Parceiros
adm    
Euclides e o berço de Os Sertões
Usuarios Online: 1
11:06:49 , Friday, 29 de March de 2024 , Bom Dia!

Menu
<< Próximo || Anterior >>

A GÊNESE DA PONTE E DO LIVRO
2003-08-02 11:06:35

 

"Livro obrigatório na estante de qualquer leitor culto, Os sertões é muito mais tido do que lido. Obra para muitos tão difícil de penetrar quanto os emaranhados da caatinga que os soldados atravessavam até Canudos, palco da guerra travada nos sertões baianos, de 1896 a 1897. Mas Euclides é também o único escritor brasileiro que se tornou objeto de culto pessoal. "
Roberto Ventura, in Euclides da Cunha. (Remate de Males, revista do Departamento de Teoria Literária, da UNICAMP, nº 13)
Ao saudoso professor e amigo, dedico esta aula.

A GÊNESE DA PONTE E DO LIVRO
Maria Olívia Garcia Ribeiro de Arruda
livgarcia@uol.com.br

Euclides da Cunha voltou de Canudos extremamente impressionado com o genocídio que presenciara e que era festejado pelo país inteiro, em nome de uma República que em nada se assemelhava àquela por que tanto lutara. Era ainda um jovem de trinta e um anos.
Como necessitasse de descanso, após a exaustiva expedição como repórter de guerra, pediu a prorrogação de sua licença na Superintendência de Obras, até a data de 4 de janeiro, seguindo, então, para a fazenda Trindade, em Descalvado, onde a família havia ficado. Já tinha em mente escrever um livro que pudesse denunciar tudo o que vira naqueles sertões de um Brasil esquecido pelos governantes e pela elite, todos voltados para a Europa e para os interesses próprios.
Com a ajuda de Teodoro Sampaio, realizou as primeiras pesquisas e algumas páginas do livro. Reuniam-se aos domingos, indo Euclides ao encontro de Sampaio, levando-lhe os "primeiros capítulos, os referentes à natureza física de Os Sertões, geologia, aspecto, relevo, e mos lia naquela sua caligrafia minúscula que era como a minha também", afirmava Teodoro, contando também que "a frase lhe saía perfeita, moldando-lhe com exatidão e nitidez as idéias". A única crítica que o amigo fazia a Euclides era o gosto pelo emprego de termos já em desuso, merecendo de Teodoro o comentário: "eu, a gracejar, chamava(-os) calhaus no meio de uma corrente harmoniosa que de resto era a sua boa linguagem."
Mas Euclides contestava essa crítica, como o fez também em reação aos comentários de Nabuco e de José Veríssimo, explicando que "por velho e esquecido, não perdeu a força de expressão que eu procuro no vocábulo". A intenção do grande escritor era de ser o mais fiel possível à realidade: "Que me importa a mim que o leitor estaque na leitura corrente se a impressão que lhe dou com esse termo esquecido é a mais verdadeira, a mais nítida e, em verdade, a única que eu lhe queria dar?" Euclides conseguiu, realmente, descrições cinematográficas - tanto de paisagens quanto das cenas que presenciara. Teodoro ainda acrescenta: "A nitidez de expressão era o seu cunho, o seu empenho maior".
Em janeiro de 1898, Euclides publicou, em O Estado de São Paulo, um artigo intitulado Excerto de um livro inédito. Em fevereiro do mesmo ano, no Instituto Histórico, leu uma conferência que tratava da climatologia da Bahia e de uma teoria acerca do fenômeno das secas. Ambos eram esboços do livro já em andamento, seu "livro-vingador", pois voltara de Canudos com o "coração confrangido, o ânimo a explodir contra a vilania de quem não soube vencer sem mancha", conforme conta Sampaio.
Segundo Gilberto Freyre, ajudaram-no também o geólogo Orville Derby e o psiquiatra Nina Rodrigues (este, quanto ao diagnóstico do Conselheiro e dos fanáticos de Canudos). Os sertões foram, portanto, desde o início, fruto de muitas pesquisas e troca de idéias com especialistas nos assuntos abordados, resultando, por isso, nessa obra de tamanha complexidade.
Euclides passou o ano de 1897 em viagens de fiscalização de obras, escrevendo tiras do seu livro entre uma viagem e outra, nos raros momentos de folga.
No entanto, em 1898, ocorreu um fato determinante para que o escritor pudesse ter a tão almejada "tranqüilidade": fixou-se em uma cidade do interior de São Paulo, São José do Rio Pardo, onde encontrou amigos que o motivaram e auxiliaram para que pudesse lapidar e concluir o trabalhoso livro.
Em 04/08/1892, a Lei nº 53 autorizara a verba para a construção de uma ponte há muito solicitada pelos habitantes daquela cidade e região. O engenheiro Arthur Pio Dechamps de Montmorency vencera a concorrência para a execução das obras e Euclides da Cunha fora nomeado pela Superintendência de Obras como fiscal, tendo Amaro Batista como auxiliar técnico. Os trabalhos foram iniciados em maio de 1896.
Em março de 1897, já concluídas as obras de alvenaria, chegou da Alemanha o material metálico e em abril foram iniciadas as construções dos aterros, realizadas em duas etapas: uma antes da montagem da ponte e outra depois, para não impedir o trânsito da balsa que servia provisoriamente para o transporte de cargas e pessoas de uma margem à outra.
Amaro Batista licenciou-se do serviço em maio daquele ano e, logo após, em agosto, Euclides também se afastou, indo trabalhar como repórter de O Estado de São Paulo, na cobertura da Guerra de Canudos. Foi designado, então, José Portugal Freixo para a fiscalização, embora este tenha negado o fato depois, através de uma série de artigos publicados em jornais.
Em 3 de dezembro, Montmorency pediu a vistoria da ponte para entregá-la à Secretaria de Obras e consta que foi designado para essa missão o engenheiro Francisco Freitas, que voltou de São José no dia 6 de dezembro.
Em 19 de dezembro de 1897, num domingo, a ponte foi inaugurada e, segundo a historiadora Amélia Trevisan, essa construção ruiu à uma hora do dia 23 de janeiro, durando pouco mais de um mês. Essas datas são, porém, conflitantes se compararmos alguns autores que publicaram sobre o assunto. Sylvio Rabello afirma que a ponte durou dezenove dias; Olímpio de Souza Andrade afirma: "No interior do Estado ruíra espetacularmente na noite de sua inauguração, 23 para 24, uma ponte de aço contratada pelo governo com um engenheiro francês".
Em um diário deixado por um dos amigos de Euclides, o Major João Modesto de Castro, está registrado:

" A famosa ponte desmoronada que tivera a efêmera vida de 29 dias depois de sua inauguração oficial, fora construída por um engenheiro contratado pelo governo paulista e que para aqui transferira a sua residência até a sua conclusão e aqui assistira a sua ruidosa queda. Segundo se afirma custara ela ao governo oitocentos contos de réis, e não chegara preencher um mês a sua duração, pois 29 dias depois da sua entrega ao público, tombara ruidosamente, sem uma razão justificada, sem que houvesse uma grande enchente no rio que provocasse tal desastre, sem nenhum outro motivo aceitável, a não ser o atestado de imperícia e do criminoso descuido do seu imbecil construtor que ficara cognominado pelo povo: O Engenheiro dos 29 dias."

