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Euclides e o berço de Os Sertões
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O Corpus Lingüístico da Produção Euclidiana
2003-07-29 11:48:42

 

O  Corpus   Lingüístico  da  Produção  Euclidiana

 

Ao leitor que se inicia na leitura de Euclides logo se destaca a estrutura lingüística  de  suas obras,ora como anteparo quase intransponível e irresistível que obriga o estudante  a constantes  consultas ao dicionário,ora como organização escultural e arquitetônica  tão primorosa que quem lê em voz   alta , ludicamente, se encanta  ante  os  recursos  oratórios  da  prosa  euclidiana a soar e ressoar de maneira significativa aos ouvidos pasmados do leitor novato. É  nessa  estrutura  lingüística que reside toda a fonte  para  a  análise  e  estudo da temática euclidiana.

 

Há sobre o Autor vastíssima bibliografia especializada e de  facílimo acesso ao estudante maratonista ou  ao  interessado na  pesquisa  do ideário temático  das obras.Apesar disso, não  está fora de propósito levantar alguns aspectos acerca da  riquíssima  linguagem usada por  Euclides,como sugestão para que se façam  pesquisas atualizadas,à luz dos conhecimentos  que hoje a diversificada ciência lingüística  pode oferecer ao estudante.

 

Seria,por exemplo,muito interessante equacionar as coordenadas do estilo euclidiano num cotejo profundo entre Os Sertões,outras  obras e produções menos contraídas ou menos tensas como Canudos-Diário,cartas a amigos e familiares,telegramas  ,  crônicas e artigos publicados.Verificar as relações  que há entre essas variadas estruturas lingüísticas , seus pontos  de  aproximação,suas características próprias.Sobretudo verificar até  que ponto Euclides revela a mesma tonalidade estilística no confronto entre todas essas produções, até que ponto é válido afirmar com convicção a unidade  estilística de Euclides e até que ponto entre  elas todas é possível encontrar um denominador comum à luz das recentes pesquisas na área específica da Análise do Discurso,investigando-se o que há no bojo  elaborativo da mensagem euclidiana e sua manifestação articulada  ao nível da superfície.

 

Sabemos que Euclides foi a Canudos na condição de repórter.Sua função,pois,seria  alimentar, tanto quanto possível, as páginas de O Estado de São Paulo com um assunto que causava mais impacto em São Paulo e no Rio de Janeiro  do que propriamente na Bahia,onde se davam os acontecimentos,conforme as primeiras impressões do repórter Euclides da Cunha, inseridas  no telegrama que envia da Bahia,datado de 7 de agosto:

 

“Chegamos bem. Fomos recebidos  pelo governador e pelo funcionalismo civil e militar.Observo que nesta cidade há muito menos curiosidade sobre  os negócios de Canudos do que aí e no Rio de Janeiro. “                                                                                                                  

                     

...................................................................................................................................................(Euclides, Canudos,Diário de uma Expedição,   Coleção Documentos Brasileiros, Livraria José  Olympio Editora, Rio, l939, página 127).                                                                              

 

Sabemos também que a sensibilidade de Euclides foi além da frieza do repórter que apenas se preocupa em relatar o fato mas não participa,embora o verdadeiro repórter viva ou consiga  sobreviver  quando seja capaz  de atingir um clima de  impacto na opinião pública. Neste particular,Euclides tinha tudo para ser um magnífico repórter.Sua  linguagem lógica,rigorosa,ainda que arrebatada, talvez não pudesse sensibilizar senão uma elite intelectual   também capaz de   estabelecer com ele um elo interativo,uma sintonia descodificada, um contato de entendimento. Faltava , contudo, ao grande Autor estabelecer com a massa um vínculo conativo,se bem que o termo massa ou povo para a época pese consideravelmente em sua conceituação ,uma vez que poucas pessoas de fato tinham acesso a jornais e inexistiam outros meios de comunicação. E,  ainda que existissem , Euclides não se  prestaria a ser um repórter na perspectiva moderna,a serviço da projeção do noticioso a que  se  achava   vinculado,com o propósito  sensacionalista de polarizar e impactar a opinião pública.

 

O fato é que Euclides ,como se sabe,deixou de lado o simples caráter de reportagem para atirar-se a empreitada bem mais elevada. Seu propósito ,a partir de  uma  postura responsável e consciente do seu compromisso  com os verdadeiros valores nacionais , foi  sensibilizar  a elite intelectual brasileira  e levá-la a refletir quanto  à dimensão  do  problema  político-social  que estava ocorrendo em Canudos. Daí o aparecimento  amadurecido de  Os Sertões, obra que evidentemente não anula a reportagem,mas trata do tema com requintes de ciência e  superior sensibilidade artística,  de alto grau emotivo e profundamente vincada pelo espírito  de  humanidade.

 

Gilberto Freire,introduzindo o Diário aqui já  citado,à página XVII, coloca em confronto a postura lingüística de Euclides  nesta obra e em Os Sertões : “As palavras saem-lhe porém, nestas cartas, e nas crônicas, mais soltas; e com umas  sem-cerimônias, uns  avontades(sic),  uns abandonos que faltam às páginas  como que acabadas,completas, definitivas d’Os Sertões. Sente-se nas  crônicas um gosto diverso  do da obra madura e quase monotonamente lapidar; um gosto com a sua ponta de verdade, o seu pico de espontaneidade, embora, de modo nenhum,  de improvisação”.

