Universidade do Estado da Bahia
Centro de Estudos Euclydes da Cunha
Ive Alencar
Lidiane Santos
Heloisa Soares
(Alunas de Comunicação Social, bolsistas do PIBIC (CNPQ) no Projeto
"Sertões" dirigido pela professora Lícia Soares de Souza
e pelo professor-colaborador Ruy Aguiar)
Salvador
Junho/01
Depois de revelar o caráter inédito de
Os Sertões na constituição de uma teoria da comunicação
e de uma opinião pública nacional, tivemos como objetivo nesse
trabalho analisar a sua relação com as obras da contemporaneidade.
Nesse estudo buscamos os pontos comuns entre vários romances, de modo
a desvendar a dinâmica de cenários intertextuais, com suas cenas
enunciativas semelhantes ou dessemelhantes, utilizando novamente os conceitos
de semiótica narrativa assim como os de opinião pública
e identidade nacional. As obras são construídas sobre as algumas
bases teóricas utilizadas por Euclides da Cunha e, mesmo assumindo pontos-de-vista
diferentes , a idéia transmitida é exatamente o que Euclides propõe
em Os Sertões: " ... as diferenças não deviam ter
levado ao massacre...". Dessa forma confirmamos a capacidade de Os Sertões
se tornar uma fundação, estabelecendo os temas e as cenas enunciativas
que autorizam o surgimento de um ciclo temático.
Passados cem anos do início da Guerra de Canudos,
empreende-se ampla revisão desse acontecimento histórico, conhecido
pelos quatro cantos do Brasil, se estendendo muitas vezes também ao mundo,
através de um estudo crítico e comparativo dos textos que inscrevem
Canudos na literatura. Euclides da Cunha em Os Sertões, cujo centenário
será comemorado em 2002, não permitiu que este fato ocorrido no
interior baiano fosse esquecido. Após sua obra, considerada ainda hoje
"o livro de Canudos", surgiram outras, de autores diversos, que, com
linguagem histórica ou mesmo ficcional, contribuíram enormemente
para o conhecimento dessa parte dolorosa da História brasileira.
Considerado o marco da produção literária nacional, tropical
e naturalista , Os Sertões influenciou e continua influenciando as obras
que compõem o ciclo canudiano. É, sem dúvida, o pioneiro,
no momento que volta-se para a busca de uma identidade nacional. Apesar de defender
a civilização moderna, e até mesmo ter lutado e persuadido
a opinião pública, através dos seus artigos , em prol do
litoral progressivo, Euclides da Cunha reconhece o sertanejo como a "rocha
viva da nossa raça" depois de Ter estado em Canudos.
Para chegar a este resultado, foi necessário estudar o conflito entre
os dois Brasis: de um lado, o que chamou de "Suíça industrializada",
com sua possível raça superior, constituída pelo branco
estrangeiro, um homem forte e dominador; do outro lado, as "palafitas",
o sertão no qual permeia a raça inferior do mestiço indolente,
inerte e subserviente. Como conseqüência desta dicotomia, surge a
construção de uma visibilidade e de uma dizibilidade sobre as
quais, até os nossos dias, edificam-se os estereótipos de pobreza,
inferioridade e acima de tudo de atraso no sertão. Já a marca
da violência, antes atribuída aos sertanejos, passa a configurar
a imagem das grandes cidades.
A complexidade do ciclo canudiano vai muito além da literatura. Ela passa
pela história e chega também à comunicação.
A imprensa é criticada por sua atuação negativa na formação
de uma opinião pública nacional. Os "homens-palavra",
os personagens jornalistas, são enviados como correspondentes dos jornais
da época com o intuito de noticiar, documentar os fatos da Guerra e propagá-los.
O medo implícito na busca de palavras para não ofender a República,
nem o Exército, propiciou uma manipulação dos dados. Euclides
da Cunha, também correspondente de guerra, e os demais enviados especiais
oscilavam entre as opiniões preconcebidas e a realidade crua que estavam
presenciando. Como disse Galvão (1977), a maioria se calou. As práticas
desumanas foram escondidas para exacerbação da imagem republicana.
