Parceiros
adm    
Euclides e o berço de Os Sertões
Usuarios Online: 1
02:10:29 , Saturday, 20 de April de 2024 , Boa Madrugada!

Menu
<< Próximo || Anterior >>

OS SERTÕES E O NOVENTA E TRÊS
2011-06-24 14:38:13

 

OS SERTÕES E O NOVENTA E TRÊS
Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva
Professora do Ciclo de Estudos Euclidianos
celinhafranchi@hotmail.com
 
 
RESUMO: Este artigo mostra as reminiscências hugoanas em Os sertões, na linha de pesquisar as fontes de Euclides da Cunha. Pressupõe que imagens evocadas da leitura do  Noventa e três passaram a fazer parte do referencial teórico de Euclides da Cunha e por isso aparecem muito à vontade em Os sertões, sem obrigar a citações diretas. Há coincidências formais: frases análogas, apelidos. Há coincidências de conteúdo: lances dramáticos de Os sertões têm como matriz episódios do Noventa e três, tais como a “matadeira”, o final trágico da expedição Moreira César, o combate tragicômico de Uauá, o cerco de Canudos, as crianças. Há coincidências de concepção: o jagunço é comparável ao aldeão vendeano pelo apego às tradições, religiosidade e anti-republicanismo. Há sobretudo coincidências de perplexidades: na Vendeia como em Canudos, é preciso salvar a República, mas a que preço? Quem são realmente as vítimas? Que significado teve a Vendeia? E Canudos? Ambos os livros apontam para soluções humanistas.  
 
Palavras-chave: imagem evocada, vendeano, jagunço, república, humanista.
 
