A obra-prima de Euclides da
Cunha tem muito mais fama do que leitores. À parte os especialistas e
discípulos fiéis, é comum assustar-se com suas peculiaridades técnicas e lingüísticas,
desistindo-se da leitura. Trata-se, porém, de um livro fundamental e
apaixonante, sempre atual, espécie de fonte inesgotável que a cada retomada
desvenda riquezas novas.
Destinado primeiramente a
historiar a Campanha de Canudos (Bahia, 1897), cresceu em extensão e
profundidade até tomar-se um documento dramático do sertão semi-árido
nordestino e da tragédia de seu habitante.
Um olhar sobre Canudos – Óleo de Otoniel Fernandes Neto
Sua primeira parte (A Terra) é mais do que a simples
construção de um palco para os acontecimentos. O solo árido, recrestado e
exsicado, o clima hostil, a vegetação tolhiça e agressiva, o isolamento
geográfico que fez do sertão a “terra ignota” não são apenas dados técnicos de
verificações e pesquisas - mas formam a Terra,
gigantesco personagem trágico em constante diálogo de amor e morte com o
protagonista. Tanto é assim que “o martírio do homem, ali, é reflexo de tortura
maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida. Nasce do martírio
secular da Terra...”
Vaquejada – Óleo de Otoniel Fernandes Neto
O Homem, mestiço “purificado” pelo isolamento, constitui,
“inegavelmente, o tipo de uma subcategoria étnica já constituída”, forte,
embora magro e deselegante. Modelado à feição do meio, reflete todas as
conseqüências do isolamento físico e cultural que experimentou durante três
séculos: é retrógrado, sem ser
degenerado; religioso e supersticioso; simples e crédulo, facilmente
influenciável por líderes carismáticos.
Antônio Conselheiro era um destes.
Anacoreta severo e sombrio, galvanizava as multidões, que o seguiam
processionalmente de vila em vila, rezando, reconstruindo igrejas e cemitérios,
peregrinando em busca do Reino. Em 1893, depois de um incidente com a polícia,
reuniu seus adeptos numa velha fazenda de gado à margem do Vaza-Barris,
nascendo assim o arraial de Canudos: um amontoado de casas de pau-a-pique
construídas às pressas, habitadas por uma população multiforme de sertanejos
simples, beatas, ricos proprietários que abandonavam tudo em busca da salvação,
bandidos que ali achavam abrigo seguro. A principal norma de vida era rezar às
horas certas; a moral era elástica e os inevitáveis saques e tropelias nas
redondezas eram tolerados com complacência.
O
Conselheiro pregava contra a República - o Anticristo - sem o mais pálido
intuito restaurador, pois os sertanejos, no seu atraso cultural, eram tão
inaptos “para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional”,
pois estavam “na fase evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe
sacerdotal ou guerreiro”. Foram, contudo, rechaçados como agitadores
monarquistas, quando eram na verdade vítimas inevitáveis de um atraso cultural
de três séculos, a reclamarem providências integradoras e não combate armado.
A Luta começou
com um “incidente desvalioso”: como o juiz de Juazeiro (Bahia) se recusasse a
entregar aos jagunços certas tábuas para a construção da igreja nova de
Canudos, o Conselheiro ameaçou invadir a cidade. A reação foi imediata: 100
homens chefiados pelo Tenente Pires Ferreira, que não conseguiram derrotar os
sertanejos e debandaram assustados com a coragem do inimigo (novembro de 1896).
Zona
Mortífera – Óleo de Otoniel Fernandes Neto
Seguiram-se três expedições militares (1897) chefiadas,
respectivamente, pelo Major Febrônio de Brito, Coronel Moreira César, Generais
Artur Oscar e Savaget. O contingente das tropas aumentava de uma para a outra -
mas, desconhecendo as condições do meio, não conseguiam derrotar os jagunços,
em patente minoria. Por isso a luta assumia uma “feição misteriosa”. A vitória
da República só se concretizou quando para lá se dirigiu o próprio Ministro da
Guerra, Marechal Bittencourt, que reformulou tragicomicamente os planos de ataque:
passou a alistar muares para o transporte de víveres, mantendo bem alimentadas
as tropas, de sorte que o animal mais vilipendiado da História assentou
dominadoramente suas patas entaloadas sobre uma crise - e esmagou-a...
Morreu o Conselheiro e
também os principais jagunços (Pajeú, Vila Nova, etc.). Canudos sucumbiu a 5 de outubro de 1897, quando foram
vitimados seus últimos defensores: um velho, dois homens feitos e uma criança,
“na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”. Foi um crime.
Por isso Os Sertões é um livro vingador. O
determinismo científico do tempo, perfilhado por Euclides, acenava para a
inevitabilidade da tragédia: um choque de culturas em estágios diferentes, um
confronto entre uma raça fraca e uma forte só poderia resultar no esmagamento
da primeira pela segunda; é a “força motriz da História” segundo Gumplovicz,
citado por Euclides. Por que então lamentar? Euclides tinha em mente, com toda
a certeza, o caráter altamente ético de toda tragédia, espécie de “flendo
castigat mores”. Embora cientificamente o desenlace esteja previsto, não é
possível conhecê-lo sem lastimá-lo; há uma grande lição para tirar-se, a fim de
que no futuro se evitem condições que propiciem acontecimentos semelhantes. A
denúncia do crime conduz à catarse, ao alívio da alma pela satisfação de uma
necessidade moral - além de colocar em pauta, sem meios tons, o eterno problema
da opressão dos fracos pelos fortes.
Os Sertões nunca
perderá o sabor e a atualidade. Quem se debruça uma vez sobre suas páginas
sempre volta a fazê-lo- e nunca fica decepcionado.
APRESENTAÇÃO DE “OS SERTÕES” DE EUCLIDES DA CUNHA
Célia M. F. F. da Silva