E o Major acrescenta ainda:

"Fragorosamente a célebre ponte desaba na noite de Sábado para Domingo, pela alta madrugada, precisamente na hora em que o movimento havia cessado, alarmando pavorosamente toda a cidade, propalando-se dolorosamente a triste notícia por todos os ângulos de município com incrível rapidez. Por felicidade não havia ninguém na fatídica ponte no momento fatal. Se tal fato houvesse sucedido em outra hora de grande movimento da cidade e do bairro próximo, teríamos de registrar uma verdadeira hecatombe. De sua residência, bem afastada do rio, o Engenheiro dos 29 dias ouvira, alta noite, o ruído formidável da sua ponte, atribuindo a atos de malvadez de mãos inimigas par disfarçar os apuros, apertos e vexames porque estava passando diante de numerosas pessoas que em frente de sua casa pediam informação."

Em 10 de fevereiro de 1898, Euclides enviou um ofício à Superintendência de Obras Públicas, para justificar a sua inocência em relação à fiscalização da ponte. Alguns trechos do documento(transcritos com a ortografia atual) são extremamente reveladores da situação difícil por que passava o engenheiro:

"A fim de definir a minha posição ante o acidente manifestado na ponte de S. José do Rio-Pardo, peço-vos permissão para apresentar os seguintes esclarecimentos, que absolutamente não têm outro objetivo além de uma exposição leal e inteiramente verídica, de fatos:
Nos últimos dias de agosto de 1896, (...) segui pela primeira vez para S.José do Rio Pardo, a fim de examinar as covas abertas para os encontros, cuja construção já começara, visto com um outro colega, o engenheiro Heitor Gergatisch, autor do projeto, já havia determinado todos os trabalhos preliminares. Voltei logo depois para esta Repartição, até que no dia 25 de Setembro do mesmo ano, voltei, pela segunda e ultima vez, à mesma localidade, a fim de proceder à locação dos pilares, rever a locação anteriormente feita em que se dera ligeiro engano, proceder ao nivelamento para a construção do futuro aterro de acesso e examinar os materiais empregados nos trabalhos. Realizei todos estes trabalhos em companhia do auxiliar técnico Amaro Baptista que, por ordem da Sub-Directoria, devia permanecer naquela localidade, acompanhando diariamente o curso da construção. (...) Não voltei mais, durante todo o curso da construção, a S.José do Rio Pardo, pelas razões que adiante apresentarei."

Euclides explica ter observado, em sua primeira visita, em agosto, que a água filtrada pelo rio cobria grande parte da rocha que percebera exposta no encontro esquerdo, achando necessária a aplicação de uma camada de concreto hidráulico, que não era prevista no orçamento. Quando deixou a cidade, em 28 de setembro, aqui ficou, em permanente fiscalização, o auxiliar técnico Amaro Batista, que em 5 de outubro levou a Euclides todos os dados para a avaliação dos trabalhos de escavações e alvenaria dos encontros. Os engenheiros Euclides e Huascar Pereira fizeram, então os cálculos da cubagem.
Embora os dados tivessem sido tirados por outro engenheiro, Euclides passou ao empreiteiro, no mesmo dia, o atestado para o recebimento da primeira prestação, explicando nesse relatório que (Euclides)

"era realmente, segundo determinara verbalmente o Sr. Subdiretor desta Repartição, o fiscal das obras que ali se realizavam. Estava perfeitamente ciente de tal missão e devo declarar-vos que, naquele caso, à noção do dever aliava-se o interesse próprio - no início de minha carreira, eu só tinha a lucrar assistindo, do começo ao fim, em todas as suas principais fases, a construção tão importante." Infelizmente não me foi possível realizar tal intenção e todos os trabalhos, a partir de 28 de setembro de 96, ali se realizaram fora da minha inspeção.
Assim é que precisamente na ocasião em que se iniciava a construção do pilar direito, causa principal senão única da queda da ponte, no dia 18 de outubro de 96, (...) tive que seguir em companhia dos engenheiros Luiz de Vasconcellos e Thomaz Frezza, para o Rio Grande, a fim de realizar cuidadosa exploração deste rio n´um largo trecho que vai da Barra dos Capanemas à Ponte Alta, passando por Jaguará. Deste modo, justamente ao ser abordada a fase mais séria da construção daquela ponte, eu era encarregado de dificílima missão noutras paragens - e, ainda quando o auxiliar técnico Amaro Batista exigiu a minha presença em S. José do Rio Pardo, havia impossibilidade material de ser satisfeito o pedido, impondo-se em tal caso, naturalmente, a ida de algum outro colega de igual ou maior competência do que a minha. Insisto sobre este fato pelo seguinte: porque todo este trabalho de exploração em região remota, desenhos de plantas, organização do relatório detalhado, foi feito no prazo certo de um mês e eu subordino-o, sem temor, aos profissionais mais exigentes." (grifos nossos).

