Eu havia prometido a mim mesmo que não mais faria
isso, que nunca mais enfiaria minha colher de pau nesse angu em que se tornou
o movimento euclidiano, por razões que, como diria o bom e velho Euclides,
temos por escusado apontar.
Mas, que diabos!, o assunto parece um fantasma insepulto
(palavra bonita essa, in-se-pul-to). Vira e mexe e cá estamos nós
discutindo a SE.
Freud (e não Maudsley) explicaria bem essa obsessão
que os rio-pardenses temos para com as coisas de Euclides. Ou melhor, tínhamos.
É triste constatar isso, mas já faz um
bom tempo que Euclides não reina absoluto nos corações
e mentes dos rio-pardenses. E nem me refiro aos rio-pardenses que provisoriamente
ocupam cargos públicos, as tais “autoridades”, que quase nunca
se interessam por essas coisas. E também não me refiro ao povão,
pois esse tem lá coisas mais urgentes com que se preocupar.
Refiro-me à parcela da população que, historicamente, é
formadora de euclidianos, aos professores e pais de gerações passadas.
Salvo as honrosas exceções de sempre, que
estas sempre existem, minha geração não se identifica com
Euclides da Cunha. Quer dizer, não se identifica com a prolixidade que
Euclides inspira, com seu rebuscamento léxico e coisa e tal. Pior ainda,
muita gente não se identifica com os valores defendidos por Euclides
- o patriotismo que o leva a revoltar-se contra seus superiores, a integridade
que o obriga a recusar favores pessoais. Vivemos em tristes tempos de valores
de importância questionável, afinal.
Muito desse afastamento que a comunidade tem em relação
a Euclides, penso eu, deve-se a isso.
Mas não somente a isso. Muito dessa indiferença
popular (e, não raro, dessa rejeição ao universo euclidiano)
é por nossa culpa, e somente nossa culpa. Fomos nós que não
encontramos meios razoáveis de transmitir o pensamento euclidiano para
uma geração que cresceu na frente da TV e navega o mundo todo
pela net.
Sim, é verdade que a comunidade não assume
sua porção euclidiana, que em geram todos não estão
nem aí para as coisas de Euclides. Isso explica muito de nosso caráter,
e poderíamos sair pela tangente dizendo que se trata de um povo inculto
- “eles não sabem o que estão perdendo”, poderíamos
dizer.
Mas esta seria apenas a solução mais simplista.
Nós, que de alguma forma e por algum motivo que apenas Euclides conhece,
acabamos como herdeiros do legado euclidiano temos sim culpa no cartório.
Primeiro, se me permitem aprofundar na questão
em um nível maior do que eu mesmo gostaria, é preciso estabelecer
uma certa linha de raciocínio nessa minha lógica esquisita. Primeiro,
e, por favor, não se escandalizem com isso, é preciso dizer que
em lugar nenhum está escrito que Euclides da Cunha deve ser uma unanimidade
nesta cidade. Sabem, não raras vezes me deparo com pessoas que tentam
colocar-me à prova - criticam o quanto podem a Semana Euclidiana, com
argumentos tolos, é verdade, mas a criticam. Dizem que se está
gastando dinheiro à toa, essas coisas. Algumas delas, percebo eu, dizem
e esperam resposta, esperam que eu tente “convertê-las” ao euclidianismo.
Decepcionam-se.
Eu não tenho o direito de impor aos outros os
valores que considero importantes para mim. Penso que as pessoas simplesmente
têm o direito de não gostarem da Semana Euclidiana, de criticá-la
e de achar que tudo não passa de uma grande bobagem. Considero o direito
de ser um anti-euclidiano tão legítimo quanto o de ser um euclidiano
ou o de não ser nem uma coisa nem outra, que é o meu caso. E,
se me permitem mudar um pouco de assunto, aplico o mesmo raciocínio ao
FEMP - considero perfeitamente legítima toda manifestação
contra o evento, as pessoas simplesmente têm o direito de não gostar
dessas coisas, e nós não podemos fazer muita coisa quanto a isso.
Sejamos sinceros conosco mesmos - Euclides da Cunha e
a Semana Euclidiana não são unanimidades há um bom tempo
por aqui.
A partir dessa pesarosa constatação é
que poderemos progredir na conversa.
Os motivos pelos quais a comunidade afastou-se do movimento são os mais
diversos possíveis. Os comerciantes, porque quase têm um ataque
do coração quando chega agosto e se lembram que precisam fechar
as portas um dia e meio durante a semana, o que significa queda no faturamento.
O argumento, a bem da verdade, é bastante pobre - se soubessem explorar
as possibilidades que a SE proporciona ao comércio, possivelmente não
se ressentiriam desses fechamentos.
Os jovens, coitados de nós, fomos criados por
um sistema educacional que não privilegia a crítica. E não
é possível ler Euclides da Cunha sem usar dessa ferramenta indispensável
que é o espírito crítico. Por isso que poucos, aquelas
honrosas exceções de que falei, conseguem compreender que Euclides
da Cunha foi além de uma guerra, de um lugar geográfico e penetrou
na complexa questão da identidade nacional a pretexto de escrever uma
reportagem para um jornal.
Mas continuo pensando que os grandes responsáveis
pela situação a que chegamos somos nós mesmos. Nós,
militantes do euclidianismo, que teríamos o dever de esclarecer de uma
vez por todas que a SE tem sim efeitos positivos na economia local - durante
uma semana, são mais de 200 pessoas se alimentando, comprando no comércio
local e se hospedando nos hotéis da cidade. O lucro que São José
tem com a SE não é meramente institucional - não é
só o nome da cidade que ganha com isso -, tem dinheiro envolvido, em
uma quantia nada desprezível nestes tempos de vacas magras em que vivemos.
A mídia local também tem feito a sua parte.
É claro que sou suspeito para falar de um sistema do qual faço
parte, mas é impossível negar que a mídia tem apoiado quando
solicitada em pedidos minimamente plausíveis e desde que não impliquem
em interferência de pauta.
Outra questão que me parece fundamental - aliás,
para mim é a mais importante - é o problema da captação
de recursos para a SE. Posso estar enganado, mas penso que não dá
para tirar mais recursos do que já se consegue junto ao Ministério
e Secretaria da Cultura para a SE. O poder público, Prefeitura sobretudo,
está saturado e impossibilitado de investir mais na SE, razão
pela qual parece-me fundamental buscarmos outras fontes de recursos, sobretudo
na iniciativa privada que colabora pouco e mal com a Semana. Outra proposta
seria a adoção de uma legislação municipal de isenção
fiscal para pessoas físicas ou jurídicas que façam doações
ao evento. Idéias semelhantes foram responsáveis pelo crescimento,
nos últimos anos, do cinema nacional, e não percebo o motivo pelo
qual a coisa não poderia ser aplicada por aqui.
Mas agora chega porque a paciência dos meus leitores
(tem alguém aí???) tem limites.
Reuniões como a desta semana são válidas,
muito válidas por sinal. Em geral, costumam jogar luzes, novas ou não,
sobre os mesmos túneis. E falamos de um túnel de 90 anos, que
precisa de reparos com relativa urgência. Mesmo porque todos sabemos aonde
esse túnel vai nos levar.
DEMOCRATA, 26/01/2002
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