O sertanejo. Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho. Os vaqueiros. Servidão
inconsciente; vida primitiva. A vaquejada e a arribada. Tradições. A seca. Insulamento
no deserto. Religião mestiça: seus fatores históricos. Caráter variável da religiosidade
sertanejo: a Pedra Bonita e Monte Santo. As missões atuais.
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos
mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário.
Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações
atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto
a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante
e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura
normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de
humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro
umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas
palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre
a esplenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea
e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser
o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca
pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar
ligeira conversa com um amigo, cai logo - cai é o termo - de cócoras, atravessando
largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica
suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma
simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra
demorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa
das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização
combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento
de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O
homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na
estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes
aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa
descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos;
e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto
dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de
força e agilidade extraordinárias.
Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em
todos os pormenores da vida sertaneja - caracterizado sempre pela intercadência
impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.
É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas
coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição
da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes
e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a
passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase
transforma o "campeão" que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois
terços da existência
Mas se uma rês "alevantada" envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta,
ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado,
cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como
um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.
Vimo-lo neste steeple-chase bárbaro.
Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos
de pedras, coivaras, moiras de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe
impede encalçar o garrote desgarrado, porque "por onde passa o boi passa o vaqueiro
com o seu cavalo"...
Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças a pressão dos jarretes
firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente
nas clareiras; mergulhando nas macegas altas; saltando valos e ipueiras; vingando
cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se,
a toda brida, no largo dos tabuleiros . . .
A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda a plenitude. Como
que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustenta-o
nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na
carreira -estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente,
torso colado no arção - "escanchado no rastro" do novilho esquivo: aqui curvando-se
agilíssimo, sob um ramalho, que lhe roça quase pela sela; além desmontando,
de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate
de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois, num pulo,
o selim; - e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra
sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos cipoais, a longa aguilhada
de ponta de ferro encastoada em couro, que por si só constituiria, noutras mãos,
sérios obstáculos à travessia...
Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rès dominada, ei-lo, de novo
caído sobre o lombilho retovado, outra vez desgracioso e inerte, oscilando à
feição da andadura lenta´ com a aparência triste de um inválido esmorecido
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