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Euclides e o berço de Os Sertões
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TRADIÇÕES EUCLIDIANAS
2011-06-24 14:58:29

 

TRADIÇÕES EUCLIDIANAS
Paulo Sérgio Herculano
Professor do Ciclo de Estudos Euclidianos
(pauloherculano@ig.com.br )
 
RESUMO: A Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo é, em si mesma, objeto de interesse, por representar manifestação cultural popular quase centenária. Seus rituais, personagens e longevidade reafirmam, a cada ano, a celebração da memória euclidiana em São José do Rio Pardo. Tanto quanto o estudo da tríade “A Terra / O Homem / A Luta”, o estudo do Movimento Euclidiano, como fenômeno cultural popular, merece atenção pelos pesquisadores, pois representa a mitificação do escritor por um povo que o adotou como seu representante.
 
Palavras-chave: Semana Euclidiana. Tradição. Manifestações culturais populares.
 
Quando falamos num acontecimento quase secular, como a Semana Euclidiana, inevitavelmente falamos na formação de tradições que se consolidam ao longo dos tempos, sempre como manifestação da vontade popular. Talvez esse seja o aspecto mais importante da formação das tradições populares – não se firmam por leis, decretos ou congêneres. Ou são aceitas voluntariamente pelo povo, ou não se firmam para a posteridade. Simples assim.
 
O movimento euclidiano é, em si, interessante objeto de estudos. Sob o pretexto de dissecar a obra euclidiana, a biografia de Euclides da Cunha, o tríduo “A Terra / O Homem / A Luta”, a própria Semana Euclidiana, ela mesma, é um fenômeno que merece a atenção dos que se debruçam sobre manifestações culturais em geral.
 
Não fosse assim, não teríamos ao menos duas obras excepcionais que analisaram o Euclidianismo com todas as suas particularidades e em toda a sua complexidade. “O Enigma de Os Sertões”, de Regina Abreu, e “A Tradição Euclidiana: uma ponte entre a história e a memória”, de Cármen Cecília Trovatto Maschietto, são duas obras que, nos tempos recentes, abriram nossos olhos para o estudo do Euclidianismo como um fato que, em si e por si, merece atenção, pela sua longevidade, pela sua história desde a formação, pelos rituais e mensagens subliminares nele envolvidos.
Chegamos, festivos, ao centenário da morte de Euclides da Cunha, rememorado ano passado. Daqui a alguns dias, em 15 de agosto, o célebre autor de “Os Sertões” será lembrado como um dos grandes nomes da Literatura nacional. Certamente, serão muitas as menções à forma como morreu, injustamente assassinado. Muitos falarão de seus livros (reparem no plural, eis que Euclides não é autor de um livro só, como tantos incautos pensam). Para muitos, as informações serão novidade. Para São José do Rio Pardo, contudo, nem tanto.
À afirmação de que a tradição euclidiana talvez seja nosso maior patrimônio imaterial equivale à certeza de que é preciso preservar a memória, sobretudo entre as novas gerações, eis que tradições são, sim, objeto que pode morrer. Valho-me dos dizeres da professora Cármen:
A tradição euclidiana, característica da cultura de São José do Rio Pardo, integra-se à memória e à identidade coletivas, podendo ser considerada uma construção longa, um investimento sociocultural, um capital simbólico que torna a cidade respeitada até internacionalmente. A tradição possui legitimidade assegurada. Sua história e memória encontram-se bem amarradas e enquadradas, o que significa que a tradição funciona com bastante autonomia, determinando até mesmo as diretrizes futuras. Hoje, praticamente, a tradição colhe frutos do passado.” (TROVATTO, Cármen, “A Tradição Euclidiana: uma ponte entre a história e a memória”, Arte & Ciência Editora, p. 21)
 
