O ranchinho de Euclides.[10]
Euclides parecia, muitas vezes, assumir a personalidade de um intelectual nada afeito aos trabalhos braçais, até mesmo repelindo o fato de seguir carreira de trabalhador, como escreve a Porchat, em 13 de outubro de 1899: “Já vês que continua, sempre brutal, esta minha vida rude de operário [...].”
Por vezes, essas facetas diversas da personalidade do escritor se confundem e desorientam também os que pensam conhecê-lo, como ele mesmo confessa a Júlio Mesquita: “Apesar de uma mocidade revolucionária, sou um tímido. Assusta-me qualquer conceito dúbio ou vacilante.”[11]
É possível imaginar um pouco do conflito interior que certamente atormentava o escritor, com a alternância constante dessas facetas tão diversas... Queria ser um revolucionário, porém era tímido e inseguro quanto à opinião alheia (como ele mesmo afirma no trecho acima); mostrava-se um humanista, defensor da capacidade do ser humano para evoluir mentalmente, com ética e dignidade, com preocupação social, com racionalismo e defendendo a liberdade moral e intelectual, mas muitas vezes, na prática, surgia-lhe o bárbaro, paradoxalmente oposto ao grego...
E ele é tapuia e utópico ao lembrar, em 25 de dezembro de 1901, ao amigo Escobar, que ambos se assemelhavam, eram “dissidentes” daquela República desviada dos nobres ideais: “Dissentimos, antes da cisão, de tudo isto – e nenhum de nós se pode escravizar a uma bandeira, porque a nossa oposição tem motivos superiores aos considerados vulgares dos manifestozinhos que por aí expluem.”[12]
Não parece correto filiar Euclides a qualquer escola filosófica ou literária. Ele, como outros de sua época, construíam a própria linha de pensamento, que defendiam. Euclides possuía, ainda, uma característica que nos parece comum aos gênios: a facilidade de rever e atualizar constantemente os próprios conceitos, uma vez que esta atitude é fundamental à evolução do ser humano, sem o mesquinho apego a teorias obsoletas. No discurso que faz sobre Castro Alves, deixa bem visível o alcance de sua percepção, ao dizer que não se pode julgar o poeta com os olhos do presente em que ele já não se encontra, é preciso saber enxergá-lo no contexto histórico-social da época em que viveu.
Por ironia do destino, a cidade que imortalizaria Euclides e o reverenciaria ininterruptamente por um século seria a que ele tanto desprezou no início, embora não se fale disto. Quando aqui esteve Menotti Del Picchia e, ao assistir à romaria até a cabana euclidiana, em um 15 de agosto, fez uma apreciação pejorativa do evento, que provocou protestos dos integrantes do grupo “Por protesto e adoração”. Mas nada jamais se falou a respeito de apreciação semelhante feita pelo próprio Euclides a respeito de festejos relativos à ponte metálica que construíra.
Em 22 de maio de 1902, de Lorena, escreve a Escobar, em resposta às notícias que o amigo lhe dera dos festejos do aniversário da ponte, lamentando esta não estar num dos trechos do “incomparável Paraíba”. E critica, ainda, a comemoração com foguetes, bandeirolas velhas, assobios dos moleques e os tabuleiros de doces, chamando-os de “matéria-prima do que nesta costa d´África da América” chamavam-se manifestações. Parece-nos uma incoerência: o bárbaro rejeita a homenagem que lhe é prestada pelos simples.
Assoma-lhe o tapuia ao dizer, a Coelho Neto, em 3 de dezembro de 1902, que escrevera como “recurso para apelar para as gentes do futuro, para as quais especialmente, está escrito aquele livro mau e implacável.”[13] Nessa mesma carta, o escritor refere-se a “[...] esta Tebaida-caipira de Lorena [...]”, onde se encontrava, ou seja, no isolamento em que se achava, pois este é o significado da palavra “tebaida”.[14]
Mas não é o tapuia, e sim a retórica – arma importante para os gregos – que leva Euclides a escrever a Coelho Neto, em 16 de novembro de 1903: “Graças à minha rigidez nativa de caboclo, continuo bem nos steeple-chases desta profissão errante; e neste momento, ao meu lado, três pequenos titãs de um côvado de alto – toda a minha prole – perturbando-me consideravelmente com as suas risadas triunfais, cheias de vida.”[15] Os titãs, deuses que enfrentaram Zeus e os deuses olímpicos na sua subida ao poder, eram agora, metaforicamente, os filhos de Euclides, que enfrentavam o “grande deus”, ou seja, Euclides! Além da retórica, a superioridade do grego aflora no escritor.
