semana euclidiana: de maratonista a professor do ciclo de estudos
Leandro Leal de Freitas.
Licenciado em Ciências Sociais pela UNESP, Campus Araraquara.
rESUMO: O presente texto visa apontar aspectos gerais da história da Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo, bem como descrever aspectos da trajetória de minha vida ligada ao movimento euclidiano. Procuro relacionar o encadeamento histórico dos eventos euclidianos, na medida em que foram sendo criados, ressaltando, sobretudo, a importância do Ciclo de Estudos Euclidianos e da Maratona Intelectual Euclidiana. Por fim, faço apontamentos sobre minha trajetória dentro desse importante movimento, partindo da condição de maratonista até chegar a professor do Ciclo de Estudos.
Palavras-chave: Semana Euclidiana; Ciclo de Estudos Euclidianos; Maratona Euclidiana; Trajetória de vida.
I TRANSFORMAÇÕES EUCLIDIANAS
Em 15 de Agosto de 1912, data em que se completavam três anos da trágica morte de Euclides da Cunha, um grupo de pessoas decide se deslocar da sede administrativa do município até a cabana de zinco às margens do Rio Pardo num intento de rememorar e homenagear o amigo escritor. Era o início da Romaria Cívica em prol da memória de Euclides da Cunha, o que anos mais tarde viria a se tornar o encerramento da Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo, maior e mais perene evento cívico em homenagem a um escritor brasileiro.
Até a segunda metade dos anos 30 a Semana Euclidiana consistia, além da repetição da já tradicional Romaria Cívica, da realização de uma Conferência Oficial, onde grandes intelectuais brasileiros proferiam seus estudos acerca da vida e obra de Euclides da Cunha. É por volta de 1938, sob a responsabilidade do médico paulista Dr. Oswaldo Galotti, que a Semana Euclidiana chega a uma aproximação do seu formato atual, visando à realização de forma sistemática do conjunto de comemorações até então realizadas dispersamente. A partir de então a comemoração cívica é organizada e ampliada, reforçando, assim, as suas dimensões culturais, educacionais e esportivas.
É só em 1939 que o então recém-formado professor de português, Hersílio Ângelo, institui a Maratona Intelectual Euclidiana. Inicialmente criada apenas como forma de competição entre os alunos das séries finais do Ginásio Estadual Euclides da Cunha, ela se torna, em questão de anos, uma competição de nível regional, atraindo estudantes de várias cidades do interior paulista. É nesse momento que toma forma a figura do maratonista, alcunha dada ao estudante que se submete à prova. Dessa forma, as “maratonas” passam, ao longo do tempo, a serem responsáveis por boa parte da revisão e manutenção do pensamento euclidiano.
“As ‘maratonas’ euclidianas foram criadas com duplo objetivo: promover jovens intelectualmente promissores e incentivar o estudo das obras de Euclides da Cunha”, aponta a euclidiana Carmen Trovatto. Os estudantes locais e de vários pontos do país, em número maior a cada ano, passaram a se reunir na cidade com o intuito de conhecer e/ou aprofundar os conhecimentos já existentes sobre a vida e obra do engenheiro-escritor. No dia 15 de Agosto, o último da Semana Euclidiana, os estudantes se submetiam à prova, já conhecida como Maratona Intelectual Euclidiana.
O professor Márcio Lauria, euclidiano de longa data, ressalta que “o próprio nome Maratona sempre procurou dar a idéia de que se tratava de algo competitivo, absorvente, apaixonante. Assim pensava o Prof. Hersílio Ângelo, seu instituidor nos longínquos anos quarenta”. Ser vencedor de tal prova era ser consagrado como o estudante que melhor compreendia a obra de Euclides da Cunha, em seus variados aspectos. Em síntese, conquistar o primeiro lugar era o mesmo que ser reconhecido por possuir certa superioridade do saber e do conhecimento, o que garantia a esse estudante, além de prêmio em dinheiro, um considerável reconhecimento social.
Com o passar dos anos, um número cada vez mais expressivo de estudantes vinha para a cidade a fim de se submeter à Maratona; grande parte chegava às vésperas da prova, enquanto outros, já na intenção de melhor se preparar, chegavam dias antes para assistirem às conferências. “Reunidos na Casa Euclidiana, professores e alunos, passou-se naturalmente à análise das dificuldades que os temas da Maratona poderiam oferecer. Essa análise transformou-se em debates, aulas, exposições...”, acrescenta Marcio Lauria. Nascia assim, de forma embrionária, o Ciclo de Estudos Euclidianos.