O engenheiro explica ainda, nesse documento, que fora impossível vir a esta cidade supervisionar a ponte, como deveria ter feito, principalmente porque o Secretário da Agricultura desejava uma solução rápida e decisiva a respeito da outra incumbência que lhe deram, sendo que mal havia concluído a tarefa, o Subdiretor da Repartição de Obras encarregou-o da correção urgente de um projeto realizado pelo engenheiro Huascar Pereira, referente à construção de uma ponte de madeira em São Luís de Paraitinga.
Além disso, em 25 de novembro, recebera o Subdiretor um ofício encarregando-o da organização do relatório de todos os trabalhos realizados na Superintendência, durante o ano de 1896. O Subdiretor encarregara-o ainda de detalhar os serviços de Antônio da Silveira Netto, Silveira da Motta, Batista Borba e João do Espírito Santo, outros empregados da repartição.
Nem dera conta de todos essas incumbências e já recebia ordens para dirigir o serviço de escritório, de pontes e estradas. A impressão que se tem é de que Euclides era o funcionário mais competente e pontual na Superintendência de Obras, portanto a ele eram delegadas muitas funções, além da correção de trabalhos de outros funcionários. O escritor não aparenta haver questionado oficialmente tamanha sobrecarga de serviço.
Diz ainda no relatório:

"A verdade, porém, é que o Sr. Subdiretor não me desligara, quer verbalmente quer por meio de um ofício, da fiscalização daquela ponte, resumindo-se por conseguinte esta na consideração dos relatórios, atestados e mais papéis enviados pelo meu colega Amaro Batista." (grifo nosso)
"Uma única vez intervim de longe, naquela construção, depois do dia 28 de setembro de 1896 - foi a 24 de Mrço de 1897: tendo o auxiliar Amaro Batista passado atestados para o recebimento, por parte do empreiteiro, da 2ª prestação do material metálico, o Sr. Subdiretor, atendendo à importância da quantia, entendeu que tais atestados deviam ser subscritos por mim. Aquiesci prontamente impulsionado por duas razões capitais:
1ª O atestado da 1ª prestação já havia sido passado pelo próprio Subdiretor, em vista do conhecimento apresentado, segundo o contrato; 2º O auxiliar Amaro Batista comunicara oficialmente a existência do material no lugar dos trabalhos e nada faria duvidar da sua honorabilidade, que é inegável. O Sr. Subdiretor reconhecerá que naquela ocasião me era inteiramente impossível seguir para o lugar da construção da ponte, sobretudo considerando que já tinham sido realizados os trabalhos principais de alvenaria - o que é fácil demonstrar à simples inspiração do relatório do auxiliar Amaro Batista. Estive nesta seção acumulando o encargo de organizar uma planta geral de todas as estradas de rodagem do Estado até o dia 1º de agosto de 1897, data em que obtive licença para tratar de interesses, voltando a ocupar o meu lugar no dia 5 de janeiro de 1898." (grifo nosso)

Euclides parece ter sido, na realidade, vítima dos abusos de outros funcionários daquela repartição e o "bode expiatório" do Subdiretor, que sobrecarregava-o com serviços simultâneos, impossibilitando-o de estar presente em todas as fiscalizações que assinava como responsável.
Mesmo assim, de certa maneira, o escritor ressentiu-se com a tragédia, oferecendo-se, então, para reconstruir a ponte que havia ruído, causando imenso transtorno à população. O jornal O Rio Pardo registra, em 18 de fevereiro de 1898:
"(...) Essa comissão (engenheiros: Gama Cochrane, Euclides da Cunha e Carlos Wolkermann), depois de proceder exame detalhado, regressou a esta capital, depois de ter tomado as medidas mais urgentemente reclamadas, dando começa a desmontagem da ponte provisória, ficando encarregado do respectivo serviço e com residência em São José, o engenheiro Euclides da Cunha".

A chegada de Euclides é também registrada por Modesto de Castro:

"Não poderia ser mais feliz a escolha do governo. Foi uma escolha providencial como há de ficar demonstrada nestas imperfeitas notas. O grande engenheiro Euclides aqui chegando foi logo ao Rio Pardo contemplar o desastre da ponte. O valor do enviado, como caprichoso, estudioso, zeloso e perfeito conhecedor técnico do assunto que para aqui o trouxera, justificaria cabalmente, por si só, o ato acertado do governo que o distinguiu dentre muitos profissionais técnicos de grande nomeada do bafejo oficial."

Acrescenta ainda:

"Cônscio da necessidade imprescindível da população rio-pardense altamente prejudicada com a falta daquela ponte, não perdeu tempo, procurou os melhores meios que abreviassem a sua construção em moldes tecnicamente estudados, sem crescimento de despesas, rigorosamente econômicos para o governo. Deu início aos trabalhos que se processaram ininterruptamente quer chovesse, quer fizesse sol abrasador. O seu mais arrojado trabalho foi o da retirada da ponte desabada em pleno rio, coberta por forte correnteza, ponte enorme, pesadíssima, de ferro, toda retorcida e atravessada em toda a largura do rio.
Sempre com a mesma energia, perícia e boa vontade venceu satisfatoriamente todas as dificuldades, colocando as turmas de operários em seus lugares próprios e seguros de perigos. Tal foi a sua previdência cautelosa que não houve nenhum desastre pessoal a lamentar, nenhum operário sofreu a menor lesão durante todo o trabalho, que fora todo executado com verdadeiro conhecimento técnico não criando preocupações nem despesas de outra parte. No desmonte da ponte trabalhavam os melhores operários de diversos ramos, mas fosse de qual fosse, havia de executar fielmente as suas ordens.

Retiradas integralmente todas as peças do fundo do rio, verificou-se que muitas delas estavam inutilizadas, umas partidas, outras torcidas, as quais eram logo medidas e fotografadas para acompanhar o urgente pedido de novas peças que as substituíssem. Peças de todos os tamanhos e feitios, algumas delas com o peso de 300 quilos."

Modesto de Castro registra como era o ritmo de trabalho de Euclides:

"Não esperdiçava tempo, tal era o seu extremado empenho. Enquanto esperava a remessa das peças perdidas para São Paulo, uma turma de operários se ocupava em ligar as peças aproveitáveis, umas as outras, para remontar a ponte integral em um terreno baldio próximo. Enquanto isso, outra turma recebia suas instruções para atacar o leito do rio com novos estaqueamentos, desviando as volumosas águas com tapumes de tábuas largas, compridas, para ser construído o primeiro pilar do primeiro vão da ponte nova. Acompanhava as turmas, de perto, cauteloso, resolvendo os mais perigosos problemas com a sua sólida e segura competência profissional, agindo sempre com energia e prudência naqueles dificultosos meios sem ver o perigo que sempre surgia, penetrando a profundidade de alguns metros para fazer no fundo do rio as suas observações seguras para descobrir uma sólida rocha de pedra que pelos seus cálculos e estudos deveria existir naquelas proximidades. Ora servindo-se de canoas, ora a pé, sem chapéu, pelos barrancos, todo molhado, com os sapatos enlameados, fazia sondagens, observações e cálculos, mantendo sempre a firme convicção de encontrar o que procurava."
O competente engenheiro procurava um rochedo que calculara existir no fundo do rio, para construir a ponte sobre bases sólidas. E encontrou-o, fato registrado no jornal O Rio Pardo, em 13 de agosto de 1899 :
"(...) Continua a construção dos pilares dentro do rio (...). Dr. Euclides conseguiu superar as dificuldades. Outro que não fosse o ilustrado e operoso funcionário que, na frase elegante e concisa do Dr. Ramos de Azevedo, constitui a "resistência da Repartição de Obras Públicas do Estado", teria desanimado, ou, então, ergueria o pilar sobre uma base falsa, como aconteceu com a primeira ponte e, em vez de possuirmos uma obra sólida e elegante que prestasse reais serviços à população desta cidade e do município, iríamos ter um segundo mundéo. (...)" Ele diz que a rocha viva foi encontrada a 4 m abaixo do leito do rio, graças à luta e a "perspicácia do engenheiro habilíssimo."
Modesto de Castro também relata o acontecimento:

"Certeiras foram as previsões do grande engenheiro sobre a existência do rochedo no lugar previsto. Constituiu motivo de grande contentamento para o esforçado construtor da ponte o encontro da sólida laje de pedra justamente no local em que desejara, pois assim estava resolvido definitivamente o problema da construção da nova ponte metálica no lugar por ele cobiçado, único lugar que mais favorecia a sua solidez e estética, pois ele não se servira do local em que fora levantada a primeira ponte, nem materiais, cujos pilares, quase destruídos, lá estão pedindo o confronto com os que até hoje estão em sólido vigor. Não servira do mesmo lugar da primitiva ponte por notar seu sensível defeito de estar completamente desviado da vista da cidade e do alinhamento das ruas. Traçou o seu projeto de construção da nova ponte, que obedeceu a um plano cuidadosamente estudado e por ele organizado, de modo a colocá-la sobre melhor ponto de vista, mais alta, mais favorável ao trânsito, mais em alinhamento das ruas da cidade, formando uma bela avenida e descortinando uma linda vista panorâmica."

Assim que as águas foram desviadas do local, o engenheiro festejou o sucesso do trabalho, convidando seus amigos tomar um copo de cerveja - a quatro metros de profundidade. Assim descreve o Major:

"Satisfeitíssimo, fizera preparar sem demora o local descoberto e colocada uma escada bem segura, convidara diversos amigos a quem alegremente oferecera um copo de cerveja sobre as frias lajes do leito do rio, a quatro metros de profundidade.
Reinava alegria entre os convidados, dos quais apenas tenho lembrança: Doutor Antônio Dias Ferraz Júnior, Doutor Jovino de Sylos, Francisco Escobar, José Honório de Sylos, Adalgiso Pereira, João Moreira, João Novo, Ernesto Mariz e João Modesto de Castro."
Pelo depoimento de Castro, podemos concluir que uma das características de Euclides que mais impressionaram o povo rio-pardense foi a dedicação ao trabalho, em uma época em que o funcionário público não tinha a estabilidade garantida no cargo e em que as escadas das repartições ficavam constantemente lotadas de engenheiros buscando um emprego, conforme disse o próprio escritor em uma de suas cartas. Fosse outro, teria prolongado o tempo de serviço, para garantir a função por mais tempo. O Major relata:

"Tomara a sério a construção da ponte e heroicamente trabalhara nesse sentido, sem temer as grandes responsabilidades, sem temer o fracasso, sem medo de não agradar aos interessados que tanto ridicularizaram o seu inditoso colega, procurando sempre honrar a confiança nele depositada. Acompanhado de nova turma de trabalhadores disciplinados, sondava os terrenos marginais para fazer todas as instalações precisas, como: ferraria, carpintaria, almoxarifado, depósito, etc. A natureza do terreno não permitia espaço para muita coisa e muita coisa havia de fazer e resolver em pequena faixa de terreno defeituoso. Mas ele achava saída para tudo. Não conhecia dificuldades."

A tarefa era árdua:

"Para chegar ao resultado desejado teve de enfrentar enormes trabalhos, como limpeza de pasto onde proliferavam os carrapatos, poças do córrego em que se criavam moscas, mosquitos e pernilongos perigosos, sapos, etc. Ali estava o grande engenheiro num vai e vem contínuo, absorvido na faina de consertar tudo com rapidez, fazendo uso de seus instrumentos metrológicos, batendo estacas nos pontos necessários, medindo com seus instrumentos de medir, tomando nota de tudo, quase sempre sem chapéu, sob um sol ardente, pisando um solo em brasas.
O local preparava-se ativamente e dia a dia mais se embelezava, sob a sua sábia e profícua direção, transformando-se como por efeito de poderosa magia. Conseguiu fazer todas as instalações precisas naquele acanhado círculo a beira do rio."

Modesto também desfaz todo o romantismo existente hoje a respeito do local, após anos e anos de louvações e discursos que o chamaram de "Meca", "Kaaba Euclidiana", etc. O ambiente não era dos mais agradáveis para se trabalhar, muito menos para escrever um livro como Os sertões:

"Reinava naquelas paragens em movimento espantoso e um barulho infernal com infinita variedade de estorvos e contrariedades. Entravam diariamente muitos veículos produtores de barulho, conduzindo diversos materiais para os serviços da ponte. A cada momento chegavam carros de bois cantarolando, com enormes peças de madeira para os andaimes, carroções com caibros, carroças com tábuas, outras com pedras enormes, com tijolos, areia, pedregulho. Outras traziam gêneros retirados da estação ali próxima, como: barricas de cimento, sacas de cal, rolos de arame, quartolas de piche, sacos de carvão, latas de óleo, caixote com gêneros, tudo destinado ao almoxarifado da ponte." (...) "Perto do seu ranchinho de zinco ficara instalada uma barulhenta ferraria onde ardia o fogo rubro de uma forja, com um grande foles a soprar fagulhas e limalhas de ferro, com chaminé baixa, fumegando sempre uma fumaça de mau cheiro, preta, carvoenta. Logo em seguida estava a não menos barulhenta oficina de carpintaria, com aparelhamento e serragem de madeiras. Além, os compositores de argamassa, do reboco de cal, cimento, pedregulho para o concreto armado, para as grandes lajes dos pilares da ponte, tudo movimentado com enxadas, pás, peneiras, carriolas. Perto, estavam os pedreiros britadores, manejando grossos e pesados malhos para quebrar pedras e cascalhos."