. No Guarujá, em 1904, fala que se habituara ao local, ou melhor, este é que se acostumara com as distrações dele, com o seu costumeiro “ursismo” e a sua “virtude ferocíssima de monge e de dispéptico.” Era a fase após o sucesso estrondoso de Os sertões, mas da insegurança em relação ao futuro, sem algum trabalho melhor e sem produzir outra obra tão importante quanto a primeira.
Já na expectativa da partida para o Alto Purus, escreve a José Veríssimo, em 6 de setembro de 1904, deixando aflorar o desejo de afastamento daquela sociedade: “[...] a partida para o Alto Purus é ainda o meu maior, o meu mais belo e arrojado ideal.”[16]
É o “tapuia” que se agita ao chegar em Manaus, que se espanta com uma natureza que tanto estudara, porém imaginara muito além do que os livros lhe mostravam, que se desaponta com o Amazonas, que sente uma tristeza estranha diante da “terra amplíssima, maravilhosa e chata, sem um relevo onde o olhar descanse”; mas é civilizado do sudeste que sente o “aniquilamento orgânico” e se confunde com “o tumulto, a desordem indescritível, a grande vida à gandaia” daquela capital desordenada, que para ele é a “Cápua canicular dos seringueiros”.[17]
Euclides, por várias vezes, denomina-se “caboclo”, em algumas até acrescenta “malcriado e teimoso”. Vemos, no dicionário Houaiss, que “tapuia” traz, como um dos significados possíveis, “caboclo rude, ignorante”, portanto consideraremos também este significado aqui.
Em 5 de novembro de 1908, ele escreve a Otaviano: “Noutra carta direi mais sobre esta vida triste de caboclo malcriado e teimoso no seguir uma linha reta [...]”[18]
Em Machado de Assis, no conto Pai contra mãe, há um trecho que descreve o personagem Cândido Neves, que não consegue se estabilizar em nenhum emprego: “Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo.” O “caboclo rude” que Euclides insiste em utilizar para sua auto-descrição lembra-nos esse mesmo “caipora” de Machado... E caipora significa “infeliz ou azarado em tudo ou quase tudo que faz ou que lhe sucede” – não seria este também mais um significado possível para o “caboclo” em Euclides?
Em 13 de novembro de 1908, escreve a Oliveira Lima, questionando como lhe seria possível “traçar a linha reta da vida” com tantas mãozinhas a lhe puxarem “pelas abas do casaco”, mas explica que o seu conformismo era como o de todos que ganharam a reputação de “impulsivos ou de inconstantes”, não desejando aumentá-la com atitudes que parecessem precipitadas, porém acrescenta que essa resignação não seria ilimitada.
Confessa-se triste, pois mais um dos poucos amigos, Gastão da Cunha, partiria para Assunção, no Paraguai, fazendo-o sentir-se “cada vez mais solitário”, entre sujeitos nos quais ele distinguia pouco mais do que “os acidentes geométricos e mecânicos de formas em movimento.” A partida do amigo dava-lhe uma sensação de “despovoamento”.[19]
Em meados de 1909, Euclides começa a se preparar para o concurso à cadeira de Lógica do Colégio Pedro II, então aflora nele o humanista, que mergulha na “Caverna de Platão”, como ele mesmo confessa a Oliveira Lima, em 5 de maio de 1909. Mas o concurso foi bastante tumultuado, e Euclides se classificou em segundo lugar, precisando, assim, da intervenção de Rio Branco para ser nomeado para o cargo.
Desde a divulgação dos resultados do concurso, Euclides tenta provar a si mesmo que havia realmente merecido a nomeação, escrevendo aos amigos e repetindo sempre a mesma observação a respeito de Farias Brito, o primeiro colocado, “o cearense” que escrevia “há vinte e cinco anos uma interminável Finalidade do Mundo”, que “ninguém ainda lera.”
