Sr. Presidente, Srªs. e Srs, Senadores, nesse ano
de 2002, que se aproxima, vamos comemorar cem anos da publicação
de Os Sertões , de Euclides da Cunha. E muitas são as razões
que temos para celebrar essa data. Como poeta, nordestino e amante das letras,
quero me associar de maneira especial a essas comemorações.
A figura de Euclides da Cunha, até hoje é
cercada de um certo véu: ao mesmo tempo em que o admiramos por suas muitas
qualidades, não deixamos de nos assustar com o que nos parece excesso
de rebeldia em um espírito, que, na verdade, ansiava tanto pela liberdade
que não podia se ater às limitações de seu tempo.
Euclides teria confessado a um amigo que sua "fantasia era como um pássaro
que não conseguia levantar vôo do chão, mas só de
uma árvore. E essa árvore seria o fato concreto." Esse fato
lhe viria, em março de 1897, com a derrota da terceira expedição,
em Canudos, sob o comando do General Moreira César.
Essa característica de personalidade terá
marcado desde o nascimento (1886, Cantagalo, RJ) até à morte (1909)
esse brasileiro dos mais ilustres. Sua inteligência, curiosidade, espírito
libertário e vocação literária o fazem desde a adolescência
um brilhante aluno da Escola Militar (1886-1888), a opção de estudos
viável para os filhos da classe média. Mas é esse mesmo
espírito de luta que o faz, em ato de protesto (1888), jogar ao chão
a espada de cadete em uma solenidade com a presença do Ministro da Guerra
do Imperador. Um ato que lhe custa a expulsão incontinenti da escola.
Proclamada a República, mesmo retomando os estudos e se graduando como
Engenheiro Militar (1891), não chega a fazer carreira, como seus antigos
colegas militares republicanos. Repugna-lhe o carreirismo fácil. Abandona
o Exército (1896) e se muda para São Paulo, onde trabalhará
como engenheiro do Estado e como jornalista para O Estado de S. Paulo . Graças
a seu interesse por Canudos, é mandado como correspondente de guerra
para o local da batalha, em 1897, de onde retira o material que lhe servirá
de base para sua epopéia.
Publicado em 1902, Os Sertões trazem-lhe glória
instantânea, que o fazem ingressar na Academia Brasileira de Letras aos
37 anos, numa consagração inédita nas letras brasileiras.
Mas essa glória não bastava a Euclides, cuja alma ansiava por
mais. E essa busca, contraditoriamente, o levará brevemente à
morte. Mandado pelo Barão do Rio Branco a Manaus (1904) para chefiar
uma missão de reconhecimento no Alto Purus, contrai um empaludismo que
contribuirá para a debilidade de sua saúde.
Não deixa de ansiar por ocupar uma cadeira acadêmica
que lhe daria, simultaneamente, um pouco de segurança e o reconhecimento
de que era merecedor. Quando, em 1909, pouco depois de assumir a cadeira de
Lógica, no Colégio Pedro II, vem a morrer num conflito armado,
motivado por questões familiares.
Mas tratemos de Os Sertões , que é a grande
glória de Euclides e da literatura nacional.
Gostaria de começar propondo uma reflexão
sobre as razões que tornaram esse livro um clássico de nossa literatura.
Para tanto, gostaria de pegar uma carona nas considerações do
italiano Italo Calvino sobre o que seja um clássico [1]. Os Sertões
não é um clássico apenas porque tornou-se best seller tão
logo foi publicado. Lembremo-nos que, no Brasil de 1902, poucos eram os leitores
com formação acadêmica capaz de entender Euclides. No entanto,
oito dias após lançado, já tinha vendido 500 exemplares,
metade da primeira edição. Tampouco é o fato de haver mais
de 40 edições de Os Sertões o que o faz um clássico.
Nem mesmo sua tradução para mais de uma dúzia de línguas.
Mas, afinal, o que é que faz de Os Sertões um clássico?