Assim, com as ações atrozes bem ocultas, propagou-se uma dizibilidade
e uma visibilidade do sertão e dos sertanejos de acordo com os interesses
vigentes. A partir dela, foi construída uma opinião pública
nacional que justificou a guerra. Berthold Zilly (1996) opina sobre essa ação
desordenada da imprensa, inclusa na obra euclidiana:
Outro aspecto moderno (de Os Sertões) é a eficiente propaganda
belicista contra o inimigo desconhecido do sertão, largamente orquestrada
por uma imprensa que apregoava o ódio desenfreado, apoiada por jornalistas
estrangeiros, inclusive alemães.
Questões como identidade nacional, opinião pública, visibilidade
e dizibilidade dos sertões, dentre outros, estão presentes nas
obras que compõem o ciclo temático canudiano, confirmando a importância
e a aplicabilidade da obra de Euclides no desenvolvimento do tema Canudos, das
Ciências Humanas em geral e de uma teoria da comunicação
fincada em bases nacionais.
Descrição da Pesquisa: A influência
de "Os Sertões" nas obras do ciclo literário Canudiano.
A permanência euclidiana nos romances sobre Canudos possibilitou a formação
de um ciclo temático canudiano cujas obras podem ser divididas em três
blocos, de acordo com Gutierrez (1997): 1) da contemporaneidade de Euclides
da Cunha; 2) da década de 50, após meio século de guerra;
3) da nossa contemporaneidade.
A presente pesquisa pauta-se numa Análise estrutural e textual comparativa
entre a obra fundadora deste ciclo, Os Sertões, e os romances literários
contemporâneos: La Guerra del Fin del Mundo (1981) do peruano Mário
Vargas Llosa; A Casca da Serpente (1989) de J.J.Veiga, um dos mais renomados
ficcionistas do fantástico no Brasil; e As Meninas do Belo Monte (1993)
de Júlio José Chiavenato, conhecido jornalista e escritor de temas
históricos latino-americanos.
A primeira etapa consistiu na averiguação das correlações
entre a obra fundadora do ciclo, Os Sertões, narrada com técnicas
naturalistas minuciosas, mas já discutindo a necessidade da busca de
uma identidade nacional, a partir do domínio do vasto território
com suas origens, costumes e tradições, e as obras do modernismo
literário. Nesse âmbito, observamos os discursos ligados à
dicotomia litoral versus sertão, de onde emergiu a idéia da "rocha
viva da nossa nacionalidade", associada ao sertanejo que, como uma rocha
matriz , matizada e subordinada ao fáceis geográfico merece a
qualificação de "antes de tudo um forte".
Abordando os quatros romances pela semiótica narrativa, na análise
das tensões entre os códigos das ações e da narração,
no tratamento do tempo, do espaço e dos pontos de vista, passamos a observar
necessariamente o novo enfoque concedido ao espaço pelo modernismo literário.
Nas obras contemporâneas, o espaço geográfico (dimensional)
transforma-se também em espaço histórico (não-dimensional).
Em outras palavras, o espaço físico de presença determinante
já aparece como território cultural, refletindo o feixe de inter-relações
históricas e metalingüísticas que autorizam a formação
de uma prática comunicativa nacional. Se a paisagem física dimensionava
as especificidades das comunidades sertanejas, habituadas a reagir à
natureza inóspita, a configuração das caatingas, tornadas
espaço histórico, se apresenta como paradigma identitário,
surge como ambiente síntese das contradições de conquista
da terra brasileira.