Talvez a dúvida em haver ou não agido corretamente, aceitando o cargo no colégio, somada ao estado de saúde do escritor, que se agravava, mais o contexto político da época, com o estado de sítio decretado no Rio de Janeiro, o Barão do Rio Branco apoiando o Marechal Hermes da Fonseca como candidato às eleições presidenciais e ao desespero por se ver abandonado também pela esposa, ou seja, todo esse conjunto de fatores provocaria a explosão do bárbaro e também do pensamento trágico que nele coexistiam, indo em busca da morte – dele, ou de Dilermando.
A porção de “grego”, que também podemos considerar de “humanista” em Euclides, por inúmeras vezes se manifesta em sua correspondência, particularmente nas fases de maior ascensão, como a dos primeiros tempos da Academia Brasileira de Letras e da missão no Acre.
Uma das características desse escritor é a fidelidade que manteve às amizades que, embora poucas, eram cultivadas pela correspondência constante, de que ele não se descuidava nunca. A Porchat, por exemplo, ele escreve, em 21 de abril de 1893, dizendo que “nada se perde abandonando uma estrela para abraçar um amigo.”[20]
O humanista que confia na evolução humana através da cultura, é visível no Euclides que estava sempre lendo, estudando, analisando. No escritor que se alimentava pelas leituras, como ele confessa a João Luís, em 26 de setembro de 1895: “Tenho-me dado perfeitamente na vida estudiosa que levo [...]”[21]
Mas o gênio é sempre flexível, não fica estagnado em suas teorias, portanto se em 1896 ele conta a João Luís que recebera uma crítica pela sua “seita positivista”, a que replica: “eu, positivista!”, já em 1904, escrevendo a Lúcio de Mendonça, ele relembra a entrevista que tivera com Floriano Peixoto, em 1893, e afirma que, naquela época, estava “sob o domínio cativante de Augusto Comte.” É possível, com esta informação, concluir que bem cedo Euclides já não se considerava mais positivista, portanto julgamos ser mais correto considerá-lo humanista, fundamentado na racionalidade humana como motor de todas as mudanças necessárias ao bem comum.
O escritor confessa ser determinista, ao declarar ao dr. Brandão: “Sou, como sabeis, um convencido das leis da hereditariedade: nada existe que combate (sic) a sede de dinheiro despertada na alma do italiano” –esta crítica ele irá desenvolver sutilmente em Judas Ahsverus, artigo de À margem da História, condenando o clero e a ostensiva riqueza do Vaticano. [22]
Euclides não se considerava ateu, mas panteísta, como ele mesmo afirma em sua correspondência, e a postura que assume perante a Igreja é a postura de um humanista secular: critica a riqueza, a hierarquia, os desmandos ocorridos desde a Idade Média até o início do século XX, a violência permitida pela Inquisição e outros pontos nevrálgicos que até hoje causam crises no interior daquela instituição. Ao pedir a Porchat um livro que Franco da Rocha possuía sobre “a mania religiosa”, fica bem claro o que pensava ele das religiões.
Três conceitos fundamentais do Darwinismo estão presentes tanto em Os sertões quanto na correspondência euclidiana: evolucionismo, organicismo e darwinismo social. E estes Euclides revela tanto em sua obra quanto em sua correspondência. “Este país é organicamente inviável”, diz ele a Escobar, em 25 de dezembro de 1901. Ou ainda ao mesmo amigo, em 21 de abril de 1902: “[...] a nossa raça (?) está liquidada. Deu o que podia dar: a escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está – a bandalheira sistematizada.”[23]
Como já salientamos, o humanismo é uma filosofia fundamentada na civilização greco-romana da antiguidade. O “grego”, em Euclides, também é marcado pelo uso que ele faz da retórica, do olhar trágico da vida, do ideal de herói trágico, que atribui ora a si mesmo, ora a amigos, como a Coelho Neto, em correspondência de 3 de dezembro de 1902: “É a fadiga heróica de um grego.”[24] Ou quando se refere a sua missão no Purus: “[...] o melhor serviço a prestar-se nesta terra, no atual momento, consiste sobretudo na seriedade, que é uma forma superior do heroísmo no meio deste enorme desabamento...” [...] “a partida para o Alto Purus é ainda o meu maior, o meu mais belo e arrojado ideal.”[25]
O escritor é, ainda, humanista, ao defender o consórcio da Ciência e da Arte: “O consórcio da ciência e da arte [...] é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano.”[26]
E ainda:
O escritor do futuro será forçosamente um polígrafo, e qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas por uma síntese mais delicada, excluída apenas a aridez característica das análises e das experiências. A verdadeira expressão artística exige, fundamentalmente, a noção científica do caso que a desperta e que, nesse caso, a comedida intervenção de uma tecnografia própria se impõe obrigatoriamente [...].[27]