Tomemos uma das definições de Italo Calvino,
que é a seguinte:
Um clássico é um livro que nunca terminou
de dizer aquilo que tinha a dizer.
De fato, cada pessoa que vier a ler (ou a reler) essa
obra fundadora da nacionalidade brasileira, há de descobrir algo novo:
uma denúncia, uma contradição, uma imagem poética,
uma paixão. Isso porque não estão inscritas naquelas páginas
apenas o relato de uma batalha, ou a descrição de uma terra, ou
considerações sobre a gente. O que se lê (e o que se recria)
de Os Sertões é a tentativa de compreender um povo, uma nação
ou, quem sabe, a própria natureza humana. Por isso, Euclides não
é apenas jornalista, que descreve imparcialmente o que vê; mesmo
profundamente embebido de uma sociologia positivista, não é meramente
um cientista, um etnólogo a descrever uma realidade; ainda que profundo
conhecedor de geografia e de geologia, não são mapas frios que
emergem das descrições de paisagens e de vegetações.
Em Os Sertões o que encontramos é a própria
tragédia que envolveu aquele episódio sangrento, que levou à
morte perto de 20.000 camponeses nordestinos, numa luta fratricida, em que a
"civilização" vencia a "barbárie".
E o que marca essa obra monumental são as contradições,
quase que barrocas (embora ele fosse um iluminista); por um lado, sua visão
de progresso da humanidade, sua admiração pela Revolução
Francesa, sua crença arraigada na ciência como motor do desenvolvimento.
Por outro lado, sua arguta leitura da realidade, que o faz ver a vida naquela
terra inóspita; que o faz se admirar daquele homem (Hércules-Quasímodo)
que era em si um paradoxo: de constituição física débil
e atitude malemolente, mas com capacidade de trabalho e de luta sobre-humanas.
Portanto, não se espere coerência em Euclides quando traça
formulações sobre a suposta inferioridade daquela raça
fruto da miscigenação, em contraposição à
superioridade da raça européia. Uma de suas inclinações
é aceitar as teorias europocêntricas, que o conduziam a esses valores
(altamente ideologizados) da supremacia da raça branca em contraposição
à negra e à indígena ("pioradas" com a miscigenação).
Mas, segundo fotografias e descrições de Euclides, era ele próprio
fruto dessa miscigenação. Ele era, com sua genialidade e argúcia,
a contraprova viva das teorias que esposava formalmente.
É essa contradição, presente no
livro, que nos permite, até hoje, fazer leituras tão várias
e díspares como a que o alinha com uma visão racista e a que o
coloca como defensor da superioridade do povo sertanejo ("O sertanejo é
antes de tudo um forte").
Outra definição de clássico de Calvino
que se aplica bem ao Os Sertões é esta:
Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós
trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás
de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram.
Desde a sua publicação até hoje,
a leitura desse livro influenciou todas as áreas das chamadas ciências
humanas. Economistas, antropólogos, sociólogos relêem Os
Sertões em busca de um marco para suas interpretações da
realidade. Influenciou, ademais, toda a literatura posterior. O modernismo brasileiro,
mesmo rejeitando a forma com que Euclides construiu sua obra, vai em busca do
"brasil brasileiro" inaugurado por ele.
Por meio desse clássico, pode-se, também,
fazer uma releitura do passado brasileiro que antecedeu ao episódio de
Canudos: a concentração da terra como origem dos problemas fundiários,
o insulamento do sertão, a insensibilidade das classes dominantes para
com os pobres, a indiferença da Igreja perante o abandono a que haviam
sido relegadas aquelas almas. Sua receita para resolver os problemas daquela
gente, apesar da simplicidade, continua sendo válida (e infelizmente
não seguida) até hoje: barragens e instrução. Passados
100 anos da primeira publicação de Os Sertões, continuamos
a lutar pela perenização dos rios no Nordeste, pelo abastecimento
de água, pela irrigação e, principalmente, pela universalização
do ensino básico. Acrescento eu mais uma definição às
de Calvino: clássico é aquele livro que se reveste de um tom profético.