            Noventa e três é um romance histórico de Victor Hugo que tem como pano de fundo a guerra da Vendeia. Euclides da Cunha tinha-o em mente, como “imagem evocada”[1], ao compor Os sertões.
Vendeia é um departamento da França, situado na costa oeste do Atlântico. Em fins do século XVIII, coberto de florestas e charnecas, habitado por camponeses, foi o palco da contra-revolução francesa.
Para os habitantes da zona rural, os ideais da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade) tinham sido traídos, porque as reformas de 1789 só beneficiaram a burguesia das grandes cidades. Os impostos continuavam a subir e os camponeses continuavam passando fome.
Em 1790, o governo decretou que todos os padres deveriam jurar fidelidade à Constituição da República: aqueles que se recusassem seriam expulsos de suas paróquias e proibidos de rezar a missa. Em janeiro de 1793, o rei Luís XVI foi guilhotinado. Católicos fervorosos e realistas convictos, os vendeanos cresceram em indignação e estavam dispostos a morrer pela religião e pela monarquia.
A França estava então ameaçada por uma poderosa coalizão de países europeus, que pretendiam derrubar a República e restabelecer a Monarquia no país. Por isso, nos primeiros meses de 1793, o governo da República recém-estabelecida ordenou o recrutamento de 300 mil camponeses, provocando uma insatisfação geral. Em 10 de março de 1793, dia marcado para o recrutamento, a insatisfação desandou em violência. Armados de foices, facas e porretes, 3 mil vendeanos reuniram-se ao toque dos sinos, invadiram vilas e massacraram centenas de soldados republicanos. Em menos de uma semana a insurreição se espalhou por quase toda a província e regiões vizinhas.
Desorganizados, mal-armados e sem treinamento militar, os rebeldes foram buscar apoio nas famílias nobres da província. O “grande exército católico e monarquista”, como se tornou conhecido, acumulou uma série de vitórias: de março a setembro, cidades inteiras foram tomadas pela turba, que chegou a reunir 40 mil pessoas.
 O governo revolucionário decidiu enfrentar a revolta da Vendeia no clima de “terror” então vigente: incendiar florestas e casas, derrubar cercas, retirar os animais e transformar a região em um deserto. O exército revolucionário tinha então a liderança de Jean-Baptiste Kléber, um dos melhores generais franceses da época, que, num banho de sangue, esmagou a revolta.
Para completar, em janeiro de 1794, tomando a liderança dos exércitos republicanos, o general Louis-Marie Turreau dispôs-se a destruir completamente o que ainda restava da Vendeia. Para isso, dividiu suas tropas em 12 colunas (mais tarde chamadas de “colunas infernais”) e fê-las percorrer a província de lado a lado, incendiando casas e bosques e massacrando quem reagisse. Velhos, mulheres e crianças foram trucidados sem julgamento, vilarejos arderam em chamas e nem mesmo os animais foram poupados. Mais de 100 mil pessoas morreram.
Calcula-se que o número total de mortos, incluindo os que tombaram nos combates regulares, esteve entre 250 e 300 mil – o equivalente a um terço dos habitantes da província (Cf. BOTELHO, José Francisco. Vendeia: revolução contra revolução. Disponível em: HTTP://historia.abril.com.br/guerra/vendeia-revolucao-revolucao-4341688.shtml. Acesso em: 30 jun.2010).
            Sobre esse pano de fundo, Victor Hugo construiu uma narrativa heróica e romanesca: o Noventa e três. O cenário é a Bretanha, com suas sete florestas, seus bosques, suas charnecas. Os heróis e bandidos são o velho Marquês de Lantenac, comandante em chefe dos rebeldes vendeanos, o jovem visconde de Gauvain, comandante em chefe do exército republicano na Vendeia, e Cimourdain, delegado do governo republicano, com plenos poderes, junto à força revolucionária comandada por Gauvain. Lantenac e Gauvain eram tio e sobrinho, pertencentes à nobreza bretã, colocados em lados opostos pela Revolução. O tio era radical e sem misericórdia; o sobrinho corajoso e capaz, mas clemente com o inimigo. Cimourdain, tão duro e radical como Lantenac, era um ex-padre, em quem a razão vencera a fé; tinha sido preceptor de Gauvain e amava-o muitíssimo.
            A luta, com atrocidades de ambas as partes, fazia-se em dois níveis: exército contra exército em batalhas regulares – e emboscadas contra os republicanos, feitas pelos aldeões que se entocavam em covas subterrâneas das florestas e bosques; estes surgiam repentinamente de toda parte com armas rudimentares, tomavam de assalto o inimigo, matavam, morriam, ou desapareciam de súbito assim como tinham aparecido, escondendo-se na mata.
            Lantenac era terrível e sem contemplação. Mandara incendiar uma aldeia que dera asilo a um batalhão republicano e fuzilar todos os habitantes e prisioneiros remanescentes. Ali estava uma viúva, a Senhora Fléchard, e seus três filhos, dois garotos e uma menina de 18 meses. Tinham sido protegidos do batalhão republicano executado. Lantenac mandou fuzilar a mulher e levou consigo as crianças como reféns.
            Entretanto, a Senhora Fléchard foi socorrida por um estranho mendigo, meio feiticeiro, que a levou consigo e conseguiu curá-la. Partiu, então, em busca dos filhos, perguntando por eles em todos os lugares por onde passava. Informaram-lhe por fim que as crianças estavam com o chefe vendeano e tinham sido levadas para uma torre situada no limiar da floresta: a Tourgue. Para lá se dirigiu.
            Depois de muitos combates e derrotas, a insurreição vendeana estava morta. Lantenac e seus 19 últimos combatentes refugiaram-se na Tourgue, cercados por 4.500 soldados republicanos de Gauvain e Cimourdain. Do alto da torre, Imânus, feroz lugar-tenente de Lantenac, fez uma proposta final aos republicanos: que os deixassem sair livres e eles lhes entregariam as três crianças; do contrário, ateariam fogo à torre e elas morreriam carbonizadas. Gauvain não aceitou. Começou o combate. Os republicanos conseguiram entrar na Tourgue.
            Os rebeldes terminaram por ficar reduzidos a sete. Quando os esperava somente a morte, surge dentro da Tourgue o marinheiro Halmalo, que estivera anteriormente a serviço de Lantenac, e abre-lhes a porta de um túnel secreto ligando a Tourgue à floresta. Saem seis e Imânus fica queimando os últimos cartuchos contra os republicanos invasores para garantir a fuga dos rebeldes.
            Para Lantenac e para os vendeanos essa fuga significava o recomeço da guerra, pois poderiam franquear um trecho da costa para o desembarque dos ingleses, seus aliados. Contudo, repentinamente, Lantenac, já livre na floresta, ouve um grito forte e dramático de mulher: era a Senhora Fléchard que se aproximara da Tourgue, vira-a fumegante e divisara seus filhos em meio às chamas. Imânus acendera o fogo antes de morrer.
            Lantenac volta pelo túnel secreto e, arriscando a vida, salva as crianças, entregando-as aos republicanos e à mãe. Cimourdain dá-lhe voz de prisão.
            Lantenac está encarcerado no calabouço da Tourgue, aguardando a hora de ser guilhotinado, ali mesmo. Gauvain passeia fora, imerso em meditações: conclui que seu tio se regenerara pelo resgate das crianças e decide soltá-lo. Entra no calabouço e troca de lugar com ele.
            No dia seguinte, em conselho de guerra presidido por Cimourdain, Gauvain é condenado à morte, apesar dos rogos de todos os seus comandados. No exato momento em que rolava sua cabeça, Cimourdain suicida-se com um tiro no coração. “E aquelas duas almas, irmãs trágicas, voaram juntas, confundida a sombra duma com a luz da outra” (HUGO, 1954, p. 406).
            Euclides da Cunha, antes de ir a Canudos, comparou a guerra sertaneja com a vendeana, tomando uma posição de “direita”, increpando jagunços e chouans[2]. São os artigos “A nossa Vendéia” I e II, publicados em O Estado de São Paulo (in CUNHA, 1995, v. II, p.605-612).
            O primeiro, de 14 de março de 1897, é em sua quase totalidade uma descrição da região semi-árida do extremo norte baiano, circunjacente ao rio Irapiranga, ou Vaza Barris, onde se alojou “a rude sociedade dos sertanejos”. O homem e o solo justificam a aproximação histórica expressa no título: em Canudos e na Vendéia, o mesmo terreno impraticável, o mesmo fanatismo religioso aproveitado pelos “propagandistas do Império”; a República passa aqui reveses semelhantes aos que lá passou - mas aqui, como lá, “sairá triunfante desta última prova”.       
A Nossa Vendéia II éde 17 de julho de 1897. Euclides repete o título, porque julga que a aproximação histórica esboçada no primeiro artigo se acentua definitivamente. As colunas do General Artur Oscar, em que pese aos reveses, caminham lentamente para a vitória. Têm, contudo, de enfrentar as peculiaridades da região e da guerra singular, de emboscadas e guerrilhas. Essas vicissitudes remoram a marcha dos soldados. Contudo, “as tropas da República seguem lentamente, mas com segurança, para a vitória”.  
     Os sertões, sem dúvida, aí estão em esboço. No livro, Euclides mantém o símile, agora problematizado, uma vez que se bandeara para a “esquerda”, depois de conhecer a guerra in situ e analisá-la em profundidade:
Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendeia. O chouan e as charnecas emparelham-se bem com os jagunços e as caatingas. O mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração política; as mesmas ousadias servidas pelas mesmas astúcias e a mesma natureza adversa ... (CUNHA, 1973, p.179-180).
 