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em seus últimos dados oficiais disponíveis, São José do Rio Pardo tinha, em 2001, apenas 690 habitantes com 80 anos ou mais. Isso equivale a dizer que a Semana Euclidiana, para a enorme maioria da população, é algo que já existia quando todos nós nascemos. E ela também existia quando muitos morreram. Ou seja: nascemos e morremos sob o signo do Euclidianismo.
Mas não há como preservar a memória euclidiana sem passar pela inevitável citação de nomes, datas e fatos históricos. A eles, então.
Voltamos a 1898, quando Euclides da Cunha mudou-se, com a família, para São José, onde viveu até 1901. Veio reconstruir uma ponte, desmoronada dias depois de sua inauguração. Participara, pouco tempo antes, da Guerra de Canudos, como correspondente do jornal “O Estado de São Paulo”.
Em São José, trabalha concomitantemente na ponte e no livro, que idealizara quando retornou da guerra como um “livro vingador”. Encerrada a obra da ponte, Euclides parte com a família. Depois, publica seu livro, recebido com louvor pela crítica. São muitos os depoimentos do próprio Euclides de que aqui encontrou condições que lhe proporcionaram meios para a realização do livro.
Depois, em 1909, Euclides é assassinado, o que provoca um movimento de protesto entre os intelectuais e amigos que deixou, inclusive aqui. Exatos três anos depois de sua morte, portanto em 15 de agosto de 1912, ocorre uma passeata promovida por um grupo de amigos até a ponte, como homenagem póstuma. Esse foi o embrião da Semana Euclidiana em São José do Rio Pardo.
Curiosamente, a cabana onde Euclides escreveu “Os Sertões” foi deixada no local, sendo preservada até hoje. Em seu interior, como se fosse um pequeno e improvisado templo religioso, as relíquias euclidianas: a mesa e o banco de madeira, encimados por uma bandeira nacional, que lhe pertenciam.
A tradição prossegue, com a construção, em 1918, de uma herma de granito com um medalhão de bronze incrustado. Na década seguinte, em 1925, a oficialização do Dia de Euclides, 15 de agosto, como feriado municipal. A cabana é protegida por uma redoma de vidro, imortalizando o espaço onde se escreveu o livro e fixando-o como lugar de memória. Na década de 80, a construção do Mausoléu, dando ao local o aspecto que hoje conhecemos.
Depois, Oswaldo Galotti e Hersílio Ângelo escrevem seus nomes na história do Euclidianismo. O primeiro, ao realizar, em 1938, o que viria a ser a primeira Semana Euclidiana tal como a conhecemos hoje, um apanhado bem organizado de atividades culturais, esportivas e sociais. O segundo, Hersílio Ângelo, cria a Maratona Intelectual Euclidiana, um meio de chamar a juventude ao universo euclidiano.
Numa evidência de que ao Poder Público compete a organização sistemática do movimento que crescia cada vez mais, cria-se a Casa Euclidiana, um misto de museu, arquivo e biblioteca, ainda hoje existente, e com a mesma função de ser uma espécie de guardiã do movimento euclidiano. Seu diretor, ou diretora de plantão, será sempre reverenciado como uma espécie de fiel depositário das tradições euclidianas, ao menos em São José do Rio Pardo. Valho-me, novamente, dos vaticínios da professora Cármen:
“Nesse sentido, a tradição euclidiana, parte integrante da história e da memória de São José do Rio Pardo, reflete a imagem dessa sociedade, imagem construída e reconstruída por ela própria, ao longo do tempo. As comemorações euclidianas representam, portanto, quadros de imagens que a cidade faz de si, para si e para os outros e nos quais acredita. Assim, a tradição comemorativa é a expressão de como a cidade quer ser vista, quer que os outros a vejam e nela acreditem. É esse o sentido da tradição euclidiana, um fenômeno cultural de São José do Rio Pardo, uma tradição que identifica a cidade.” (Idem, página 25).
 
Ao lado da já mencionada Casa Euclidiana, merecem destaque, ainda, as instituições que regularmente são instituídas visando a preservação da memória euclidiana. A mais tradicional, já que remonta a 1925, é o Grêmio Euclides da Cunha. Criadas basicamente com vistas à facilitação de recursos financeiros, ou como mecanismos de organização administrativa e burocrática da Semana Euclidiana, estas entidades são a forma material de execução da Semana Euclidiana enquanto projeto cultural e educacional que é.
Composto, a princípio, por amigos e admiradores de Euclides da Cunha, que com ele conviveram, o Grêmio existe ainda hoje, com o mesmo e indelegável status de co-guardião das tradições euclidianas – embora não atue sob a égide do Poder Público, ao contrário da Casa Euclidiana.
Mas ao longo dos tempos, o movimento euclidiano foi se firmando com rostos e nomes, que se ajuntaram como uma confraria. Além dos já citados Oswaldo Galotti e Hersílio Ângelo, impossível traçar a história do movimento euclidiano sem citar outros nomes. Adelino Brandão, Ivo Vanucchi, Coelho Netto, Alberto Rangel, Venâncio Filho, Afrânio Peixoto, Cármen Maschietto, Márcio Lauria, Rodolpho Del Guerra, Amélia Trevisan – enfim, são tantos e tantos personagens que contribuíram, e ainda hoje contribuem, para a preservação da memória euclidiana que seria impossível nomeá-los. São verdadeiros embaixadores do Euclidianismo, e formam um grupo que se mantém intacto, independente das circunstâncias políticas que naturalmente surgem.
Tanto que se criou uma espécie de academia euclidiana, em São José do Rio Pardo, conhecida como Conselho Euclidiano. Formado basicamente por professores dos Ciclos de Estudos Euclidianos residentes em São José do Rio Pardo, o Conselho é órgão consultivo, tanto do diretor da Casa Euclidiana, quanto do próprio prefeito, cabendo-lhes a missão de apontar caminhos, mantendo a tradição euclidiana tal como se firmou, mas sempre com vistas à modernização ou atualização do pensamento euclidiano.
Apesar dos muitos estudos a respeito do tema, as tradições euclidianas merecem maior atenção pelos pesquisadores. Mais ainda, pela população rio-pardense de forma geral. A preocupante falta de renovação dos quadros do Euclidianismo local, principalmente pela ausência de novos valores, oriundos da juventude, sobretudo, aponta para uma situação instável. Contudo, o Euclidianismo não pode perder-se em meio ao imediatismo da cultura de baixo nível. Somos todos guardiões de um patrimônio cultural incalculável, cuja guarda faz de todos nós euclidianos em potencial, zeladores de uma tradição que vai além de nossa geração. É, seguramente, nosso presente para a posteridade.

 
Paulo Sérgio Herculano
 
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