A nossa é uma sociedade política elementar, carente da laicização
necessária para a elaboração de um processo político democrático onde as
massas populares tenham cidadania. O povo pária forma um enorme caudal externo
à convivência política oficial. O Estado comanda a vida nacional de fora,
mecanicamente e sob a égide de forças políticas que atuam como oligarquias.
As elites se empenham, não em realizar mas em trair a promessa moderna de
formar uma sociedade aberta, emancipada. Entregue, desse modo, a si mesmo num
crudelíssimo abandono o povo entra na história de forma sempre clandestina,
proibida: como fator explosivo, de caos social e político ou como contrapeso
sistemático das disputas dos grupos dominantes A experiência rebelde de
Canudos representa bem este paradigma do caos que nos acompanha “república”
adentro... Juazeiro do Pe. Cícero é o outro polo do povo-apêndice das elites
sociais e políticas.
Antônio Conselheiro é a encarnação mais radical do caracter simples e
granítico de uma moralidade popular solitária, apartada da racionalidade
civilizada construída desde os primórdios da cultura. O povo lhe atribuía
qualidades divinas e ele cumpria o receituário à risca: proibia a
contradição de transitar entre o que ele falava e o que fazia; dormia - conta
Euclides da Cunha em “Os Sertões” - na tábua ou no chão duros e jejuava
como os pobres que o seguiam sertão afora. A sua abstinência era a prova de
amor e respeito divinos pelos seguidores que então retribuíam com a mesma
dedicação extremada: lutaram para além da morte do “santo” até a
destruição total da “Tróia de taipa”. O exército dava aos prisioneiros a
alternativa de salvarem-se do estripação e da degola assumindo a infâmia de
gritar “viva a republica!”. Mas fieis ao Conselheiro eles gritavam: “viva
o meu Bom Jesus!”
Pe. Cícero que trabalhava à época em Salgueiro desarmando os populares que
acorriam à Canudos, tirou-os do abandono total e emergiu como um modelo que as
elites brasileiras adotaram: o da manipulação sistemática do povo.
Com as dores profundas da escravidão e das ditaduras populista e militar
impressas nas mentes e nos corações, na alma, a população, domesticada, não
age sem a “guia” do líder. Pe. Cícero assim se multiplica nas
re-encarnações de Frei Damião, Padre Marcelo, Jânio Quadros, Color de Mello,
dos ACMs, dos Jáder Barbalhos...
Elegendo-se com o projeto de tirar o povo e o país do “isolamento
autárquico” do modelo Getulista - sem confessá-lo - FHC é a mais
aperfeiçoada encarnação do paradigma do caos: atua uma reforma da vida
econômica ao serviço de interesses neocoloniais que marginalizam como nunca o
povo e o país do ponto de vista material e político. Ele freia a história com
a mentira, com a vaidade, com a corrupção sistemática, com as alianças
espúreas e com os compromissos anti-nacionais.
Publicado pelo Jornal Estado de Minas em 26/05/2001
Fernando Massote - Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG
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