E é justamente nesse ponto que a obra fundadora apresenta elementos suficientes,
que serão desdobrados pelos três romancistas, para impulsionar
a busca de uma teoria da comunicação nacional ancorada nas várias
especificidades do grande país, povoado de lendas, manifestações
culturais, crenças, costumes e tradições, engendrando contextos
múltiplos suscetíveis de configurar condições variadas
de produção e de recepção de mensagens e de formação
de públicos que, mesmo diferenciados, dão origem a uma opinião
pública matriz, mediada pelos meios de comunicação, com
dimensão nacional unificadora. Nossa tarefa foi então a de selecionar
em cada obra os Homens-palavra, a metáfora apropriada de Gutierrez (1997),
para evidenciar a presença de personagens comunicadores em todas as tramas,
dando forma ao cotidiano dos sertões, aos conflitos fratricidas e aos
embates políticos, lembrando as causas da degenerescência social
e, algumas vezes, citando literalmente os textos de Euclides, este como personagem-matriz
das práticas metalinguísticas de questionamento das próprias
formas de concepção e de transmissão de mensagens.
Metodologia: Análise Textual Comparativa
Para captarmos melhor as formas de expressão
das teorias utilizadas pelas obras canudianas, concentramo-nos na terceira parte
do ciclo temático canudiano. A Sintaxe Funcional do modelo semiótico
de Roland Barthes serve como forma de organização cuja unidade
básica é um pequeno agrupamento de Funções, constituindo
uma Sequência. Essa cobertura funcional foi utilizada em cada narrativa
proporcionando um melhor detalhamento dos três romances para posteriormente
permitir uma análise estrutural e textual comparativa entre elas.
A Seqüência Geral constitui-se na Guerra (A Luta) e, a partir dela,
cada autor desenvolve sua narrativa que não necessariamente possui as
mesmas funções. A Luta, como seqüência histórica,
alimenta as narrativas de acordo com o esquema abaixo:
S ( A LUTA )
F1 F2 F3 F4 F5 F6
Antecedentes Travessia do Cambaio Expedição Moreira César
4 ª expedição Últimos dias Pós-Guerra
O código das ações inicia em F1 em Os Sertões, La
Guerra el Fin del Mundo e As Meninas do Belo Monte: a série de combates
é desencadeada a partir do incidente desvalioso, quando Conselheiro,
tendo adquirido em Juazeiro certa quantidade de madeiras, e não as recebendo,
resolveu ir buscá-las à força. No entanto, J.J.Veiga inicia
sua obra fictícia em F5, preocupando-se apenas em contar a saga impossível
de outra cidade utópica, construída sobre os escombros dos erros
de Canudos. O ponto em comum entre A Casca da Serpente e o romance de Chiavenato,
As Meninas do Belo Monte, é que ambas preocupam-se com o day after, o
pós-guerra, enquanto o romance de Vargas Llosa atualiza sua reverência
ao texto euclidiano.
No nível do código da narração, distinções
sobre as posições dos narradores são de grande importância
para a análise do ângulo de visão através do qual
as ações vão sendo conduzidas. É utilizado o ponto-de-vista
onisciente com focalização neutral no qual o narrador, em 3ª
pessoa, sabe tudo a respeito dos acontecimentos e dos personagens, mas adota
um enfoque impessoal e neutro, tornando a narrativa uma sucessão lógica
de ações. Por outro lado, em alguns momentos, utiliza-se a focalização
interventiva, quer seja através de citações euclidianas
ou por comentários.
A tensão entre o tempo cronológico, da sucessão lógica
das ações, e o tempo psicológico, que é justamente
onde podemos captar os diferentes pontos de vista, possibilita a sistematização
do paradigma da opinião pública. Segundo Vitalino Rovigatti ,
opinião pública é uma manifestação de um
juízo comum a um número de pessoas ou a todo um grupo, que se
propaga não pelo fato de ser comprovada mas, em geral, porque penetra
na sociedade junto com um conjunto de elementos comoventes (emotivos) que pressionam
aqueles que ouvem, vêem ou lêem.
