No Diário da Noite, jornal do Rio de Janeiro, de 20 de agosto de 1936, encontrei, à página 4, esta reportagem: “O maior susto de Euclides da Cunha – um humilde colaborador do grande escritor nas obras do Rio Pardo relembra aos Diários Associados episódio inédito”. No subtítulo, “Como o autor dos Sertões se despediu emocionado de seus operários.” O “humilde colaborador” é Paschoal Artese, que dá um depoimento à sucursal do Diário da Noite em São Paulo.
Artese se diz o “inventor da ideia de glorificar Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo”, de ser o primeiro a se lembrar de “guardar numa gigantesca redoma a casinha e a minúscula mesa” do escritor e de ser o inspirador da romaria de 15 de agosto. Atribui-se também a prerrogativa de haver sido, como construtor e desenhista, o antigo auxiliar de Euclides na reconstrução da ponte metálica.
Não houve um “criador” do 15 de agosto, afirma, garantindo haver sido uma ideia coletiva. O repórter indaga-lhe, então, como explicar essa manifestação espontânea, nascida dos “letrados e da gleba humilde de São José do Rio Pardo.” A explicação dada é que, “apesar de seu temperamento arredio, de sua natureza às vezes quase insociável, Euclides era um amigo sincero dos humildes.”
Acrescenta ainda: “essa simpatia, essa solidariedade humana do dr. Euclides da Cunha pelo homem rude, pelo trabalhador do campo ou da cidade era espontânea”, embora o escritor, “com sua alma de retraído”, não desse “mostras muito vivas da sua solidariedade aos humildes”.
O engenheiro-escritor revelara essa característica apenas uma vez: quando terminaram os trabalhos da ponte e ele deveria dispensar os operários.
Na ocasião, reuniu todos eles num jantar de despedida; “a grande mesa foi posta na rua, em frente à casa do dr. Euclides. Além dos operários tomaram parte no jantar numerosos amigos” do escritor. “Ele nos tratava com a mais bela camaradagem, mas todos nós sentíamos que estava triste.”
“Quase ao terminar o jantar” - prossegue Artese -, Euclides “subiu à sua residência e apareceu na janela do primeiro andar. Dali falou a todos os operários, depois de os haver atentado algum tempo, em silêncio.”
Artese afirma que Euclides “falou pouco, declarou que a ponte estava construída e terminada sua tarefa em São José do Rio Pardo. Cumpria-lhe voltar e iniciar outros trabalhos. Regressava com a convicção de que a ponte sobre o Rio Pardo havia de varar o tempo, mostrando a sua solidez e a capacidade de seus construtores”.
“Contudo, se bem que parecesse a muitos, o maior colaborador na obra que terminara não era ele, o engenheiro, mas sim seus operários, que levantaram com o esforço de seus braços os pilares de cimento armado e dominaram o ferro, estendendo-o sobre o Rio Pardo, numa prova imortal de seu trabalho realizador.”
“E, no entanto, terminada a obra, os seus construtores estavam despedidos e esse era o aspecto que ele lamentava em tudo aquilo”, relata Artese, afirmando que o escritor dissera textualmente: “Lamento, sim, a vossa sorte, operários: trabalhadores humildes e honrados que me haveis auxiliado com o maior contingente na construção da ponte metálica sobre o Rio Pardo. Sim, lamento a vós que podereis vir a rolar, miseráveis e famintos, contemplando a vossa obra magnífica!” (grifo nosso).
Artese conta ainda outros episódios já conhecidos no meio euclidiano e afirma que o escritor o chamava de “Artesinho” e que instigara este a fundar na cidade uma escola noturna.
Enfim, por que nunca se mencionou nada a respeito dessa despedida de Euclides, aliás uma lacuna que sempre nos intrigou? Alguns biógrafos do escritor diziam que ele saíra às pressas de São José do Rio Pardo, devido a uma epidemia de febre amarela na região.
Uma questão, no entanto, insiste em provocar: essa declaração de Artese não teria sido alvo de censura, uma vez que Euclides faz um desabafo em relação ao desamparo do trabalhador? Fica a dúvida para pesquisas futuras!
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