Euclides defende a necessidade de um pensamento lógico: “vamos nos subordinando à falta de lógica, aos permanentes absurdos e aos desconchavos deste planeta que certamente está errado, palmarmente errado, na ordem moral e na ordem física.”[28]
Não citaremos exemplos aqui da intensa correspondência que o engenheiro-escritor mantém com os acadêmicos, tanto na ocasião de sua candidatura, como ao pedir votos por amigos, como Vicente de Carvalho. Nessa correspondência observamos um mestre em retórica, que articulava principalmente as candidaturas a pedido de Rio Branco, mesmo quando estava no Acre. Até ao pai ele escreve: “[...] infelizmente me obrigaram a ser candidato à Academia de Letras [...]”[29]
Euclides revela-se humanista em Os sertões, particularmente quando indica mestres-escola em vez de canhões; mas também o é em À margem da História, ao defender o seringueiro, preso na “mais criminosa organização do trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado egoísmo”; é o “homem que trabalha para escravizar-se”. Ele narra minuciosamente a situação terrível daquele trabalhador dos seringais e conclui que há uma “urgência de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos; e uma forma qualquer do homestead que o consorcie definitivamente à terra”[30]
Euclides revela também humanista em sua última carta, cinco dias antes de sua morte, a Otaviano: “A pobre humanidade é frágil, e para os seus juízos despropositados e injustos resta-nos a instância superior da consciência, que realmente nos absolve ou condena.”[31] E talvez o fato de não haver escrito “condena ou absolve” possa significar muito mais do que imaginamos.
O pensamento utópico talvez seja o que mais anima a vida de Euclides, nessas alternâncias entre o bárbaro, o grego e o idealista. Ainda jovem, em 20 de agosto de 1892, parece definir-se espelhado no herói de Zola, da obra Débâcle, que tanto elogia a Porchat, alegando ser o melhor livro daquele escritor francês, cujo personagem principal é o “ingênuo, heróico e esperançado – tenente Rochas”, que “se agita tão brilhante e tão bravo.”
E talvez essa obra tenha influenciado até mesmo a redação de Os sertões, pois o escritor afirma: “Zola fecha um capítulo estrugidor e fulgurante, cheio de metralhas e mortes e extraordinários heroísmos, com aquela nota profundamente humana e tranqüila.”[32]
Nessa carta, afirma haver visto em Os simples, de Guerra Junqueiro, “a feição franca e ousadamente revolucionária”, que ele via e aplaudia, pois as “duas únicas qualidades necessárias aos inovadores, aos revolucionários” eram “talento e desassombro.” Para ser revolucionário é mister ser idealista... daí a ousadia do jovem militar que, ao atirar o sabre aos pés do Ministro da Guerra, no final da Monarquia, já diria muito sobre essa veia utópica do cantagalense.
Ao referir-se à morte de Deodoro da Fonseca, volta novamente à noção de heroísmo:
[...] a dolorosa impressão que me causou a extinção da mais bem modelada e corretíssima figura de herói dos últimos tempos da nossa pátria...” Herói contra o qual ele se arrepende de haver conspirado, reconhecendo-se idealista demais: “Remorso de haver conspirado um dia contra o ditador ... o quanto é frágil e insignificante em si essa majestosa justiça da história que explui por aí na boca dos sonhadores como nós, essa justiça incorruptível da história, que assusta a tanta gente.... que no entanto corrompe-se escandalosamente em troca de uma emoção mais ou menos intensa...”[33]
Parece que seu temperamento continuou, por muito tempo, a ser o de um revolucionário, ao menos na teoria. Escreve a Porchat, em 21 de abril de 1893: “[...] bato palmas à revolução do Sul... quando nesta terra não há quem saiba viver à luz dos princípios, existe uma minoria que sabe morrer por eles.”[34]
Euclides tinha saudades “daquela minoria altiva anterior ao 15 de novembro”, afirma em carta ao Dr. Brandão, pois para o escritor “Restauração teria o valor de fazer ressurgir a legião sagrada mais enérgica e mais orientada, capaz de vencer com mais dignidade e com mais brilho.”[35] Era, igualmente, a idealização do heroísmo da época da juventude, com que ele continua sonhando em 14 de março de 1897, sob o impacto das notícias que chegavam de Canudos, ao escrever a João Luís: “Felizmente a geração heróica de 15 de novembro está ainda robusta.” Ou ainda em 1 de abril de 1897: “A República é imortal [...] eu acredito que ela afinal galvanizará este povo agonizante e deprimido.”[36] Ainda em 23 de julho de 1897: “Felizmente a República é imortal! Resistirá quand même, a despeito de tudo.”[37]