            Embora não cite nominalmente o Noventa e três, Euclides tem-no como constante evocação em Os sertões.
            Há, primeiramente, coincidências linguísticas. Para significar que os vendeanos entocavam-se em covas subterrâneas a fim de defender-se, Victor Hugo diz: “Os homens enterravam-se” (HUGO, 1954, p. 183). Para indicar o ressurgimento das montanhas na região aplainada do interior baiano, na “Terra”, diz Euclides: “Desenterram-se as montanhas” (CUNHA, 1973, p. 36). Opondo o canhão dos soldados republicanos à rude artilharia dos vendeanos, na batalha de Dol, diz Victor Hugo: “A bala acaba sempre por ter razão” (HUGO, 1954, p. 214). Euclides da Cunha, no final de “O homem”, referindo-se ao massacre de Canudos pelas tropas do governo, cita igualmente a bala como extrema ratio: “... enviamos-lhes ... esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador – a bala” (CUNHA, 1973, p. 155). No Noventa e três, comentando a fuga de muitos rebeldes na citada batalha de Dol, o comandante vendeano diz: “Não é fugir, é retirar” (HUGO, 1954, p. 215). A contrario sensu, mas em contexto semelhante, Euclides da Cunha diz a respeito da expedição Moreira César, que debandara de Canudos: “A retirada era a fuga” (CUNHA, 1973, p. 240). “A Vendéia está morta”, decreta Cimourdain depois de prender Lantenac (HUGO, 1954, p. 355). Euclides usa frase análoga para significar o fim de Canudos: “A insurreição estava morta” (CUNHA, 1973, p. 361).
            Euclides cria apelidos para os canudenses: Joaquim Tranca-pés, Major Sariema, Raimundo Boca-torta, Chico Ema, Quinquim de Coiqui, Antônio Fogueteiro, José Gamo, Fabrício de Cocorobó (CUNHA, 1973, p. 151). Victor Hugo adotara o mesmo procedimento com os rebeldes vendeanos: Jacquet, o Corta-Ferro, Gaulier, chamado Pedro Grande (HUGO, 1954, p. 253), Hoisnard, chamado Ramo de Ouro, os dois irmãos Lança-Pau (HUGO, 1954, p. 265), Bela Vinha, Gaita de Fole, Amorzinho... (HUGO, 1954, p. 291). O Imânus da Vendeia é o Macambira de Canudos: o primeiro “era um coração cheio de insinuaçães tortuosas, aberto a todas as dedicações, inclinado a todos os furores” (HUGO, 1954, p. 210-211); o segundo, “espírito infernal no gizar tocaias incríveis” (CUNHA, 1973, p. 151).
            Algumas passagens do Noventa e três são a matriz de lances romanescos de Os sertões.
            No início da narrativa de Victor Hugo, há uma descrição da luta de um marinheiro para dominar um canhão, que, mal preso ao convés, soltara-se com o impacto das ondas e estava esmagando a tripulação; mais adiante, no aceso da luta, os aldeões defrontam-se com canhões inimigos, tomam-nos e dão-lhes apelidos:
 
