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Euclides e o berço de Os Sertões
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A QUALIDADE DE OS SERTÕES COMO TEXTO LITERÁRIO
2011-06-24 14:57:07

 

A QUALIDADE DE OS SERTÕES COMO TEXTO LITERÁRIO
 
Prof. Jorge Luiz Boldrin
Licenciado em Letras e Pedagogia pela Faculdade Euclides da Cunha
Licenciado em Filosofia pela Universidade Metropolitana de Santos
 Prof. de Interpretação e Produção de Textos da Unip – Campus São José do Rio Pardo
 
 
RESUMO:      Os grandes pintores nos encantam pela maestria e magia da sua arte. Com tintas, pincéis e telas criam uma arte sublime e obras singulares que os tornam imortais. De forma similar, alguns escritores transformam as palavras em obras de arte, os textos literários, os quais nos mostram que, em Literatura, o mais importante está não só no assunto, mas na forma como este é escrito. Os Sertões são prova disso. Embora a Revolta de Canudos não tenha sido fato ficcional, Euclides da Cunha conseguiu não só expor o episódio, como também fazê-lo com arte literária.            
 
Palavras-chave: Os Sertões, literatura, função estética, plano de conteúdo, plano de expressão.
 
            Assunto que já mereceu e ainda merece acaloradas discussões, diferenciar o texto literário do não-literário não é tarefa fácil, mas é possível expor alguns critérios usados atualmente para caracterizar o texto literário e, a partir daí, compreender como a obra Os Sertões também se enquadra como um texto literário.
            Primeiramente temos que deixar claro que o texto literário pode abordar qualquer tipo de assunto, ou seja, não existe assunto exclusivo, característico desse tipo de texto, embora, em certas épocas, os textos literários privilegiaram certos temas. Assim, o conteúdo abordado e explorado não serve mais como fator diferencial para demarcar a linha entre o texto literário e o não-literário, tendo em vista que a Literatura pode contemplar qualquer natureza de assunto.
            Além desse ponto, outros especialistas estabelecem que a diferença entre texto literário e não-literário estaria no critério de que este se baseia no caráter não-ficcional, enquanto aquele, no ficcional. Em outras palavras, esses estudiosos consideram que o texto literário é ficção, ao passo que o texto não-literário relata a realidade efetivamente existente. Evidentemente, esses estudiosos não negam que o texto literário interprete aspectos da realidade escrita efetiva, mas o faz de maneira indireta, isto é, recriando o real num plano imaginário. Assim, quando, por exemplo, Jorge Amado, em Capitães da Areia, retrata a vida de crianças marginalizadas vivendo e sobrevivendo nas ruas da cidade, este retrato do real (crianças abandonadas e relegadas - problema tão comum em várias cidades do mundo), o escritor o faz num mundo imaginário, fictício; revelando assim a miséria e o abandono tão comuns a que muitas de nossas crianças estão sujeitas.
            Modernamente, considera-se que a diferença entre os dois tipos de texto em questão estaria na incidência de que o texto literário tem uma função estética e o não-literário tem uma função utilitária (informar, convencer, explicar, documentar, etc.). Dentro dessa vertente discorreremos sobre a qualidade literária de Os Sertões.
            Para distinguirmos a função estética, também chamada função poética, consideraremos dois textos. O primeiro trata-se de uma parte de um Boletim de Ocorrência, elaborado por autoridades policiais, o segundo é um excerto de Os Sertões, em que Euclides da Cunha relata as características do sertanejo nordestino.
 
Texto I
 
Por volta das 03h30min, a Central de Comunicações nos transmitiu que, segundo diversas solicitações, um indivíduo estaria caído na Rua Woofer, 66, Morro do Kid, perdendo muito sangue, pois fora esfaqueado durante uma luta corporal com um outro indivíduo. Comparecemos ao local, contudo a vítima não se encontrava mais ali, visto que fora socorrida por populares até o Pronto Socorro Central. Os circunstantes apenas nos relataram que o autor seria um cidadão conhecido pela alcunha de Zé Mix. Enquanto outras guarnições procuravam o autor, comparecemos ao Pronto Socorro, onde o médico de plantão nos relatou que a vítima já deu entrada naquele hospital sem sinais vitais, apresentando cerca de sete perfurações no abdome e nas costas, estando as vísceras expostas.
    
