O Corpus
Lingüístico da Produção
Euclidiana
Ao leitor que se inicia na
leitura de Euclides logo se destaca a estrutura lingüística
de suas obras,ora como
anteparo quase intransponível e irresistível que obriga o estudante
a constantes consultas ao
dicionário,ora como organização escultural e arquitetônica
tão primorosa que quem lê em voz
alta , ludicamente, se encanta ante
os recursos
oratórios da
prosa euclidiana a soar e
ressoar de maneira significativa aos ouvidos pasmados do leitor novato. É
nessa estrutura
lingüística que reside toda a fonte
para a
análise e
estudo da temática euclidiana.
Há sobre o Autor vastíssima
bibliografia especializada e de facílimo
acesso ao estudante maratonista ou ao interessado
na pesquisa
do ideário temático das
obras.Apesar disso, não está fora
de propósito levantar alguns aspectos acerca da
riquíssima linguagem usada
por Euclides,como sugestão para
que se façam pesquisas
atualizadas,à luz dos conhecimentos que
hoje a diversificada ciência lingüística
pode oferecer ao estudante.
Seria,por exemplo,muito
interessante equacionar as coordenadas do estilo euclidiano num cotejo profundo
entre Os Sertões,outras obras e
produções menos contraídas ou menos tensas como Canudos-Diário,cartas a
amigos e familiares,telegramas ,
crônicas e artigos publicados.Verificar as relações
que há entre essas variadas estruturas lingüísticas , seus pontos
de aproximação,suas
características próprias.Sobretudo verificar até que ponto Euclides revela a mesma tonalidade estilística no
confronto entre todas essas produções, até que ponto é válido afirmar com
convicção a unidade estilística
de Euclides e até que ponto entre elas
todas é possível encontrar um denominador comum à luz das recentes pesquisas
na área específica da Análise do Discurso,investigando-se o que há no bojo
elaborativo da mensagem euclidiana e sua manifestação articulada
ao nível da superfície.
Sabemos que Euclides foi a
Canudos na condição de repórter.Sua função,pois,seria alimentar, tanto quanto possível, as páginas de O Estado de
São Paulo com um assunto que causava mais impacto em São Paulo e no Rio de
Janeiro do que propriamente na
Bahia,onde se davam os acontecimentos,conforme as primeiras impressões do repórter
Euclides da Cunha, inseridas no
telegrama que envia da Bahia,datado de 7 de agosto:
“Chegamos bem. Fomos recebidos
pelo governador e pelo funcionalismo civil e militar.Observo que nesta
cidade há muito menos curiosidade sobre os
negócios de Canudos do que aí e no Rio de Janeiro. “
...................................................................................................................................................(Euclides,
Canudos,Diário de uma Expedição, Coleção
Documentos Brasileiros, Livraria José Olympio Editora, Rio, l939, página 127).
Sabemos também que a
sensibilidade de Euclides foi além da frieza do repórter que apenas se
preocupa em relatar o fato mas não participa,embora o verdadeiro repórter viva
ou consiga sobreviver
quando seja capaz de atingir um clima de impacto
na opinião pública. Neste particular,Euclides tinha tudo para ser um magnífico
repórter.Sua linguagem lógica,rigorosa,ainda
que arrebatada, talvez não pudesse sensibilizar senão uma elite intelectual
também capaz de estabelecer
com ele um elo interativo,uma sintonia descodificada, um contato de
entendimento. Faltava , contudo, ao grande Autor estabelecer com a massa um vínculo
conativo,se bem que o termo massa ou povo para a época pese consideravelmente
em sua conceituação ,uma vez que poucas pessoas de fato tinham acesso a
jornais e inexistiam outros meios de comunicação. E,
ainda que existissem , Euclides não se
prestaria a ser um repórter na perspectiva moderna,a serviço da projeção
do noticioso a que se
achava vinculado,com o
propósito sensacionalista de
polarizar e impactar a opinião pública.
O fato é que Euclides ,como se
sabe,deixou de lado o simples caráter de reportagem para atirar-se a empreitada
bem mais elevada. Seu propósito ,a partir de
uma postura responsável e
consciente do seu compromisso com
os verdadeiros valores nacionais , foi sensibilizar
a elite intelectual brasileira e
levá-la a refletir quanto à
dimensão do
problema político-social
que estava ocorrendo em Canudos. Daí o aparecimento
amadurecido de Os Sertões,
obra que evidentemente não anula a reportagem,mas trata do tema com requintes
de ciência e superior
sensibilidade artística, de alto
grau emotivo e profundamente vincada pelo espírito
de humanidade.
Gilberto Freire,introduzindo o
Diário aqui já citado,à página
XVII, coloca em confronto a postura lingüística de Euclides nesta obra e em Os Sertões : “As palavras saem-lhe porém,
nestas cartas, e nas crônicas, mais soltas; e com umas sem-cerimônias, uns avontades(sic),
uns abandonos que faltam às páginas
como que acabadas,completas, definitivas d’Os Sertões. Sente-se nas
crônicas um gosto diverso do
da obra madura e quase monotonamente lapidar; um gosto com a sua ponta de
verdade, o seu pico de espontaneidade, embora, de modo nenhum,
de improvisação”.