Coube a Marcio Lauria, acompanhado de alguns outros euclidianos, a organização e sistematização, por volta de 1966, do Ciclo de Estudos Euclidianos. Tornando-se a atividade de maior amplitude cultural e educacional da Semana Euclidiana, o Ciclo tinha clara missão de oferecer subsídios teóricos para melhor preparar os estudantes que seriam submetidos à Maratona. Para tanto, eram convidados professores da cidade e da região para ministrarem aulas, palestras e conferências aos alunos. Esse fato contribuiu sobremaneira para um aprofundamento teórico nas temáticas euclidianas, uma vez que os professores eram de altíssimo nível intelectual e se dedicavam com afinco aos estudos euclidianos. Uma enormidade de estudos surgiu com o intuito de serem apresentados durante o Ciclo de Estudos, os quais abordavam as temáticas euclidianas segundo o prisma da Literatura, História, Geografia, Sociologia, entre outros.
De lá pra cá, a Semana Euclidiana tem sido realizada anualmente, de forma ininterrupta, chegando à sua 98ª edição. O Ciclo de Estudos foi ampliado, deixando de ser exclusivamente direcionado a estudantes secundaristas para realizar atividades previstas a maratonistas que estejam cursando da 3ª série do Ensino Fundamental até o Ensino Superior. Outros eventos foram sendo integrados aos já existentes, dando forma à Semana Euclidiana nos moldes que conhecemos hoje.
II TRAJETÓRIA PESSOAL: DE MARATONISTA A PROFESSOR DO CICLO DE ESTUDOS
Em 2005, ano em que cursava o 3° ano do Ensino Médio, tomei conhecimento da existência da Semana Euclidiana por intermédio de uma amiga que havia participado do evento no ano anterior. Com o peculiar entusiasmo dos ex-maratonistas, minha amiga Mágellan me mostrava as fotos, os jornais, os apontamentos tomados durante as aulas. Tudo bem conservado tamanho o carinho com que ela manuseava esses materiais. Conheci em detalhes, mesmo que por fotos ou relatos, os locais mais queridos e visitados, bem como os professores mais admirados.
Ansioso que sou não consegui esperar a data de abertura das inscrições para iniciar meus estudos. Pedi os materiais do ano anterior emprestados, me dirigi à biblioteca municipal da minha cidade e fiz buscas na internet. Pronto, agora eu dispunha de uma quantidade razoável de escritos sobre a vida e obra de Euclides da Cunha. Dediquei-me com esmero, passando noites em claro tentando ler e decifrar o magnífico Os Sertões. Tão logo se iniciaram as inscrições, tratei de fazer a minha. Receoso de ir sozinho convidei e praticamente obriguei outras três amigas a irem comigo – Aline, Thaína e Mágellan.
Chegada a hora, partimos rumo à semana mais esperada do ano. Era tanta ansiedade que mal conseguíamos parar quietos no banco do carro. E eis que, ao chegar a São José do Rio Pardo, somos recepcionados por um grupo de maratonistas em estado latente de empolgação e entusiasmo. Meu primeiro gesto foi, quase que inconscientemente, correr em direção à casa onde viveu Euclides e sua família, agora transformada em Casa de Cultura Euclides da Cunha. E quanta emoção eu senti ao pisar no mesmo chão onde Euclides pisara!
Os dias foram passando e a paixão pelo movimento euclidiano crescendo vertiginosamente à medida que eu ia tomando contato com os ritos e mitos próprios desse movimento. Foram emocionantes os encontros com os professores mais queridos da minha amiga, agora também os meus. Era contagiante a alegria e satisfação que eles nos transmitiam. Ali, rodeado por outros maratonistas, a essa altura já tratados como amigos de infância, tomei algumas importantes decisões para minha vida.
De todos os planos traçados, dois merecem destaque: a escolha da carreira a seguir e a meta de me transformar em professor do Ciclo de Estudos. Até então meu objetivo era cursar Jornalismo e me especializar, se possível fosse, em jornalismo político. Eu vinha alimentando esse sonho havia anos, desde a minha infância, quando os professores ressaltavam minha facilidade em escrever e o meu interesse nas questões propriamente políticas. Mas tudo mudou a partir do momento em que tive contato com textos abordando aspectos sociológicos de Euclides da Cunha. Os primeiros deles foram encontrados em materiais dos anos anteriores, o que me despertou o desejo de conhecer uma importante figura do movimento euclidiano rio-pardense: o professor Adelino Brandão. Era ele que, com muita propriedade, ficava responsável por apontar e discutir os conceitos sócio-antropológicos inerentes aos escritos euclidianos. Foi por intermédio de textos dele que conheci a carreira à qual escolhi me dedicar: a de Cientista Social.