Em 12 de agosto de 1897, já na Bahia, escreve ao General Solon: “[...] porei de lado todas as afeições para seguir retilineamente... Trago à Bahia a mais nobre e elevada aspiração e hei de realizá-la [...]”[38]
Em 25 dezembro de 1901, já com Os sertões buscando publicação, escreve a Escobar, contando que deixara o livro na Laemmert e fizera um contrato “desvantajoso” para ele: “Já vês que os pobres jagunços [...], afinal, que dessem a palavra ao seu [...] advogado diante da História. E este papel satisfaz inteiramente a minha vaidade.”[39]
E é também para Escobar que ele diz, em 21 de abril de 1902: “A Monarquia só nos poderia se fosse heróica. Uma monarquia guerreira e atrevida. Imagina um Carlos XII arremessando-nos sobre o Prata subjugando a Argentina...”[40] Por mais de uma vez Euclides exprime esse pensamento de subjugar esse país vizinho do Brasil.
Em 17 de setembro de 1902, falando de si mesmo e de Escobar, em carta a este, Euclides afirma: “- nós outros, idealistas incorrigíveis, damos o nosso diário combate ao Tédio e à Tristeza ”[41] – confessando, assim, o idealismo que mantinha seus pensamentos e desejos em objetivos grandiosos e coletivos, bem distantes das pequenas coisas práticas do dia a dia.
Por ocasião da candidatura de Euclides à ABL, em carta a Lúcio de Mendonça, de 20 de junho de 1903, o escritor refere-se ao mesmo exemplo que dera a Coelho Neto: “de uma sanguinolenta comédia vulgar nos anfiteatros romanos, em que o patrício desfibrado e trôpego, vestindo a armadura e armado até os dentes ia garbosamente se bater com o gaulês desnudo e empunhando uma espada de pau. Serei o gaulês.”[42] E quando ele se compara ao gaulês, é o afloramento do celta, antigo habitante da Gália, mas também do bárbaro, nu e com uma arma primitiva na mão.
O autor de Os sertões continua sendo um sonhador pela vida afora... Empolga-se com a idéia de sua candidatura a deputado, abortada no nascedouro quando ele afirmou não transigir nem mesmo na carreira política, mas continuar a mesma linha reta que traçara na vida. Ora, no Brasil isto é impossível, pois desde o início esta República transformou-se em uma política de conchavos, daí não nos surpreender o fato da candidatura do escritor ter sido abortada antes de nascer!
Parece que até mesmo Escobar considerou, algumas vezes, Euclides excessivamente sonhador, como se vê na resposta que o escritor dá ao amigo que estava ocupando um cargo político em Jaguari, no interior de Minas e que parece ter escrito a Euclides para pedir que fizesse algum projeto para o local. A carta é de 25 de março de 1908:
Não é tal utopia a minha ida. Irei. Irei muito breve, com o maior prazer, para abraçar-te e prestar pequeno serviço aos nossos bons patrícios desta zona. Mas quero que me mandes um itinerário firme; que me digas se a estrada atual poderá ser aproveitada para o novo sistema de viação – ou se teremos de projetar uma outra – e se poderás encontrar-me no último ponto da estrada de ferro.[43]
No dia 10 de abril, o engenheiro novamente escreve ao amigo de Jaguari, explicando o motivo da demora em empreender a viagem combinada e confessa, ao falar da candidatura a deputado, incentivada por Escobar: “Sou o mesmo romântico incorrigível. A idealização submeto-a aos estudos mais positivo, envolvo-a no cilício dos algarismos, esmago-a no peso das indagações as mais objetivas e ela revive-me, cada vez maior, e triunfante.”[44]
No entanto, Euclides vai somente a São Paulo, onde se encontra com Escobar, e não a Jaguari, como antes planejara. E, ao final, como já dissemos antes, desiste da candidatura, mas não deixa, porém, de continuar a ter sonhos que não se concretizariam, como a sugestão feita a Alberto Rangel, quando este estava na França: “Quem sabe se eu não poderia lecionar a história sul-americana em Paris?”[45]
É na carta a Regueira Costa, em que Euclides comenta os fatos referentes à morte de Machado de Assis que se percebe a visão simultaneamente trágica e utópica que ele possuía a respeito da existência humana: “Realmente ele que fora esquivo, tão tímido, tão retraído que a multidão parecia começar-lhe a partir de três ou quatro pessoas [...] tão aparentemente fugitivo à popularidade – teve os funerais de um triunfador.” E ainda:
E a sua morte – uma resplandecente apoteose – revelou, de golpe, que não foram perdidos os seus quarenta anos de vida literária – porque nas manifestações que a rodearam, e foram as maiores que ainda fizeram neste país a um escritor – se observou pela primeira vez entre nós, abalando todas as camadas sociais, o prestígio da magistratura superior do pensamento.