Euclides da Cunha em Os Sertões discute conceitos variáveis de
opinião (coletiva, nacional, comum, pública) e de públicos,
vinculados aos grupos de pressão da época (igreja, latifundiários,
republicanos, monarquistas e etc.), os chamados grupos de interesse, o que constitui,
como já frisamos, a primeira sistematização de tais conceitos
no Brasil. A partir daí, consegue formular um arquivo de imagens e enunciados,
um estoque de "verdades", que direcionam comportamentos e atitudes,
o olhar e a fala de autores contemporâneos. O autor acaba por instituir
uma dizibilidade e uma visibilidade, imagens e discursos repassados, repetidos
e cristalizados como realidade do que foi a guerra e do que são os sertões,
que não apenas contaminam fortemente os discursos contemporâneos,
mas sobretudo fornecem pistas metodológicas para o exame de formas de
comunicação entre públicos diferenciados no contexto nacional..
Dessa forma, pudemos comparar os códigos das ações e da
narração nas quatro obras, elegendo núcleos temáticos
aptos a determinar a prática da comunicação nas funções
da guerra e no pós-guerra. A questão do governo ideal e do comportamento
da República face aos diferentes brasis , a dicotomia litorâneo
X sertanejo, a atuação dos homens-palavra na formação
da opinião nacional e na construção dos heroísmos
militares ou midiáticos, a apresentação do tipo de liderança
encarnada por Conselheiro e as projeções de Canudos nos movimentos
rurais atuais são temas que definem a visibilidade e a dizibilidade de
um Brasil vivo, forte e profundo que, mesmo abandonado, está pronto a
fornecer a matéria para a construção de uma identidade
nacional. São esses os temas analisados através das quatros obras.
Análise dos Dados
O escritor peruano Mário Vargas Llosa, maravilhado
com a obra euclidiana, adotou o tema para escrever La Guerra el Fin del Mundo.
Demasiadamente envolvido com a vida política, faz de seus romances um
ato de rebelião e crítica à realidade histórico-social
da América Latina. Apesar de ver em sua vocação literária
uma forma de resistência ao poder, "uma atividade a partir da qual
todos os poderes podiam ser permanentemente questionados" (Llosa, 1994),
candidatou-se às eleições da Presidência da República
do Peru em 1990, mas foi derrotado por Alberto Fujimori.
Llosa realiza a reconstituição do que chamou de "mal-entendido
nacional", com personagens ficcionais ao lado de históricas, construindo
um misto de crônica e história. O tempo, utilizado por este autor,
apesar de ser cronológico, como já vimos, não segue a ordem
do "antes, durante e depois".
"Muitas vezes dentro de uma unidade narrativa dois ou mais episódios
ocorrem em tempos e lugares diferentes para que as vivências de cada episódio
circulem de um a outro e se enriqueçam mutuamente" (Bella Josef,
1986)
Nascido no Mato Grosso, mas de formação goiana, José J.
Veiga, ligado emocionalmente às obras de Monteiro Lobato, alcançou
a contística regional em etapa avançada de modernização,
e às suas conquistas recentes acrescentou uma experiência de leitura
do ficcionismo inglês e americano.
José J. Veiga, de uma maneira geral, investiga a condição
humana na qual a solidariedade sofre com a perversidade e a indiferença,
com os preconceitos e egoísmos e até mesmo com a passividade.
A Casca da Serpente situa-se dentro do gênero narrativo, ou seja, aquele
em que o autor procura transmitir ao leitor sua visão da realidade através
de uma história. Apesar de incorporar elementos do dramático e
do lírico, trata-se de literatura narrativa de ficção.
O autor estrutura e narra sua ficção com extrema simplicidade,
numa prosa que tem o colorido brasileiro, e recorre à oralidade, seja
captando falares, seja reproduzindo ditos e máximas populares que traduzem
a sabedoria dos humildes. Através da linguagem simples e da utilização
de recursos estilísticos, J.J.Veiga constrói uma história
de Canudos pós-guerra, baseada na observação de detalhes
do cotidiano, porém inserindo nele o fantástico.
Júlio José Chiavenato é um conhecido jornalista e escritor
de temas históricos latino-americanos. Nascido em Pitangueiras (SP),
viveu sua infância em Ribeirão Preto e a partir de 1971, lançou
uma série de livros analisando o grau de dependência da América
do Sul aos imperialismos da Inglaterra e dos Estados Unidos.