Quer nas cartas e telegramas com
menor intensidade,quer em Os Sertões
já com grande densidade, Euclides
revela-se o mesmo escritor
preocupado com a estrutura clássica da frase,
com a força e o vigor do vacabulário preciso e marcante, com o mesmo
comportamento na entoação da frase, na paragrafação, na seleção morfológica
e , sobretudo, no poder sintético das frases lapidares,encabeçando
com tópicos
frasais a
apresentação argumentativa
dos mais variados assuntos,bem como na exploração
das reticências como forma
de deixar ao leitor o compromisso de co-participante
dos fatos.
Nos telegramas(aos
quais melhor caberia o rótulo de cartas)
Euclides jamais faz concessões
à linguagem truncada
e mutilada. A frase lhe sai normal,bem próxima
do estilo epistolar mais ou menos distenso,mas
com as entonações e acentos melódicas
já característicos dos traços
marcantes de seu estilo. O Autor não conseguiu condensar ao máximo sua linguagem; não se deixou envolver pela necessidade de uma
forma mais breve de comunicação, econômica
, que reside na capacidade
de o destinário recobrar
o que ficou subentendido.
Examinados os telegramas,pode-se perfeitamente verificar que nenhum deles
chega a se parecer com a
tradicional ou convencional,econômica
e apocopada expressão telegráfica.
Há os que se constituem de poucas
palavras,mas todas muito bem arranjadas em frases claras, com todos os
ingredientes da coesão morfossintática presentes,que não
dão margem a subentendidos e
entrelinhas. O menor deles certamente é o de 25 de setembro(em caráter
urgente) , passado de Monte Santo;
“Monte Santo,setembro
25(Urgente)
Está completo o sítio de
Canudos,
Viva a República.”
(Diário,pág. 152)
Como se vê , nem aqui o Autor
eliminou ou dispensou os instrumentos
que completam
o processo relacional das palavras na frase
da linguagem normal da
comunicaçao, mas dispensável na
telegráfica . O artigo,por exemplo,ou o verbo auxiliar,ou ainda a preposição,
termos normalmente omitidos na linguagem telegráfica,
não foram poupados por
Euclides. Dentro dos padrões telegráficos
assim ocorreria
o texto: “Completo sítio Canudos.Viva República.”
O zelo do Autor pela precisão e clareza
talvez rejeitasse mutilações
e subentendidos em sua mensagem. Ainda
Gilberto Freire , na introdução ao Diário,páginas XVII e XVIII, afirma: “O que desejo salientar aqui e o que me
parece ponto inteiramente tranqüilo
na personalidade de Euclides da Cunha é a
dificuldade tremenda que, segundo um observador atento,
ele tinha em redigir. João Luso acompanhou-lhe uma vez a tortura de
estilista redigindo com um vagar de quem fizesse renda um artigo para o Jornal
do Comércio: levou aquilo mais de
trê s horas para ocupar um resumido espaço no jornal.”
É necessário que se entenda
dificuldade não como incapacidade
ou coisa parecida no sentido de encontrar a estrutura adequada
à expressão da
mensagem,mas zelo exagerado,policiamento pertinaz , coisa que sobejamente
comprovam as correções e modificações
feitas nos originais de Os Sertões.
No que se rotula de
cartas,sente-se bem o sabor do estilo próprio do gênero
diário,mas já desponta em quase todos os momentos o estilo da grande
obra ,a sua cadência frásica,ressalvada a maior espontaneidade , qualquer
coisa de descontração que as cartas deixam entrever. De um atormentado da
forma castiça e trabalhada como Euclides,que muitas vezes com certeza precisava
reprimir as rédeas de seus arrebatamentos verbais,é quase impossível aceitar
depoimentos como o que colhemos logo na abertura do Diário: “Escrevo
rapidamente,direi mesmo,vertiginosamente, acotovelado a todo instante
por passageiros...”(Obra Citada,pág.3)
A espontaneidade das cartas e
telegramas em contraposição ao tom protocolar de Os Sertões
reside no uso da primeira pessoa do singular,destaque dado ao Eu
do Escritor, enquanto esse uso em Os Sertões cede lugar ao plural
de modéstia,ao sujeito indefinido,traço da linguagem referencial,que
muitas vezes surge no grande livro como a querer fazer do leitor um espectador
envolvido na platéia que assiste ao espetáculo de Canudos, testemunha como o
Autor dos acontecimentos que ali se desenrolaram
:
“De sorte que quem o
contorna...”(Euclides,Os Sertões,edição didática por Alfredo Bósi e Hersílio
Ângelo,Cultrix, S.Paulo, 1973, pág.33); “Vimos como quem vinga uma montanha
altíssima.”(Idem,Ibidem,pág.392). Nos dois exemplos,entre a farta messe que
há por todo o livro,Euclides usou o recurso acima,através do relativo quem
e, no segundo exemplo citado,até
encontramos os dois casos juntos: plural de modéstia (vimos) e indefinição
ou indeterminação do sujeito(quem).
É lógico
que aqui não fizemos referência
a outras obras do Autor, bem como não nos valemos de
exemplos colhidos em sua correspondência íntima. Nosso propósito foi
sugerir trabalho dessa natureza, pesquisa que fica a cargo dos que vem
trabalhando na área específica da
análise textual dentro das
perspectivas mais atuais.
A obra aí está sempre
aberta a todas as investigações científicas sérias dos que se
interessam pela cultura entre nós,na valorização de nosso autêntico patrimônio
cultural.
LANDO LOFRANO
|