Deste modo o mestre foi um triunfador: não lhe bastou criar a golpes de talento a própria imortalidade, senão também que ao mesmo passo contribuiu para se educar o meio capaz de a compreender, e de a conservar.
O quanto esse “sepultamento triunfante” teria influenciado Euclides, no momento em que não via mais possibilidade de ascensão na vida profissional, nem de felicidade na vida pessoal e com as piores perspectivas para a saúde? Logo depois, em 13 de outubro, escrevendo a Agustín de Vedia, o engenheiro reclama por ser reconhecido apenas como autor de Os sertões, dizendo: “porque aquele livro bárbaro de minha mocidade, monstruoso poema de brutalidade e de força – é tão distante da maneira tranqüila pela qual considero hoje a vida, que eu mesmo às vezes custo a entendê-lo.” Não se conforma com os “críticos atrevidos” que afirmam ser esse o seu “único livro”, e rebate: “Repugna-me, entretanto, admitir que tenha chegado a um ponto culminante, restando o resto da vida para descê-lo.”[46]
Essa não seria uma forma idealista de pensar? Antes morrer no auge da fama, a ter que viver a decadência após o apogeu? O quanto esse pensamento teria se fixado na mente de Euclides, até o dia da fatalidade que o levou para sempre, transformando-o em herói, exatamente como era seu desejo? Por muito tempo evitou-se abordar este tipo de questionamento, porém cremos ser ele necessário ao entendimento do modo de pensar euclidiano.
Mais intrigante ainda é este trecho da carta a Alberto Rangel, de 24 de outubro: “Na carta anterior – assoberbado de uma onda de pessimismo, falei-te umas coisas estranhas. Uma cadeira de História Sul-Americana, em Paris!... Ó romântico escandaloso e recalcitrante que sou! Felizmente são loucuras inofensivas e absolutamente passageiras.” Gênio instável? Oscilação de humor? Estresse excessivo ou simplesmente mais um romântico sonhador, como ele mesmo se define, algumas vezes? Ou a tuberculose – que provoca, conforme especialistas, alterações na percepção dos limites entre a realidade e a fantasia – somada ao impaludismo lhe haviam provocado algum outro tipo de perturbação mental, dificultando, assim a percepção da realidade? Não é incomum esta ocorrência em cérebros geniais como o de Euclides.
Euclides não era religioso, todos sabemos. Como explicar, então, em meio a tantos percalços que lhe tumultuavam a vida, ele afirmar: “Mas um belo dia estarei a contemplar, de mãos vazias, a nossa esplêndida naturaleza. Ainda bem que me fortalece, hoje, uma plácida e augusta tranqüilidade, que me fará sorrir, amanhã, diante das maiores contrariedades.”[47] A carta que contém este trecho é de 3 de novembro de 1908, a Otaviano, seu cunhado. Com esse “contemplar a natureza de mãos vazias” ele não estaria se referindo à morte?
O idealista continua a ser o “caboclo malcriado e teimoso no seguir uma linha reta no meio das contorções e tortuosidades dos canalhas felicíssimos que o rodeiam.”[48] Isto em mais uma carta a Otaviano, em 5 de novembro.