Voltando-se mais para o seu país, lançou em 1993 As Meninas do
Belo Monte, um dos romances mais recentes sobre Canudos que, não somente
denuncia a escravização e prostituição das crianças
do Belo Monte após a Guerra de Canudos, mas também, numa correlação
com Euclides da Cunha e sua obra canudiana, confirma a descoberta da identidade
nacional pel´Os Sertões e discute a manipulação dos
"homens-palavra" para com a História.
Ao iniciar a obra, Chiavenato divide-a em três fases concomitantes com
Os Sertões. A AMÉRICA (A Terra) revela a luta de uma gênese
inacabada, pela qual a identidade nacional será fragmentada e o país
ficará sem uma unidade. O BELO MONTE (O Homem) é a esperança
do sertanejo em busca de paz, de uma casa no sertão, mas que acaba entrando
numa luta com os civilizados. Na fase A LUA (A Luta), o autor revela a luta
entre a lua e o sol que pode ter várias conotações: a luta
entre o sertanejo fraco e o governo forte e poderoso, a luta entre a seca e
o desejo de permanecer na terra árida e agreste, a luta entre a utopia
sertaneja de salvação e o castigo dos homens e a luta entre a
História vivida e a História contada.
A narrativa se desenvolve em dois tempos cronológicos:
" No tempo do Belo Monte, a Primeira Canudos (1897) consumida pelo fogo.
Acompanhando a vida do arraial antes do conflito armado, durante a guerra e
após sua destruição através do olhar da menina Josefa
que, sobrevivente da catástrofe, é resgatada por um repórter,
passa por um depósito de prisioneiras, é vendida a uma prostituta,
revendida a um ex-coronel impotente junto com Maria José e, por fim,
retorna a Canudos com um novo profeta, o menino Dosideo, um setemesinho sobre
o qual o autor depreende um realismo fantástico ;
" No tempo do personagem que vive a Segunda Canudos (1988), sepultada pela
água: um homem sem nome e sem história que passa sua vida numa
canoa sobre a cidade santa submersa, imaginando-se a reencarnação
de Josefa (realismo maravilhoso). No presente deste personagem, há um
encontro entre ele e um frade perseguido pelos senhores de terra por ser a favor
da Reforma agrária, o que vincula o tema canudiano a contemporaneidade.
Esta narração ambígua é caracterizada por uma aparente
continuação entre essas duas histórias, mesmo sendo narradas
em tempos diversos. Chiavenato aponta ao leitor que Josefa e o Sem nome, apesar
de raças diferentes (um negro e outro branco) vivem num mesmo cenário,
crêem no Bom Jesus e são prisioneiros da vontade de Deus.
Embora o regime político republicano seja apresentado por J.J.Veiga como
forma de governo ideal, a República Brasileira é criticada tanto
n´As Meninas do Belo Monte, n´A Casca da Serpente e em La Guerra
del Fim del Mundo, seja pelo próprio Conselheiro, por um estrangeiro
ou um Coronel. A construção de uma República, com uma feição
irracional, é constatada na prostituição de pobres crianças
sertanejas, assim como nas ações atrozes do Exército sobre
uma comunidade combalida pela fome e pela seca. A tecnoburacracia expandida
no litoral impõe uma busca a necessidade de apagar o sertão que
destoa do que se pretende ter como Brasil. Combate-se seu folclorismo, seus
movimentos messiânicos, seu fanatismo religioso com o intuito de civilizá-lo.
É esta interferência abrupta que esses romances combatem com veemência,
até porque não buscando conhecer a situação sertaneja,
a República cometia um grande erro, em lugar de analisar as falhas da
História Colonial. Na verdade, não se atentou que as dificuldades
da seca já deveriam ser solucionadas pela atuação do Estado.