E as profecias não têm caráter meramente escatológico
(teoria sobre os fins últimos do homem). Elas são, também,
denúncias de iniqüidades.
Mas continuemos bebendo em Calvino suas definições
de clássico que, repito, caem como uma luva em nosso Os Sertões:
Um clássico é uma obra que provoca incessantemente
uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele
para longe.
Embora admirado por suas qualidades literárias,
pelo rigor científico com que foi construído, vez por outra surgem
críticas a essa obra, pelo seu caráter europocêntrico, por
haver contribuído para diminuir a identidade nacional-brasileira perante
uma suposta superioridade branco-européia e por haver servido como "prova"
da inferioridade racial. Mas, por incrível que pareça, nenhuma
dessas críticas "cola" em Os Sertões, não obstante
terem alguma procedência. Isso porque Os Sertões é uma obra
vária, polifônica. Ela abriga não apenas a visão
de Gobineau, de Lombroso ou outros dessa estirpe. Nela está a voz do
sertanejo; estão as lendas e as crenças daquele povo marcado por
séculos de seca e de isolamento e que, mesmo assim, sobreviveu; em Os
Sertões está a denúncia do verdadeiro massacre operado
pela civilização litorânea, por intermédio de um
exército bem armado. Várias vozes se levantam nesse verdadeiro
libelo à humanidade, porque, para além de suas crenças
na inevitabilidade de civilização ("estamos condenados à
civilização"), está a esperança na fundação
de uma nacionalidade própria, brasileira, que teria como base aquele
mesmo povo sofrido e injustiçado.
Italo Calvino propõe, ainda, esta definição:
Chama-se de clássico um livro que se configura
como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.
Sobre isso, arriscar-me-ia afirmar que, mais que uma
obra de referência, Os Sertões é nosso escudo intelectual.
Escrita no início do século passado, num país de 18 milhões
de pessoas, a maioria delas analfabetas, essa obra é o nosso mote, nossa
reserva moral e intelectual: "olhem aqui, temos capacidade crítica
de pensar o Brasil, Os Sertões é a prova disso". De tal modo
temos afeição a essa obra, que ela já faz parte do imaginário
popular. E, mesmo aqueles que nunca a leram, têm-na como referência
de orgulho.
Não poderia concluir essa homenagem sem citar o belíssimo trabalho
que está sendo feito pela Geração Editora , ao lançar
a edição comemorativa do centenário de Os Sertões
, sob a coordenação do Professor Rinaldo Nunes de Fernandes, da
Universidade de Campina Grande. Essa edição, além da riqueza
crítica a ela acrescentada, vem com um poema do talentoso jornalista
e extraordinário poeta José Nêumanne Pinto, que compôs
O Aboio do Semi-árido , a propósito da obra e do autor. Um poema
que me sinto muito honrado em transcrever, para ficar nos Anais desta Casa:
Aboio do Semi-árido
O martírio do homem, ali, é o reflexo da
tortura motor, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida. Nasce do martírio
secular da Terra. (Euclides da Cunha, Os Sertões, primeira parte, A terra,
capítulo V)
O deserto inteiro e o sertão só meio:
cá fora o deserto, lá dentro o sertão.
Visto ao sertão, o mundo é cancela:
as mãos de Euclides, os peitos de Gabriela.
Ao longo do deserto nem mundo há:
a espada de Lourenço e a cruz de Jerônimo,
Um santo no Saara, o rei do sertão.
O deserto é perto,
o sertão, distante.
No deserto, a morte,
No sertão, a sorte.
O deserto é porto,
o sertão, estação.
O deserto é uno
e o sertão são vários.
O deserto é mono
e sertão estéril.
No deserto, serpente,
no sertão, repente.
No deserto há dunas
e o sertão tem donos.
O deserto amplia
e o sertão reduz.