Já atormentado com a situação profissional indefinida e a situação financeira exigindo uma renda fixa, escreve novamente a Otaviano, a 15 de novembro, pedindo-lhe um conselho sobre o que fazer, pois se ele deixasse, num rompante, a secretaria à qual continuava adido, não faltaria quem lhe reprovasse “mais esse atestado de inconstância ou falta de persistência.” E solicita ao cunhado: “ Otaviano, responde-me logo, com a mais completa franqueza. Não confio em mim só para resolver este caso, posso estar iludido, ou posso estar exagerando inconvenientes que não existem.”[49] Ora, este trecho revela não só a indecisão de Euclides a respeito de que caminho tomar, como também a consciência que tinha o escritor da força de sua imaginação, que por vezes poderia atrapalhá-lo.
Euclides não era vaidoso, às vezes aparecia com o casaco do terno abotoado de forma errada, afirmavam alguns de seus conhecidos e amigos. Mas andava de terno, sempre, até mesmo ao trabalhar na reconstrução da ponte, entrava no rio de terno, molhava-se todo, ficava, por vezes, horas até a roupa lhe secar no corpo. Não seria essa atitude uma preocupação com a imagem, não no sentido da beleza, mas para impor um certo respeito ao profissional? Ele também não compareceu a um jantar oficial oferecido pelo Barão às autoridades estrangeiras que passavam pelo Rio, simplesmente porque não se achava bem no terno que um amigo lhe arrumou, o que indica não gostar de causar má impressão!
Pois bem, e quanto a este trecho da carta de 29 de dezembro de 1908, a Vicente de Carvalho: “Ontem vi Emílio: barba de cinco dias, com muito fio branco; velho desalentado; e papada flácida... e tive pena.” Ora, esta não é a observação de alguém que teme ficar com aparência semelhante? Não haveria a fantasia de trabalhar para que ele se impressionasse ao imaginar como poderia ficar, ainda mais que sempre se considerara feio?
Em 1 de janeiro de 1909, retoma, em carta a Escobar, a conversa sobre o “projeto que me levará ao Jaguari”, conforme diz, combinando um encontro com o amigo em São Paulo.
Euclides estuda muito para o concurso de Lógica. Classifica-se em segundo lugar, há uma demora na decisão da nomeação; o Barão do Rio Branco interfere em favor do engenheiro. A honestidade do escritor manifesta-se à beira do idealismo, pois era esse emprego a sua última esperança. Escreve a Coelho Neto, em 25 de maio: “O revés desafoga-me: merecido castigo ao deslize de haver tentado deslocar um concorrente oficialmente mais amparado pelo Direito. A minha reta, diante das vacilações do Governo, é esta: renunciar. É o que vou fazer já, por telegrama.”[50] Conforme depoimento do próprio Coelho Neto, Euclides só não renunciou porque os amigos insistiram até convencê-lo de que isso seria seu fim e de que ele merecera o cargo.
Em 5 de julho de 1909, muito doente, como ele mesmo afirma na carta a Otaviano, ainda confessa ser “o mesmo heróico pobretão de sempre”, porém com “um lugar fixo” e com a sua “velha disposição pela luta”
É também a Otaviano que escreve, em 6 de agosto de 1909, nove dias antes da tragédia da Piedade, dizendo que só com a nomeação e a posse no Colégio Pedro II é que havia descansado “o bárbaro”, termo que Euclides atribui a si próprio. Assentara-se o tapuia, porém já tramava o Destino o pensamento trágico do grego...
Tenta Euclides convencer-se, repetindo aos amigos que o primeiro colocado, Farias Brito, era autor de uma Finalidade do mundo que ninguém lera, e que escrevia há mais de vinte anos. Parece, no entanto, que o escritor não consegue provar a si mesmo que Brito não merecia ser nomeado... Em 8 de agosto, escreve a Otaviano, reclamando do meio asfixiante da política do Rio de Janeiro: “Já [...] vezes penso em romper a fundo com tudo isto: dois ou três artigos desabalados e rijos – tomando a frente de toda essa sujeira [...] canalha com o meu rubro desassombro de caboclo sans peur et sans reproche.”
Mas Euclides já não parecia ser considerado tão sem reprovação como gostaria de ser, depois da nomeação por influência de Rio Branco, das críticas publicadas contra ele (conforme cita nas cartas) e somente o autor de Os sertões, o escritor que fora o “advogado dos jagunços injustiçados” poderia saber como essa questão lhe incomodava a consciência! Tanto que acrescenta à mesma carta: “Mas no dia em que não houver mais trabalhos para o cartógrafo da Secretaria do Exterior... que desabafo! Como eu açularei nervosamente no rastro destas raposas insaciáveis a matilha feroz dos meus adjetivos implacáveis!”