A situação, portanto, era bem diversa da tranqüilidade que se imaginava ter o engenheiro desfrutado às margens do Rio Pardo. Poderia ele demonstrar, isto sim, saudade da paz espiritual que tivera aqui, bem como do fato de haver deixado, por três anos, aquela vida nômade que a profissão lhe impunha. Outra hipótese, também, é que não tenha mais encontrado, em outras empreitadas, trabalhadores competentes como os imigrantes que aqui o serviram na reconstrução da ponte. Escreveu o Major:

"A sua passagem ininterrupta e caprichosa pelos trabalhos da ponte foi a mais tormentosa que se pode imaginar. Teve sempre uma vida agitadíssima, não logrando o sossego necessário ao retemperamento das energias perdidas na sua lufa-lufa diária."(...) "Com o lamentável e imprevisto desmoronamento das obras da primeira ponte se tornou necessário, como único recurso, a instalação e funcionamento da balsa e canoas que davam passagem no rio, cujo movimento era extraordinário dia e noite, tudo ali muito perto do seu casebre e da ponte em construção. Passavam constantemente bois para o matadouro, porcos, cavaleiros, pedestres, centenas de sacas de café e de cereais, madeiras, móveis, tudo sob irritante rumor.
Toda essa variedade passava e repassava naquele improvisado ponto, ininterruptamente. Além disso, ali perto estava a estação da Cia Mogiana com seus armazéns repletos, com o seu constante movimento de locomotivas em manobras, de onde partiam silvos prolongados e irritantes e espessa fumarada. Constantemente ventava, tornando-se insuportável o meio ambiente em que pairava o digno engenheiro e exímio escritor.
Muitas vezes, uma forte nuvem de pó, de mistura com areia, cal, cimento, carvão das forjas, fumaça das oficinas e das locomotivas da linha Mogiana , cujos trilhos ali estavam perto, escurecia por completo aquela paragem de modo a não poder ser vista uma pessoa ou um objeto, ainda mesmo de perto. Outras vezes, uma violenta rajada de vento invadia de súbito o escuro escritório do ranchinho do saudoso autor dos Sertões, de uma só porta, tombando tinteiro, quebrando objetos, arrebatando para os ares papéis de importância e as tiras manuscritas para o seu grande livro, as quais rolavam pelo chão, enlameadas pela chuva, outras desapareciam na correnteza do rio, ali a dois passos de distância."

Ainda não era só isso, garante Modesto de Castro:

"E como se tudo isso não bastasse para perturbar e desviar a sua preciosa atenção preocupadas com as obras da ponte e com o seu livro começado há tempos, contava ainda com outra fonte de aborrecimento e contrariedades, assim explicados: exalava ainda naquelas bandas o nauseabundo cheiro de um matadouro municipal que ali perto funcionara e que fora dali transferido para outro lugar, a seu pedido, deixando uma grande quantidade de caveiras, pedaços de couro e a ossama do gado abatido diariamente, cevando uma enorme horda de urubus famintos, ali disputando os resíduos e as poças do sangue que corriam encanados para o Rio Pardo ali perto. A urubusama faminta, ali estava alvoroçada aos bandos pelo chão, em brigas, correndo aos pulos, outros empoleirados pelas casinholas, outros sulcando o espaço em todas as direções contradançando no ar a pouca altura, em vôos planados, já mansos, não tinham medo; outros havia, ariscos, outros audaciosos que chegavam à ponta do ranchinho do inspirado autor de "Os Sertões" que os corria a pedradas, sentindo-se furioso com aquelas importunas visitas perturbadoras do seu trabalho, irrequietos, insaciáveis, recendendo um budum insuportável."

Confirmando as afirmações desse diário que nos serve de referência, o jornal O Rio Pardo publicou, em 13 de agosto de 1899:
"(...) Continua a construção dos pilares dentro do rio (...). Dr. Euclides conseguiu superar as dificuldades. Outro que não fosse o ilustrado e operoso funcionário que, na frase elegante e concisa do Dr. Ramos de Azevedo, constitui a "resistência da Repartição de Obras Públicas do Estado", teria desanimado, ou, então, ergueria o pilar sobre uma base falsa, como aconteceu com a primeira ponte e, em vez de possuirmos uma obra sólida e elegante que prestasse reais serviços à população desta cidade e do município, iríamos ter um segundo mundéo. (...)" Ele diz que a rocha viva foi encontrada a 4 m abaixo do leito do rio, graças à luta e a "perspicácia do engenheiro habilíssimo."
Ou seja, Euclides era mesmo um romântico idealista, como ele mesmo se classificava muitas vezes, em suas correspondências. Foi honesto cumpridor dos deveres, muito impressionando a todos pela retidão de caráter, qualidade sempre rara neste país, em todas as épocas.
Chega, então, a hora de testar a solidez da ponte, que colhe todos de surpresa, até mesmo os amigos mais chegados, de quem guardara segredo absoluto. Modesto de Castro assim narra:

"Um belo dia , era Sábado, foi a população rio-pardense surpreendida com um convite do engenheiro Euclides da Cunha para assistir no dia seguinte, Domingo, às tantas horas, uma experiência que seria feita na ponte em construção. Ninguém podia atinar o que seria tal experiência naquela famosa ponte, com quanta ansiedade esperada pelo povo. O convite despertou a curiosidade pública, com um sopro de apreciações favoráveis e desfavoráveis. Os mais famosos otimistas, conhecedores das engrenagens daquela grande obra eram de opinião que a ponte ainda gastaria um ano de muito trabalho para ficar pronta, nem que se inventasse uma fórmula nova de fazer ponte, salvo um "milagre". Opinião esta acatada por grande maioria, com pesar para aqueles que viviam sonhando com aquela ponte. No dia seguinte, Domingo, dia lindo, a cidade amanheceu cheia de animação, fervilhando uma alegria incontida. Como por efeito de um "milagre", da noite para o dia foi retirada toda armação que servira de cobertura à grande obra em construção, desde o seu início, e a famosa "Ponte Metálica" apresentou-se no esplendor da sua realidade, garbosa no seu duplo aspecto da estética e solidez, faceira, pintada de fresco a zarcão, suportada em grossos, elegantes e fortíssimos pilares altos, dominando a cidade, descortinando uma vista panorâmica encantadora!
O povo, admirado, contemplava alegre aquela maravilhosa visão, vendo de surpresa aquela ponte desejada, completamente acabada antes do tempo previsto, gravando em todos os espíritos bem intencionados uma impressão agradável e confortadora.
Equivalia o "convite", dizer ao povo que a ponte estava pronta, a qual fora feita com o maior segredo, toda coberta, nem mesmo os melhores amigos do digno engenheiro puderam vê-la antes de acabada. Era um enxamear de gente! A concorrência fora enorme, a surpresa agradável, atraindo a admiração geral dos visitantes a beleza majestosa daquele recanto, todo transformado vantajosamente, como por efeito de uma mágica! O apurado gosto do engenheiro colocara a ponte sobre a melhor ponto que a boa estética lhe inspirava. A experiência foi maravilhosa, contentou a todos. Isto lhe valeu a simpatia, a admiração e gratidão de toda a população desta terra de trabalho, de progresso e de prosperidade, notadamente daqueles que assistiram impotentes e angustiados o tremendo desastre da ponte desabada. A "Experiência" consistiu em sobrecarregar de enorme peso em movimento para se certificar da sua firmeza e solidez. Sobre o lastro da ponte foram empilhadas pesadas barras de ferro, pedras, sacos de areia, pilhas de sacas de café, e pelo centro passavam e repassavam muitas carroças, carros de bois, carroções de lado a lado, conduzindo cargas com peso superlotado, alguns veículos em disparada.
Os visitantes, em numerosa quantidade, transitavam de ambos os lados, alegres, satisfeitos, contemplando o belo gradil vermelho, cheirando a pintura nova, administrando a beleza da paisagem verdejante, pontuada de morros pitorescos. Com a perícia apurada de engenheiro ali estava o autor da ponte sorridente, alegre, satisfeito do seu belo triunfo, dirigindo tudo com sabedoria.
De nenhum outro engenheiro, pode-se crer, poderia partir mentalidade mais lúcida e mais afeita aos rudes serviços da ponte, nem mais empenhado em servir desinteressadamente a população rio-pardense.
Melhor prova não pode haver. Terminada a experiência, com aplausos gerais, foi de novo fechada a ponte com cerca de arame de ambos os lados, para receber os últimos retoques de pintura, colocação de placas, instalações de fios elétricos para luz, terminação da bela avenida começada em direção a rua da cidade até os trilhos da linha Mogiana ali perto, para depois entregá-la ao Governo do Estada e a Câmara Municipal para a sua inauguração festiva em curto prazo. Todos os assistentes desejaram que tão auspiciosa e surpreendente "experiência" passasse logo ao domínio da realidade. O correto engenheiro demonstrou assim o "quantum" de esforços, de capacidade, de coragem e de boa vontade fora mister para em tão curto tempo entregar a ponte ao público."

As informações contidas nesse documento original deixado pelo Major são conflitantes com outras informações a respeito da inauguração oficial da ponte. O documento registra:

"Quando Euclides terminou a experiência da Ponte, cuja assistência foi formidável, disse ao povo que a sua inauguração oficial seria feita festivamente, com pompa, dentro de curto prazo. Infelizmente não chegou o suspirado dia da inauguração pomposa, como o povo desejava, por haver surgido uma causa poderosamente lamentável. Em princípios do ano de 1902 começou a reinar em muitas localidades do Estado a epidemia devastadora de febre amarela. Euclides, o valoroso engenheiro, retirou-se com sua família definitivamente para São Paulo, sem poder dizer o seu sincero adeus, saudoso e grato, aos seus numerosos amigo, um coração bondoso como o seu..."

Quanto à data, certamente Modesto fez confusão, pois a inauguração da ponte foi em 1901, não em 1902. Mas poderia ele - que tantas vezes faz questão de afirmar a veracidade de seu testemunho, sem nenhuma pretensão além de registrar o que realmente foi a passagem de Euclides por aqui - esquecer-se da despedida de Euclides e da cerimônia da inauguração da ponte? É um ponto que fica obscuro com esse depoimento.
O professor Rodolpho José Del Guerra afirma, em seu livro Conhecendo Euclides da Cunha - ano 100 (1898 - 1998) que a Câmara havia destinado um conto de réis para o evento de inauguração da ponte, soma que teria escandalizado Euclides, levando-o a pedir ao Legislativo, em 12 de maio, que aquela importância fosse aplicada "à remuneração de um guarda ou zelador" que pudesse controlar o trânsito sobre a mesma, sugestão atendida através da lei que nomeou o italiano Mateus Volota para o cargo, com o ordenado mensal de 70 mil réis.
Euclides desejava que o guarda tivesse a missão de "impedir a marcha acelerada de cavaleiros ou viaturas originando movimentos vibratórios" que pudessem "no fim de algum tempo, prejudicar a estabilidade da ponte. (...)" Não podia, é claro, supor que essa construção era tão sólida que agüentaria enchentes e trânsito muito mais pesado e contínuo, como o de caminhões e ônibus. Somente neste ano de 2003, por ocasião do aniversário da ponte, é que foi efetivamente proibido o trânsito mais pesado sobre ela, mas ainda assim o fluxo de carros continua ininterrupto.
Voltando a maio de 1901, segundo o professor Del Guerra, a festa também foi autorizada pela Câmara, e o Dr. Inácio da Gama Cochrane, diretor da Superintendência de Obras Públicas de São Paulo, foi hóspede de Euclides. Ambos assistiram ao batizado de Manoel Afonso, o filho rio-pardense de Euclides, no mesmo dia da inauguração da ponte: 18 de maio de 1901. Cochrane entregou a Euclides um cartão de prata com uma dedicatória. Às treze horas, as autoridades e o povo assistiram à inauguração da ponte toda enfeitada com bandeiras, ao som da Filarmônica Italiana e da banda do Circo Pinho.
A construção foi abençoada pelo vigário da Paróquia, Padre José Thomaz Ancassuerd. Cochrane discursou, elogiando Euclides e entregando-lhe um presente dos amigos e admiradores: um taqueômetro. Falaram também dois vereadores: Tarqüínio Cobra Olyntho, anunciando o nome daquela avenida, que seria "Euclides da Cunha" e depois Jovino de Sylos, que recebeu a ponte em nome da municipalidade. Euclides agradeceu laconicamente, abraçando o administrador Carlos Wolkermann, transferindo, com o gesto, aos trabalhadores o mérito do sucesso.
À noite, a banda e o povo prestaram uma homenagem ao Dr. Euclides, em frente à sua residência. Falou Jovino de Sylos e Euclides respondeu, "historiando o caso da ponte, do desabamento à conclusão dos trabalhos que dirigira", convidando a todos, logo após, a uma mesa de doces.
Mas é interessante notar que Modesto de Castro, em uma outra parte de suas memórias, escreve que Euclides "daqui saíra em 1902**, março ou abril, com destino a São Paulo, onde estivera tratando da publicação do seu majestoso livro, e dali partira para o Rio de Janeiro."
Mais ao final das memórias, o próprio Modesto de Castro anota:

"A ponte tem bonita aparência. Nas colunas principais das entradas de ambos os lados estão colocadas diversas placas indicativas dos nomes das principais figuras governantes do tempo da sua construção. Logo à entrada da ponte, do lado da cidade, estão à direita e à esquerda, estas placas comemorativas:
Lado esquerdo:
Vice-presidente do Estado:
Dr. F. Peixoto Gomide
1898
Engenheiro:
Euclides da Cunha
Secretários da Agricultura:
Dr. Alfredo Guedes
Dr. Antônio Cândido Rodrigues
1889-1901

Lado direito:


Presidente do Estado de São Paulo:
Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves
Cel. Fernando Prestes
Diretores da Superintendência de Obras Públicas:
Dr. T. J.J. da Gama Cochrane
Secretários da Agricultura:
Dr. Firmiano Pinto
Dr. A.F. de Paula Souza
1898

Bem no centro da Ponte:


Ao Engenheiro Euclides da Cunha
Oferece a Câmara Municipal
Maio de 1901"

Afirma Olímpio de Souza Andrade que não há dúvidas quanto ao fato de Os sertões terem sido escritos nesta cidade. Aqui ele encontrou uma platéia de amigos e admiradores que o ouviam atentamente, aplaudindo-o e conferindo-lhe a segurança e o ânimo necessários para continuar escrevendo a sua obra maior. Além disso, o auxílio prestado por Escobar, homem de grande cultura e biblioteca farta, tornou-se fundamental à conclusão do livro.
Olímpio afirma que a primeira aparição social de Euclides foi em uma festa na casa do fazendeiro Quincas Venerando, onde se casava um parente de João Modesto de Castro. No diário deixado por Modesto, a informação difere-se um pouco:

"A primeira festa familiar que Euclides assistiu nesta cidade foi em minha residência, no dia 22 de abril de 1899. Colocava-se o casamento de meu irmão Aníbal de Castro, naquele dia. Convidado, comparecera ao ato com sua excelentíssima esposa, sendo-me apresentado pelo doutor Antônio Dias Ferraz Júnior, juiz de direito local, e pelo Tenente Francisco Escobar. Ficamos conhecidos e relacionados. Logo depois, prestei-lhe pequeninos obséquios, dentre os quais a oferta de uma coleção completa do jornal "O Estado de São Paulo", que estampava em suas colunas a série de suas brilhantes "Cartas Sertanejas", escritas de Canudos."

Segundo Olímpio, o que alimentou as amizades em todos os lugares por onde passou Euclides foram as palestras. Em Rio Pardo não foi diferente, e o resultado dessas palestras foi proveitoso tanto para o escritor, que tinha uma platéia a ouvi-lo e a discutir com ele sobre o livro que escrevia, quanto para o povo rio-pardense, que passou a admirar o engenheiro e a formar grupos que impulsionaram, com novas idéias, o progresso da cidade.
No documento de Modesto de Castro, as referências sobre essas palestras são:
"A freqüência da sua casa, era, na maioria, composta de literários escritores, poetas de diversos lugares, que ali iam sentir o ameno contato da sua pujante mentalidade literária. Os assuntos ali tratados em animadíssima palestra não eram brandos. De política, nada absolutamente. Só eram lembrados os nomes dos grandes poetas e escritores, dos quais fazia apreciações brilhantes e honrosas, demonstrando a sua extraordinária capacidade de observação e compreensão e largueza de idéias.
Recordava episódios interessantes da sua estadia em Canudos. Sentia grande satisfação quando se via assim rodeado de amigos, sempre sorridente, animado, com um grosso cigarro na boca, e nisto estava o encanto da sua vida. Com satisfação, assim dizia: "Há aqui somente três pessoas com quem me expando de vontade, nas minhas palestras são elas: Francisco Escobar, José Honório de Silos e Adalgiso Pereira". Eram seus amigos do peito. Sublime no seu desprendimento, sem luxo, simplicidade pacífica de viver. Sua casa era freqüentada pelas principais famílias locais. Tenho em vista apontar quão merecedor ele era."
(...)
"Os assuntos de que tratava eram sempre elevados, principalmente sobre o Brasil, de quem era defensor caloroso e intransigente; orgulhoso de ser brasileiro; orador simpático, violenta explosão de temperamento literário, otimista visão sobre o futuro do Brasil. Suas íntimas aspirações eram a Ponte e "Os Sertões", de que fazia os seus amigos plácidas leituras, acrescentando sempre: "não concebo minha vida sem meus livros, sem meus cigarros, sem minhas palestras com bons amigos". Acendia um cigarro antes de ler."
(...)
"Os íntimos amigos de Euclides e assíduos freqüentadores do seu salão de palestras literárias eram os senhores: Dr. Antônio Dias Ferraz Júnior, Dr. Jovino de Sylos, Francisco Escobar, José Honório de Sylos, Adalgiso Pereira da Silva, João Moreira e João Novo.Os de maior intimidade e com quem mais se expandia em assuntos literários eram: Escobar, Adalgiso e José Honório."
Em outro trecho:
"Jantava ao anoitecer, em sua casa, onde à noite, quase infalivelmente, se reunia seu pequeno círculo de amigos do peito, seus prosadores, os quais lhe prestavam a maior consideração e profunda admiração pela sua animada palestra que a todos encantava pela sua simplicidade admirável e pela sua graça cativante. Depois de animada palestra com os seus intelectuais, com os quais estava sempre em contato, tirava do bolso, ou de uma pasta, alguns autógrafos escritos com rapidez no seu escritório ou na sua obscura tenda de trabalhos no ranchinho da ponte."
"Nas suas recordações dos famosos episódios de Canudos, daquela curta época da sua profícua viagem de reportagem, contava ele com profunda mágoa aos seus amigos fatos extraordinários."