Começaram por ter medo aos canhões; depois lançaram-se a eles com paus e agarraram alguns. Tomaram primeiro uma bela peça de bronze que batizaram com o nome de Missionário; depois outra que datava das guerras católicas e em que estavam gravadas as armas de Richelieu e uma imagem da Virgem; chamaram-lhe Maria-Joana (HUGO, 1954, p. 188-189).
 
     Nessas passagens está a inspiração da tomada da “Matadeira” em Os sertões:
 
O ódio votado aos canhões, que dia a dia lhes demoliam os templos, arrebatara-os à façanha inverossímil, visando à captura ou à destruição do maior deles, o Withworth 32, a “matadeira”, conforme o apelidavam (CUNHA, 1973, p. 293).
 
     No primeiro embate contra os republicanos, os rebeldes da Vendéia trucidam meio batalhão e despojam os cadáveres:
Os cadáveres eram de soldados. Todos estavam descalços; tinham-lhes tirado os sapatos, haviam-lhes roubado as armas; ainda conservavam os uniformes, que eram azuis (HUGO, 1954, p. 99).
 
     O mesmo fazem os jagunços com os soldados da expedição Moreira César, que haviam debandado deixando armas, munições e fardamentos pelos caminhos:
 
Enquanto isto sucedia, os sertanejos recolhiam os despojos. Pela estrada e pelos lugares próximos jaziam, esparsas, armas e munições de envolta com as próprias peças do fardamento... (CUNHA, 1973, p. 243).
 
     No combate de Dol, os vendeanos, aquartelados e adormecidos na única rua da cidade, são surpreendidos pela chegada repentina dos republicanos:
Todo este bivaque, que era mais um descanso de caravana do que um acampamento de tropas, pôs-se a dormitar tranquilamente. De súbito, à luz do crepúsculo, os que ainda não tinham fechado os olhos viram três peças de artilharia, apontadas à entrada da rua. ... Toda a malta adormecida levantou-se sobressaltada. Abalo rude. Adormecer sob as estrelas e acordar sob a metralha (HUGO, 1954, p. 212).
 