Já pensando na reação do cunhado quando lesse aquelas palavras, acrescenta: “Deves estar espantadíssimo! Absolutamente não contavas com esta tirada do ex-rebelde da Praia Vermelha... Nem eu.” Eis o rebelde, o idealista, o utópico que insiste em permanecer no homem já cansado da luta inglória...
Há, no entanto, um trecho que merece mais atenção nessa correspondência. Ao dizer que nem ele esperava por aquela reação que teve, explica: “Escapou-me no final de um artigo de fundo, hipócrita, como a maioria dos que por aí se imprimem. E como a tua carta coincidiu com a leitura dele – apanhaste uns restos de rajada.” Que artigo seria esse que tanto o incomodara? Esta foi a penúltima carta que Euclides escreveu antes de morrer.
Nela fala o idealista, que imagina poder, sem ser repreendido numa época em que os mestres “modernistas” eram afastados e que havia uma verdadeira caça aos cientificistas que contrariavam os dogmas da Igreja, levar aos alunos “a simples e límpida lógica de Stuart Mill, ao invés de transcendentais tolices metafísicas.”[51] Nessa carta ainda pulsa-lhe na mente a dúvida quanto à justiça de sua nomeação, pois novamente cita o vencedor que fora preterido na nomeação: “Diz-me a consciência que serei mais útil do que o funambulesco filósofo (diz- se ele o único filósofo brasileiro!) da Finalidade do mundo, que há 25 anos escreveu um livro que ninguém lê e estuda uma lógica que ninguém entende.”[52]
É ainda esse mesmo assunto que o atormenta na última carta escrita a Otaviano, em 10 de agosto de 1909: “A pobre humanidade é frágil, e para os seus juízos despropositados e injustos resta-nos a instância superior da consciência, que realmente nos absolve ou condena.”[53]
No dia 15 de agosto de 1909, num gesto cujos antecedentes talvez jamais serão conhecidos ao certo, pois seria preciso que ele, como vítima fatal, tivesse deixado um depoimento, Euclides pede uma arma qualquer emprestada ao primo e vai enfrentar o conhecido campeão de tiro, Dilermando de Assis, amante de Saninha. Foi para “matar ou morrer”, ou talvez muito mais para morrer do que para matar... Assim termina a existência de um gênio que era misto de tapuia, humanista e idealista, ou como ele mesmo se definiu: “misto de celta, tapuia e grego.”
BIBLIOGRAFIA
BERNUCCI, Leopoldo M. e HARDMAN, Francisco Foot (orgs.). Euclides da Cunha, Poesia reunida. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
Correspondência de Euclides da Cunha. Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti (orgs). São Paulo: EDUSP, 1997.
CUNHA, Euclydes da. À margem da História. Porto, Portugal: Livraria Chardron, 1926.
Documentos em meio eletrônico:
[1] BERNUCCI, Leopoldo M. e HARDMAN, Francisco Foot (orgs.). Euclides da Cunha, Poesia reunida. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 314.
[3] Correspondência de Euclides da Cunha. Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti (orgs). São Paulo: EDUSP, 1997, p.p. 32-33.
[9] Ibidem, p. 113. Não há referência a destinatário.
[10] Manuscrito pertencente ao arquivo da Casa Euclidiana.
[11] Ibidem, p. 120. O ano é de 1900, porém não constam o dia nem o mês.
[14] Cf. Dicionário Houaiss Eletrônico: lat. adj. thebàis,ìdes 'de ou relativo à cidade de Tebas, na Beócia, Grécia'; subst. lat. thebàis,ìdes 'habitante da cidade de Tebas, no Egito', p.ext.; 'retiro, isolamento', por terem vivido nessa região do Egito os eremitas dos primeiros tempos do cristianismo; f.hist. 1874 thebaida. In http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=tebaida&x=13&y=7&stype=k , acessado em 23/04/2010, às 00:05 hs.
[23] Ib., p. 128 e p. 133.
[30] CUNHA, Euclydes da. À margem da História. Porto, Portugal: Livraria Chardron, 1926, p. 26.
[31] Correspondência de Euclides da Cunha. Op. Cit., p. 426.
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