Menos racionais do que deveriam ser, os industrializados não eram mais
considerados o cerne da sociedade brasileira por Euclides da Cunha, o que Chiavenato,
Veiga e Llosa confirmam em suas obras. A dicotomia entre o litorâneo,
industrializado do Sul e Sudeste, e o sertanejo, atrasado do Nordeste, é
elaborada n´Os Sertões e perpassada para a Contemporaneidade. O
conflito entre os dois Brasis é resultante da necessidade de mostrar
o verdadeiro Brasil, não o Brasil artificial, do estrangeiro, mas o Brasil
do campo, o Brasil do Sertão no qual se esconde a "chama viva de
nossa nacionalidade", livre de influências alienígenas.
A partir de uma Sintaxe Funcional, verifica-se que há uma Sequência
Geral englobando os quatro romances. A Guerra é o fato que caracteriza
esta Sequência e, através dela, propaga-se uma opinião pública
nacional. Assim como Euclides, Chiavenato e Llosa denunciam a formação
da opinião pelos caminhos de uma psicologia coletiva sujeita às
paixões e interesses de grupos. No entanto, Veiga desenvolvendo sua ação
por meio de diálogos, propõe a construção de uma
opinião pública através da discussão. O que ele
faz é remontar a definição de opinião pública
mostrando que trata-se de um fenômeno dialético resultante do choque
entre opiniões divergentes diante de um fato. Com isso, A Casca da Serpente,
descarta a possibilidade da imprensa ter o poder de impor uma opinião
e de manipula-la de acordo com interesses específicos.
Os "homens-palavra", provenientes da imprensa, têm a função
de documentar a História da Guerra de Canudos para suprir a necessidade
de construção de uma memória histórica. Todos os
"homens-palavra" do romance de Vargas Llosa opõem a presença
da palavra oral ou a escrita ao esquecimento dos fatos. O Jornalista Míope
expressa a necessidade de se manter uma memória dessa história
da única forma que as coisas são conservadas: "Escrevendo-as".
Galileu Gall é o segundo personagem-escritor. Correspondente de guerra
do jornal de Lyon, L´Étincelle de la rèvolte, expressa perfeitamente
o estranhamento da realidade e do conflito que o leva a escrever como tentativa
de correção e mudança. Gall é um aventureiro revolucionário,
porta-voz das utopias libertadoras, que encontra no sertão do Brasil
a comunidade socialista pela qual sempre sonhou e lutou.
Veiga foca seus "homens-palavra" sobre os personagens de um escritor
e um retratista. O primeiro, depois de muitas discussões com Conselheiro,
acaba o induzindo a escrever um livro sobre a Campanha, enquanto o segundo,
está presente em apenas um dado momento da ação. É
o momento da aproximação de Itatimundé (cidade fictícia)
com o resto do mundo, quando os conselheiristas têm contato com imagens
dos presidentes e de grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e
Nova York.
Embora não haja apenas um jornalista na narrativa de Chiavenato, a atenção
fixou-se mais num carioca d´A gazeta, um homem egoísta que, em
meio a guerra e as ações terríveis do Exército,
está preocupado apenas em recolher objetos canudenses, mesmo que humanos,
para ter sucesso quando os exibisse na sociedade civilizada.
"Sinto que vou ficar na história. Os pósteros falarão
de mim: ele esteve lá, ele ajudou a fazer a história". (Chiavenato,
pág. 90)
Para ele, denegrir a imagem do Exército era perder sua esperança
de fama e heroísmo. Covarde, sabia que não podia ir contra um
país inteiro e por isso acostumou-se com a idéia.
"Não fui covarde, nem indiferente. Obedeci a lei da guerra"
( ibid, pág. 94)
É a partir dele que se discute o papel da comunicação em
época de guerra, a excessiva preocupação com o heroísmo,
mais com a promoção pessoal do que com a própria notícia.