Não só de momentos bons vivem as Semanas Euclidianas. Em 2005, ao questionar sobre a possível participação do professor Adelino, obtive a triste notícia: ele falecera no ano anterior. Infelizmente não tive o prazer de ter contato pessoal com tão nobre euclidiano, mas sinto-me profundamente agradecido a ele por ter sido o responsável por despertar em mim o gosto pelas questões sociais. Certamente hoje eu não saberia ser outra coisa senão cientista social.
A segunda decisão, decorrente também da primeira, era a meta de me tornar professor do Ciclo de Estudos. Tive a certeza de que era isso mesmo que queria ao ter contato com outros importantes euclidianos, os quais me mostraram, através do exemplo de vida, quão gratificante é a tarefa de ser difusor dos conhecimentos euclidianos. Trata-se dos meus mestres euclidianos, aos quais devoto imensa gratidão, respeito e admiração: Nicola Costa, Rachel Bueno, Guilherme Garcia, Maria Olívia Arruda e Cidinha Granado. Sem desmerecer as contribuições dos outros euclidianos, esses cinco professores despertaram em mim o desejo, para não dizer obrigação, de contribuir para a manutenção e difusão do movimento euclidiano.
Ao final dessa minha primeira Semana Euclidiana, quase que como um rito de passagem, me debrucei sobre a prova da Maratona Intelectual. Dediquei-me ao máximo, estudei durante meses, e ali estava eu frente à tão esperada e temida prova. Tratei logo de ler as questões e encadear os pensamentos a fim de respondê-las. Confesso que o espaço reservado para apontar as respostas não era suficiente para descrever tudo o que aprendi durante a Semana. Me esforcei e sintetizei os conhecimentos apreendidos. Respostas devidamente escritas, folha da prova entregue. Enfim, se fecha o ciclo da Semana Euclidiana.
De todo modo, certa vez ouvi, proferida pela professora Rachel, uma frase que ela atribui a um antigo professor do Ciclo, que dizia: “A Semana Euclidiana começa no dia 16 de agosto, quando você volta à sua cidade de origem e inicia as mudanças”. Sim, ele tem razão; contudo, acrescento: no meu caso, a Semana começou antes mesmo que eu tivesse contato físico com ela, no momento em que me debrucei sobre os estudos euclidianos e passei a melhor compreender o mundo em que vivo através deles.
Embora tivesse adquirido importantes conhecimentos sobre a temática euclidiana, não me logrei vencedor dessa primeira Maratona. Ao conjunto de minhas respostas foi atribuída a nota 7,5. Contudo, apesar de não ter sido classificado entre os primeiros colocados, não fiquei abatido; pelo contrário, me senti obrigado a me dedicar cada vez mais àqueles estudos, uma vez que pretendia voltar a participar da Maratona no ano seguinte.
Em 2006, já cursando Ciências Sociais na Faculdade de Ciências e Letras – UNESP de Araraquara, retornei à Semana - participando, agora, da Área III, destinada aos universitários-, com o intuito de aprofundar meus conhecimentos e me dedicar especialmente às apropriações sociológicas da obra euclidiana. Na noite do penúltimo dia, véspera da Maratona, vários maratonistas, inclusive eu, se queixaram de dores abdominais, vômito e diarréia. Tratava-se de uma virose, a qual foi sendo facilmente transmitida em razão do contato próximo entre nós. Passamos a noite do dia 14 e a manhã do dia 15 no hospital. Alguns se recuperaram rapidamente, mas eu e mais três maratonistas permanecemos em observação por conta do nosso enfraquecimento. Mas e a Maratona? Ao chegarmos do hospital, próximo do horário do almoço, fomos informados de que a nossa prova seria aplicada ali mesmo no alojamento, no período da tarde. E foi assim que respondi, enfraquecido e em meio às dores, a questão a nós proposta.