 

Quer nas cartas e telegramas com menor intensidade,quer em Os Sertões   já com grande densidade,  Euclides  revela-se  o mesmo escritor preocupado com a estrutura clássica da frase,  com a força e o vigor do vacabulário preciso e marcante, com o mesmo comportamento na entoação da frase, na paragrafação, na seleção morfológica e , sobretudo, no poder sintético das frases lapidares,encabeçando  com  tópicos  frasais  a  apresentação  argumentativa dos mais variados assuntos,bem como na exploração  das reticências  como forma de deixar ao leitor o compromisso de  co-participante dos fatos.

Nos telegramas(aos  quais melhor caberia o rótulo de cartas)   Euclides jamais  faz concessões à  linguagem  truncada e mutilada. A frase lhe sai normal,bem próxima  do estilo epistolar mais ou menos  distenso,mas com as entonações  e acentos melódicas já característicos  dos traços marcantes de seu estilo. O Autor  não conseguiu condensar ao máximo sua  linguagem; não se deixou envolver pela necessidade de uma forma mais breve de comunicação, econômica  , que  reside na capacidade de o  destinário recobrar  o que  ficou subentendido. Examinados os telegramas,pode-se perfeitamente verificar que nenhum deles  chega a se  parecer com a tradicional  ou convencional,econômica e  apocopada expressão telegráfica. Há os que se  constituem de poucas palavras,mas todas muito bem arranjadas em frases claras, com todos os ingredientes da coesão morfossintática presentes,que não  dão margem a subentendidos  e entrelinhas. O menor deles certamente é o de 25 de setembro(em caráter urgente)  ,  passado de Monte  Santo;

 

“Monte Santo,setembro 25(Urgente)

Está completo o sítio de Canudos,

Viva a República.”  (Diário,pág. 152)    

 

Como se vê , nem aqui o Autor eliminou ou dispensou os  instrumentos  que  completam  o processo relacional das palavras na frase  da linguagem  normal da comunicaçao,  mas dispensável na telegráfica . O artigo,por exemplo,ou o verbo auxiliar,ou ainda a preposição, termos normalmente omitidos na linguagem telegráfica,  não foram poupados  por Euclides. Dentro dos padrões  telegráficos assim  ocorreria  o texto: “Completo sítio Canudos.Viva República.”  O zelo do Autor pela precisão e clareza  talvez rejeitasse  mutilações e subentendidos em sua mensagem.  Ainda Gilberto Freire , na introdução ao Diário,páginas XVII e XVIII,   afirma: “O que desejo salientar aqui e o que me parece ponto inteiramente  tranqüilo  na personalidade de Euclides da Cunha é a  dificuldade tremenda que, segundo um observador atento,  ele tinha em redigir. João Luso acompanhou-lhe uma vez a tortura de estilista redigindo com um vagar de quem fizesse renda um artigo para o Jornal do Comércio: levou aquilo mais  de trê s  horas para ocupar um resumido espaço no jornal.”

 

É necessário que se entenda dificuldade  não como incapacidade ou coisa parecida no sentido de encontrar a estrutura adequada  à  expressão da mensagem,mas zelo exagerado,policiamento pertinaz , coisa que sobejamente comprovam as  correções e modificações  feitas nos originais de Os Sertões.

 

No que se rotula de cartas,sente-se bem o sabor do estilo próprio do gênero  diário,mas já desponta em quase todos os momentos o estilo da grande obra ,a sua cadência frásica,ressalvada a maior espontaneidade , qualquer coisa de descontração que as cartas deixam entrever. De um atormentado da forma castiça e trabalhada como Euclides,que muitas vezes com certeza precisava reprimir as rédeas de seus arrebatamentos verbais,é quase impossível aceitar depoimentos como o que colhemos logo na abertura do Diário: “Escrevo rapidamente,direi mesmo,vertiginosamente, acotovelado a todo instante  por passageiros...”(Obra Citada,pág.3)

 

A espontaneidade das cartas e telegramas em contraposição ao tom protocolar de Os Sertões  reside no uso da  primeira pessoa do singular,destaque dado ao Eu  do Escritor, enquanto esse uso em Os Sertões cede lugar ao plural  de modéstia,ao sujeito indefinido,traço da linguagem referencial,que muitas vezes surge no grande livro como a querer fazer do leitor um espectador envolvido na platéia que assiste ao espetáculo de Canudos, testemunha como o Autor dos acontecimentos que ali se desenrolaram  :

“De sorte que quem o contorna...”(Euclides,Os Sertões,edição didática por Alfredo Bósi e Hersílio Ângelo,Cultrix, S.Paulo, 1973, pág.33); “Vimos como quem vinga uma montanha altíssima.”(Idem,Ibidem,pág.392). Nos dois exemplos,entre a farta messe que há por todo o livro,Euclides usou o recurso acima,através do relativo  quem  e, no segundo exemplo citado,até    encontramos os dois casos juntos: plural de modéstia (vimos) e indefinição ou indeterminação do sujeito(quem).

 

É lógico  que aqui não fizemos  referência a outras obras do Autor, bem como não nos valemos de  exemplos colhidos em sua correspondência íntima. Nosso propósito foi sugerir trabalho dessa natureza, pesquisa que fica a cargo dos que vem trabalhando na área específica  da análise textual  dentro das  perspectivas mais atuais.

A obra aí está sempre  aberta a todas as investigações científicas sérias dos que se interessam pela cultura entre nós,na valorização de nosso autêntico patrimônio cultural.

 

LANDO LOFRANO

 

 

 
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