     A contrario sensu, em Os sertõesesse episódio é a matriz do combate de Uauá, onde a tropa de Pires Ferreira foi surpreendida pelos jagunços nas mesmas condições: à semelhança de Dol, Uauá tinha apenas “duas ruas desembocando numa praça irregular”; lá os expedicionários
 
aprestaram-se para continuar a marcha na manhã seguinte; e inscientes da gravidade das cousas repousaram tranquilamente, acantonados. Despertou-os o adversário, que imaginavam ir surpreender (CUNHA, 1973, p. 171-172).
 
     O cerco da Tourgue, onde 19 vendeanos, dispostos a lutar até a morte, estavam sitiados por 4.500 republicanos - lembra a cava quadrangular de Canudos, onde combatiam contra 5.000 soldados os 20 últimos jagunços, esfomeados e rotos (Cf. HUGO, 1954, p. 258 e CUNHA, 1973, p.391).
     No Noventa e trêsas crianças – raptadas, encarceradas, com risco de vida e finalmente libertadas - são o leit-motif. Em Os sertõesmarcam presença em contexto semelhante: Canudos estava completamente sitiado; os comandantes da quarta expedição percorreram-no quase totalmente e ouviram de dentro dos casebres ainda ocupados pelos jagunços “notas cruelmente dramáticas! – gritos, e choros, e risos, de crianças...” (CUNHA, 1973, p. 375)[3].
     O aldeão vendeano serve de inspiração para o jagunço de Canudos. Eram uma multidão “armada com espingardas, sabres, foices, enxadas e paus” (HUGO, 1954, p. 92); religiosos, estavam o dia inteiro “ de contas na mão” (HUGO, 1954, p. 186) e combatiam “com uma mão no mosquete e tendo na outra o rosário” (HUGO, 1954, p. 304). A natureza selvagem da Vendeia era sua aliada, protegendo-os e fazendo recuar o exército republicano:
Aquela parte da Selva, erriçada, inextricável era a auxiliar do fugitivo. A gente não desaparecia, sumia-se. Era essa facilidade das dispersões rápidas que fazia hesitar os exércitos franceses diante daquela Vendeia sempre a recuar, e diante daqueles combatentes tão formidavelmente fugitivos(HUGO, 1954, p. 335-336).
 
 
     Seu jeito de combater eram as emboscadas repentinas, saindo das tocas subterrâneas:
Exércitos ignorados serpeavam debaixo dos exércitos republicanos, saíam da terra de repente e tornavam a entrar, surgiam inumeráveis e desapareciam, dotados de ubiqüidade e de dispersão... (HUGO, 1954, p. 184).
 
 
     Em Os sertões, pelo menos no despertar do conflito, os jagunços também combatiam com armas rudimentares – e rezando:
 Os combatentes armados de velhas espingardas, de chuços de vaqueiros, de foices e varapaus, perdiam-se no grosso dos fiéis que alteavam, inermes, vultos e imagens dos santos prediletos, e palmas ressequidas retiradas dos altares (CUNHA, 1973, p. 172).
 
 
     A floresta protege o camponês vendeano, a caatinga faz com o jagunço o mesmo papel:
 as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu (CUNHA, 1973, p. 176).
 
 
                Os sertanejos de Canudos combatem emboscados na caatinga, como os aldeões vendeanos entocados na floresta:
... os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de toda a banda... De repente cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu. ... Passam-se minutos. No lugar da refrega, então, surgem, dentre moitas esparsas, cinco, dez, vinte homens no máximo. Deslizam, rápidos, em silêncio, entre os arbúsculos secos... (CUNHA, 1973, p. 177-178).
 