Meses depois foram divulgados os resultados e tamanha foi a minha surpresa ao notar que eu, mesmo tendo feito a prova naquelas condições, havia sido classificado em 2º lugar. Esse fato contribuiu, de forma decisiva, para a minha disposição em me dedicar aos estudos euclidianos. A partir daí, de forma mais enfática, passei a pesquisar e escrever textos sobre o universo euclidiano. Como estudante de ciências sociais me propus a compreender a Revolta de Canudos a partir das visões de seu líder, Antônio Conselheiro, para depois contrapô-la à visão apontada por Euclides da Cunha em Os Sertões. Foi com o intuito de contribuir para esse debate que me inscrevi e participei da minha terceira Semana Euclidiana, em 2007.
Foi na 95ª Semana Euclidiana, no ano de 2007, que obtive o melhor aproveitamento do Ciclo de Estudos. Tendo ido com uma temática de interesses já delimitada, passei a apreender os conhecimentos expostos com maior profundidade, ainda mais quando o tema era ligado ao que eu pesquisava. Ao fim da Semana me submeti à tradicional Maratona Intelectual. Foi com imenso gosto e dedicação que respondi à única pergunta a nós proposta: “Em que os estudos desta Semana Euclidiana, subordinados ao tema ‘Contrastes e Confrontos no Brasil’, contribuíram para você melhor avaliar problemas brasileiros atuais, já percebidos e analisados por Euclides da Cunha há mais de cem anos?” Ao longo de quatro páginas, escritas em letras miúdas, passei a descrever a profunda mudança que eu havia sofrido durante a participação das Semanas Euclidianas. Eu havia me tornado outro, decisivamente!
As provas foram corrigidas e, enfim, me logrei vencedor da Maratona Intelectual Euclidiana, na área III - Universitários. Todo o meu esforço e dedicação despendidos durante cerca de três anos agora estavam sendo reconhecidos. O reconhecimento obtido, sobretudo entre os próprios participantes do movimento euclidiano, inflava o meu ego e me deixava excessivamente contente. Recebi inúmeras homenagens, algumas ressaltando o valor simbólico obtido no título de Vencedor da Maratona Intelectual; outras apontando personalidades ilustres que haviam alcançado o mesmo êxito, como o exemplo do já citado professor Adelino Brandão, ou até mesmo do atual Secretário Nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, ambos vencedores de Maratonas Intelectuais. Foi nesse ínterim que pude compreender, pois senti “na pele”, o que a professora Carmem Trovatto aponta: “A maratona é um torneio de puro prestígio intelectual, com o objetivo de destacar o valor e o mérito da inteligência, da perseverança, do patriotismo, da determinação e da moralidade, a partir do exemplo de Euclides da Cunha”. E foi assim que fui tomado, também, como exemplo a ser seguido.
Porém, à medida que me sentia realizado, me sentia também obrigado, agora mais do que nunca, a me integrar e contribuir para esse tão importante movimento. Foi com esse sentimento, e visando atingir aquela meta estabelecida quando da minha primeira participação na Semana, que comecei a escrever o texto que submeteria à direção da Casa Euclidiana. E assim o fiz. Pesquisei, organizei os dados, escrevi. Depois de meses de dedicação, terminei o meu artigo e o enviei à Casa. O texto foi bem recebido e, mesmo que informalmente, proferi palestra aos estudantes da Área III já no ano seguinte, 2008.
Alguns euclidianos, como o caso do professor Adelino Brandão, percorreram caminho parecido com o meu. Entretanto, me sinto no dever de declarar que, ao estabelecer que passaria de maratonista a professor do Ciclo, me inspirei em duas importantes figuras do Movimento Euclidiano atual, justamente por eles terem percorrido caminho semelhante: os professores Rachel Bueno e Guilherme Garcia. Ambos participam das Semanas Euclidianas desde os anos 80, tendo sido integrados ao quadro de professores do Ciclo por conta dos inegáveis conhecimentos que possuem acerca das questões euclidianas.
De todo modo, na 97ª Semana Euclidiana, realizada no ano de 2009, meu nome já figurava entre os professores regulares do Ciclo de Estudos, fato que me deixou imensamente contente e realizado. Dado o pontapé inicial, pretendo participar de todas as Semanas Euclidianas futuras, procurando sempre contribuir da melhor forma possível para a manutenção, revisão e difusão do escritos de Euclides da Cunha, bem como do movimento euclidiano. Exemplos para seguir existem aos montes, iniciando-se com o do próprio Euclides da Cunha e passando pelo rico grupo de distintos euclidianos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abreu, Regina. O Enigma de Os Sertões. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Trovatto, Cármen. A Tradição Euclidiana: uma ponte entre a história e a memória. São Paulo: Arte & Ciência Editora, 2002.
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