O deserto, opaco
e o sertão reluz.
No deserto, o norte é tudo,
no sertão, bússola é o vento.
O jejum no deserto purifica;
a fome no sertão só mortifica.
Pois no deserto há pureza
e no sertão, escassez.
Se pelo deserto passam,
do sertão se retiram.
O deserto é o que se sabe
e o sertão não se conhece.
O deserto é todo igual
e o sertão, tão diferente.
O deserto correto
e o sertão demente.
Num se trama a aventura;
o outro, um fio de vida.
Num toureia-se o medo;
o outro se enfrenta desde cedo.
No deserto, a paz dos místicos
e o sertão é guerra por frutos.
O beduíno nômade,
o sertanejo trânsfuga;
o beduíno valente,
o sertanejo, um forte;
o camelo lerdo
e o bode canhestro;
o camelo trôpego
e o bode trêfego.
A dança dos véus de Salomé,
os anéis nos dedos de Maria Dea;
a arte caprichosa de sherazade
e os suspiros rimados de Teodora.
Cadê o afago da adaga do beduíno?
E onde o peixe da peixeira do sertanejo?
Cadê o sinal no punhal do beduíno?
E onde o sangue no bornal de Virgolino?
Cadê o ódio no olho do beduíno?
E onde o amor no ombro do sertanejo?
Cadê o sal no pão do beduíno?
E onde o mofo na farinha sertaneja?
Cadê a noz no oásis beduíno?
E onde caju na roça do sertanejo?
Cadê a carga na corcova do camelo?
E onde a canga no costado do jumento?
Onde a água no poço do beduíno?
E cadê a água no pote do sertanejo?
No deserto, a palavra do profeta,
no sertão, o sermão do Conselheiro.
Dão bom dia a Alá mirando Meca
e dormem com Cristo lhes rondando o alpendre.
No deserto, areia nos olhos,
e no sertão atire a primeira pedra.
A caravana traça caminho do beduíno
e a procissão trava o passo do sertanejo.
Sob o sol do deserto e o luar do sertão,
O trapo do eremita e a sombra do taumaturgo.
No deserto, o tosco;
no sertão, o brusco.
O deserto é mudo,
o sertão é surdo.
O sertão é fogo,
o deserto fátuo.
No deserto, o brilho;
no sertão, a trilha.
O deserto é palco;
no sertão, o parco.
No deserto se perde
e do sertão se foge.
O deserto salva
e no sertão só sendo.
O deserto é plano,
o sertão é chão.
O deserto é pátria,
o sertão é berço.
O deserto é pálido,
o sertão é sólido.
No deserto, amplitude,
e no sertão, a solidão.
Enfim, Sras. e Srs. Senadores, com esse poema de José
Nêumanne Pinto, quero reafirmar minha homenagem. Não é outro
nosso sentimento, senão o de profundo orgulho por essa obra, Os Sertões
, e seu autor, a quem rendemos as nossas mais sinceras homenagens. Homenagens
que se estendem à Editora Geração de Comunicação
Integrada Comercial Ltda. pela edição celebrativa dos cem anos
de "Os Sertões" e ao poeta José Nêumanne Pinto,
cujo poema a que me referi, inserido neste pronunciamento, agora se perpetua
com sua transcrição nos Anais desta Casa.
Parabéns à Editora Geração
de Comunicação Integrada Comercial Ltda., parabéns a José
Nêumanne Pinto, parabéns ao professor Rinaldo Nunes de Fernandes,
da UFPB, e o testemunho renovado de minha admiração à Euclides
da Cunha e à sua magnífica obra. Quem já não o repetiu:
"O sertanejo é antes de tudo um forte". É a esse sertanejo
forte que rendo minha homenagem da tribuna desta Casa ao registrar os cem anos
da publicação de "Os Sertões".
Era o que tinha a dizer.
Muito obrigado.
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[1] CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos .
São Paulo, Companhia das Letra, 1998.
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