N´Os Sertões toda a problemática do heroísmo está
nos protagonistas do Exército, enquanto Chiavenato passa esse papel para
a Imprensa (como instituição):
"Os jornais festejam a vitória. Uma ou outra voz isolada timidamente
denunciou o massacre. Mas o governo exultava. O exército respirou aliviado:
sua honra foi salva." (Ibid, pág. 84)
O heroísmo trabalhado por Llosa é idêntico ao de Euclides
da Cunha. Moreira César é um homem admirado por todos, inclusive
pelo jornalista Míope. Todavia, não é só a figura
do Exército que é glorificada neste romance, os líderes
sertanejos também são considerados heróis por surpreenderem,
tendo em vista o potencial de planejamento e estratégias de guerra que
possuem.
Apresentando personagens reais e fictícios, Veiga faz questão
de negar a exemplaridade do herói. Para o autor, todos os personagens
têm igual importância e conseguem transmitir essa idéia através
da humanização de cada personagem, que agora, ao contrário
do que afirmou Euclides da Cunha, agem de maneira racional e de acordo com cada
circunstância, não mais instintivamente e pelos caminhos de uma
psicologia coletiva. A heroína desta narrativa não é nada
menos que a cidade de Itatimundé. Símbolo do heroísmo dos
sobreviventes de Canudos, aparece como um laboratório político-social
para o sertão, para o Brasil e para o mundo. Apesar de tornar-se uma
cidade modelo, Itatimundé não foi legitimada e sim completamente
destruída.
Como a maioria dos romances sobre Canudos, estas obras não deixaram de
apresentar a figura do jornalista, como já foi visto, e o Conselheiro.
Antônio Mendes Maciel é sempre retratado em La Guerra el Fin del
Mundo, segundo o ponto de vista de outro personagem, o que ratifica o seu ar
de mistério e santidade, bem diferente da imagem feita por Euclides que,
em todo o livro, mostra um homem degenerado e louco. Mas, tanto o Conselheiro
euclidiano, quanto o Llosiano pregam o fim dos tempos e o apocalipse, tendo
na República a figura do anticristo, contra o qual deviam lutar até
a morte.
O fanatismo religioso aparece mais ameno n ´A Casca da Serpente e n´As
Meninas do Belo Monte. No primeiro romance, Conselheiro ainda vivo, está
presente em toda a ação e evolui no decorrer da narrativa através
de mudanças de comportamento: não reza mais tanto como antes por
crer que muita reza afronta a Deus e divide as responsabilidades. Preocupa-se
em se apresentar vestido como os outros e até sorri. No romance de Chiavenato,
Conselheiro é narrado como um misericordioso na solidariedade à
luta do Sertão. Crítico das injustiças da República
e fanático pela Virgem Maria e pelos dogmas da Igreja, é perseguido
tanto pelos republicanos, que o acusam de monárquico, como pelos bispos,
que o têm como louco.
Considerado um celerado por ter recebido as bençãos da Virgem
Maria e em troca disto deve defender os pobres, tem forte ligação
com Frei Paolo, um padre também chamado de celerado por lutar pela Reforma
Agrária. Os traços de modernidade estão inscritos nestes
dois personagens separados por uma única diferença: Conselheiro
vive no tempo de Josefa e o padre no tempo do Sem nome. De um lado, um Antônio
Conselheiro muito inteligente, com noção de administração,
economia e organização de guerra na medida em que exporta de Belo
Monte peles de cabra, e com o dinheiro compra armas para a defesa do Belo Monte.
Do outro, Frei Paolo, 90 anos mais tarde cita os Sem-terra e a Comissão
Pastoral da Terra, por se preocupar com a possibilidade de divisão igualitária
de terras para que os sertanejos, fartos de sofrimentos, possam viver dignamente
do seu próprio pedaço de chão, sem escravizar seu corpo
e sua própria alma, alugados aos senhores de terra. A modernidade desse
padre, que não usa batina e retira os santos da Igreja, vem salientar
que é um pedaço de terra o que desejam movimentos como Canudos
e os Sem-terra; movimentos que são reprimidos instantaneamente para não
desequilibrar a "ordem e a igualdade" do sistema. Chiavenato enfatiza
que Canudos e os Sem-terra, apesar de quase 100 anos de distância, aspiram
aos mesmos ideais: terra e paz.