Texto II
 
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos* do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno**, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. (...)
É um homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se; (...) e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro***, reponta inesperadamente o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
 (CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984.)
*Neurastênico: indivíduo mal-humorado e irascível.
**Desempeno: elegância.
***Canhestro: desajeitado
 
            No primeiro exemplo, temos uma mensagem utilitária, cuja finalidade é relatar e informar. Quem lê esse texto não se importa, por exemplo, com o plano da expressão (os sons, os recursos estilísticos); perpassa-o e vai diretamente ao conteúdo para entender a informação. No segundo, porém, é o plano da expressão que nos desperta a atenção. Embora não seja ficção, o livro de Euclides da Cunha pode ser considerado uma obra literária pelo tratamento artístico a que o autor submeteu o assunto e a linguagem, além da visão critica que o autor teve ao analisar os fatos que presenciou na região de Canudos.
            No excerto da obra de Os Sertões, o plano de expressão já nos desperta atenção pelo emprego de palavras raras ou de uso incomum. O escritor apresenta, conforme dizem alguns, um “sertão vestido a rigor” e prova disso   são, por exemplo, os vocábulos utilizados: atonia muscular perene, cadência langorosa, figura vulgar do tabaréu canhestro. Além disso, o escritor emprega o artifício da antítese, figura de linguagem característica de seu estilo, para mostrar o lado oposto da mesma coisa, no caso, a aparência e atitude do sertanejo, tão bem sintetizadas na expressão “Hércules-Quasídomo”, simbolizando o belo-feio. Desse modo, o autor de Os Sertões constrói com relevância o plano de expressão, empregando recursos estéticos, recriando-o em sua organização, de modo a não somente veicular conteúdos, no caso, descrever o sertanejo, mas exaltar e admirar o sertanejo. Pelo plano de expressão, Euclides veicula um plano de conteúdo que nos leva a uma relação afetiva e simpática com o homem do sertão.
            Portanto, a grande característica do texto literário está na importância do seu plano de expressão que, articulado ao plano do conteúdo, contribui também para a apreensão global do texto. Para isso é necessário perceber a recriação do conteúdo na expressão e não meramente compreender o conteúdo, é preciso entender os significados dos elementos da expressão. Em outras palavras isto significa que, no texto literário, o autor não se importa apenas com o que se diz (conteúdo), mas o modo como se diz (expressão).
            Para finalizar, não poderíamos ignorar que outra característica do texto literário é sua intangibilidade, ou seja, o caráter intocável desse tipo de texto. Conforme bem asseverou o poeta francês Valéry,ao mencionar que, quando se faz um resumo do texto não literário, apreende-se o essencial; quando se resume o texto literário, perde-se o essencial. Tal afirmação não se faz mais providencial, uma vez que se fôssemos resumir os dois textos inseridos neste artigo, tal constatação seria óbvia. Resumir o relato do B.O. significaria ater-se a uma ocorrência simples e sem encantamento, enquanto que resumir a descrição do sertanejo feita por Euclides significaria perder o encantamento, prova que, no texto literário, o modo de dizer é tão (ou mais) importante quanto ao que se diz.
 
BIBLIOGRAFIA
 
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo, Cultrix, 1964.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984
FIROIN, José Luiz & SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo, Editora Ática, 2008.
TUFANO, Douglas. Estudos de literatura brasileira. São Paulo, Editora Moderna, 1992.
CAMPEDELLI, Samira Yousseff & SOUZA, Jésus Barbosa. Português – literatura, produção de textos e gramática. São Paulo, Editora Saraiva, 2002.

 
Prof. Jorge Luiz Boldrin
 
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