 
            Contudo, mais relevantes do que todas essas coincidências, pairam no Noventa e três e em Os sertõesas mesmas perplexidades: é preciso salvar a República, mas a que preço? Quem são realmente as vítimas? Que significa a Vendéia? Que significa Canudos?
            No romance de Victor Hugo, há, com efeito, “apenas uma urgência, a república em perigo” (HUGO, 1954, p. 123). Mas o comandante republicano Gauvain quer a “república do ideal”, “a paz”, “a miséria suprimida”, “ a igualdade”, “a escola” (Cf. HUGO, 1954, p. 392, 393, 395 e 396). Em Os sertões, Euclides, que já pensara na necessidade de salvar a república[4], opõe “outra reação”, “outra luta” ao argumento incisivo e moralizador da bala contra o sertanejo (Cf. CUNHA, 1973, p. 155).
     A Vendeia é “a guerra do espírito local contra o espírito central” (HUGO, 1954, p. 196), de bretões contra franceses (Cf. HUGO, 1954, p. 202); foi “a ignorância fazendo à verdade, à justiça, ao direito, à razão, à libertação uma longa resistência estúpida e admirável” (HUGO, 1954, p. 196). Mas protesta Imânus em nome da Vendeia:
Somos homens que habitamos a nossa terra, combatemos honradamente e somos simples com a vontade de Deus como a erva com o orvalho. Foi a república que nos atacou; ... que nos incendiou as casas e as colheitas ... (HUGO, 1954, p. 254).
     Faz eco a denúncia de Euclides, vingador de Canudos:
Insulado no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico, só podia fazer o que fez – bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão das descargas (CUNHA, 1973, p. 249-250).
 
     Enfim, Os sertões e o Noventa e três estão irmanados por coincidências de estilo, de episódios, de concepção - mas sobretudo de emoções e perplexidades: em ambos os livros, diante do sofrimento dos pequenos e injustiçados, as antinomias sociopolíticas se relativizam. 
      O que realmente aproxima Os sertõesdo Noventa e trêsé que seus autores são dois grandes humanistas.
 
REFERÊNCIAS
BOTELHO, José Francisco, Vendeia: revolução contra revolução. Disponível em: HTTP://historia.abril.com.br/guerra/vendeia-revolucao-revolucao-4341688.shtml. Acesso em: 30 de junho de 2010.
CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Cultrix/MEC, 1973.
CUNHA, Euclides da. Obra completa. Edição organizada sob a direção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995, v. II.
DAMÁSIO, A. R. O Erro de Descartes. Tradução de Dora Regina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GALVÃO, Walnice Nogueira; GALOTTI, Oswaldo. Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo: Edusp, 1997.
HUGO, Victor. Noventa e três. Tradução cuidada. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1954. [Coleção “Os Grandes Romances do Povo”].


[1]Para A. R. Damásio (O Erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 123 e segs), a cognição se faz pela combinação de imagens perceptivas, ou instantâneas, e imagens evocadas, ou armazenadas na memória, permeadas por conhecimentos inatos e por um componente emocional. Assim, é natural que todo referencial teórico se aproprie de imagens evocadas, que ficam muito à vontade ao lado das perceptivas.
[2] Aldeões vendeanos. Metonímia de Jean Chouan, chefe de guerrilha.                                                                                                                                              
[3]O drama das crianças afetou tão profundamente a Euclides, que ele trouxe consigo de Canudos um jaguncinho, para salvá-lo daquelas atrocidades. Muito tempo depois, recebe carta dele, à qual responde afetuosamente. Do Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1908, escreve a Ludgero Prestes (o jaguncinho): “Recebi a tua prezada carta de 3 do corrente; li-a com surpresa indescritível, verdadeiramente encantado; e não poderei traduzir-te a minha comoção ao ver aparecer-me quase homem – e homem na mais digna significação da palavra – o pobre jaguncinho que me apareceu pela primeira vez há onze anos no final de uma batalha. ... O que fiz, foi, na verdade muito pouco: - o trabalho material de livrar-te das mãos dos bárbaros e conduzir-te a São Paulo” (Cf. GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 380).
[4] Em 14 de março de 1897, antes de ir a Canudos, de São Paulo, escreve a João Luís: “Creio que como eu estás ainda sob a pressão do deplorável revés de Canudos aonde a nossa República tão heróica e tão forte curvou a cerviz ante uma horda desordenada de fanáticos maltrapilhos...” (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 103) 

 
Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva
 
Apoio
Protéton