Conclusão: Para uma Teoria da Comunicação
com bases nacionais.
A Guerra de Canudos foi a primeira a ter cobertura diária para todo o
país. Graças ao telégrafo e à imprensa emergente,
todos se envolveram com um fato, ocorrido nos sertões esquecidos e isolados.
O exercício da comunicação, com a sua conseqüente
formação de públicos, foi veementemente criticado, em todas
as suas conexões com os poderes emanados de uma jovem República,
destinada a modernizar as estruturas coloniais do país.
Mas o que mais cria interesse pelos estudos do ciclo canudiano repousa em um
fato interdiscursivo que propiciou a auto-reflexão na representação
sobre a guerra, ocasionando um confronto de gêneros. Do momento em que
tal representação pode sair das páginas dos jornais para
as páginas literárias, iniciou-se um processo de avaliação
não apenas do objeto representado, mas das formas como a comunicação
estava construindo a história.
Euclides da Cunha instaurou os debates, no meio literário, sobre as ambigüidades
de um texto narrativo que elegia um fato histórico como matéria
discursiva, materializando através dele inúmeras relações
enciclopédicas entre a geografia, a geologia, a antropologia, a comunicação,
etc. Nesse sentido, ele sistematizou uma teoria da comunicação
nacional, construída através das reações de variados
públicos individuais, coletivos, regionais, ou mesmo nacionais, de acordo
com a conceituação que ia elaborando em função das
distintas fases da guerra. Por outro lado, ao desenhar o retrato inteiro do
país, nesse texto enciclopédico, alertou a nação
quanto aos problemas climáticos e ambientais e à necessidade de
investimentos para a irrigação das zonas atingidas pela seca,
fenômeno desencadeado pelas Entradas e Bandeiras em sua práticas
de desmatamento. Alertou igualmente sobre o perigo do país continuar
mantendo dois tipos de irmãos em condições desiguais de
vida, e de promover massacres fratricidas para atender objetivos e interesses
do capitalismo internacional.
Nesse diálogo de gêneros, o jornalista-escritor mostrou a força
da página escrita para a construção de uma nação,
metaforizando em Canudos o ideal de soberania, da rocha viva de nossa nacionalidade
que acabava de ser exterminada antes de chegar a ser. Assim, optamos em analisar
nosso ciclo com as funções narrativas no sentido de evidenciar
a cronologia da guerra e das formas como os diferentes autores retomaram fases
importantes do conflito, em que se materializam os "homens-palavra",
essa importante metáfora que instala o paradigma discursivo como fonte
de construção da visibilidade e da dizibilidade das contradições
nacionais, fonte, por outro lado, da determinação dos pilares
identitários, através dos quais, torna-se possível se repensar
a identidade a nível nacional.
De todas as maneiras, esse ciclo, que deve ser analisado em todos os cursos
de Comunicação Social, no sentido de se depreender verdadeiras
teorias da comunicação e da opinião pública nacionais,
serve de paradigma para os movimentos dos trabalhadores rurais que ainda estão
brigando pela reforma agrária e justiça social:
Maltratada pela história oficial, Canudos e a figura controvertida de
Antônio Conselheiro sobrevivem no imaginário de grande parte dos
camponeses brasileiros como um dos símbolos da luta pela reforma agrária.
Na leitura que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem0Terra faz da epopéia
de Canudos, Antonio Conselheiro é o líder sertanejo que desafiou
a Monarquia, a República e a elite rural dominante. (A Tarde, 11-1-97)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Albuquerque Jr., Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outras
Artes. São Paulo: Cortez, 1999.
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Augras, Monique. Opinião Pública: Teoria e Pesquisa, , Petrópoles,
Ed. Vozes LTDA, 1980.
Avighi, Carlos Marcos, O sertão brasileiro e o cenário mundial
no jornalismo de Euclides da Cunha, Revista Brasileira de Comunicação,
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