Quanto ao processo de elaboração de Os sertões, também existem anotações de quem foi testemunha dos cuidados de Euclides em relação ao livro, coincidindo com as afirmações de Olímpio, que na 3ª edição de História e Interpretação de "Os sertões" publica o testemunho de Modesto de Castro. Euclides se esmerava em escrever da melhor maneira possível, para que seu livro se tornasse um clássico.
Mas Euclides, com um senso exacerbado da responsabilidade que lhe cabia pela construção da ponte, colocou-a sempre em primeiro lugar, o que comprova que sua obra foi escrita, realmente, nos intervalos de sua engenharia fatigante. Jamais negligenciou a fiscalização das oficinas e da construção e raramente ficava em sua cabana, conforme testemunha Modesto de Castro:

"Raras vezes entrava no seu escuro casebre, no seu improvisado escritório, por cujas frinchas das folhas de zinco espiava sorrateiramente os trabalhadores que mangavam ou lerdeavam no serviço da ponte, distribuindo discompenendas a todos eles, com rude franqueza. Tinha os olhos e os ouvidos perfeitamente educados naquela afanosa lida, o nobre engenheiro, de maneira que a sua prodigiosa imaginação habilitara-se com aquela variada sorte de atividade ali em ação. Uma martelada em falso, mamparreira, um cochicho zombeteiro embora baixo, não escapavam a sua vigilante atenção e fina percepção e a explosão do seu desagrado e manifestação do seu descontentamento não se faziam esperar.
O seu lugar predileto era sobre o tronco de uma mangueira que ali fora abatida, de onde eram observados todos os trabalhadores em movimento, exercendo uma fiscalização enérgica e vigilante."

O Major, pescador assíduo das margens do Rio Pardo, observava os detalhes do local de trabalho de Euclides e os hábitos do escritor:

"Naquela acanhada choupana de paredes e tecida de folhas de zinco, e tosca madeira, que não conta três metros quadrados de espaço, baixa, sem nenhuma janela, com uma única porta estreita, escura, sem ornamentos, localizada em uma baixa sombra, batida por fortes ventos e constantemente vergastada por um frio úmido e cortante, via-se em determinadas horas do dia, em constante lufa-lufa, o grande engenheiro e laureado escritor.
No obscuro interior do casebre, que mal comportava uma pessoa, viam-se uma pequena mesa equilibrada sobre um soalho de tábuas largas, grossas, sem pintura, mal pregadas, um singelo tamborete de palhinha, uns cadernos de registro, livro de ponto, mapas de estudos, um tinteiro, papéis, caneta, lápis e réguas. Em uma imprensada prateleira baixa, algumas fotografias da ponte tombada, rolos de papel para plantas e alguns instrumentos da sua profissão.
Sobre o chão, a um canto, uma pilha de jornais, "O Estado de São Paulo" amarelados pelo tempo, rodeados de pontas de cigarro e de caixas fósforos vazias. Alguns daqueles jornais, para ele de suma importância, lhe foram dados por quem escreve estas linhas, os quais continham a coleção completa das suas arrebatadoras "Cartas Sertanejas", de sua arrojada reportagem, traçadas pela sua vibrante pena de jornalista, por ocasião da famosa Guerra de Canudos, naquele novo teatro de variados costumes selvagens, na sede de saber conhecer tudo, para enriquecer o seu curioso e privilegiado espírito pesquisador meticuloso."

Há informações sobre as dificuldades por que passava aquele que transcreveu o livro para Euclides:

"Depois da amena leitura dos autógrafos para seus amigos que o ouviam admirados, depois das referências entusiásticas ou comoventes por ele feitas sobre eles, conforme exigia o assunto, eram todas entregues a seu copista, José Augusto Pereira, possuidor de bela caligrafia, caprichoso, que era generosamente pago para o serviço de copiá-los em novas tiras e em um caderno de papel em forma de livro."
(...)
"O copista via-se sempre atrapalhado para compreender palavras completamente desconhecidas, outras pela descuidada caligrafia, tornando-se necessário voltar à presença do erudito escritor, para se orientar. Ao mesmo tempo o copista se mostrava admirado de ver a facilidade com que eram escritos os incompreensíveis autógrafos em qualquer lugar em que o autor estivesse, dizendo sempre a todos: "Que homem

extraordinário é o doutor Euclides, parece que já tem o livro todo escrito na cabeça, tudo está ali armazenado, de modo que ele o sabe de cor e salteado. Se eu lhe pedir na rua um autógrafo, ele é capaz de retirar do bolso e lápis e sobre o joelho encher longas tiras de papel, sem esforço, sem pestanejar, como se escrevesse uma simples carta a um amigo". Nessas palavras que aqui ficam está o melhor elogio que se pode fazer ao saudoso morto, porque elas põem em destaque a sua invulgar capacidade literária. Maior prova que essa não pode apresentar"

Um homem como Euclides, com um ritmo de trabalho incomum para a época e uma inquietação própria do espírito criador, possuía também algumas características peculiares, que evidenciavam a mente em constante ebulição. Modesto de Castro assim o define:
" ... com a sua boa vontade verdadeiramente febril, com a sua inteligência vasta e audaz, cheias de múltiplas contrariedades e arriscados perigos, dado o seu temperamento insofrivelmente impetuoso e ardente, não se sentia fatigado, nem experimentava enfado por seus atribulados serviços."
(...)
"O zeloso engenheiro percorria sorrateiramente todas as oficinas, tomando notas e tirando fotografias que eram enviadas ao governo paulista, providenciando tudo com energia e precisão, transpirando por todos os poros, cabeça nua, aos pulos por cima de madeiras, pedras, tijolos e ferros. Tudo via, tudo fiscalizava, conferia as qualidades e quantidades dos gêneros. Tal o seu rigor, que os encarregados do reboco e de outros preparados não podiam abrir uma barrica de cimento ou uma saca de cal sem o seu consentimento."
"Era intransigente, sua teoria era: "Antes quebrar que torcer".
(...)
"Depositário da ampla confiança do governo, tudo fazia para correspondê-la, sem enxergar sacrifícios, dado o seu temperamento nervoso, positivo, rodeado de estorvos e contrariedades."
(...)

Euclides não se importava nem mesmo com a própria saúde, expondo-se a tudo, sem o menor cuidado:

"Não se resguardava do sol; sem chapéu, esbaforido, epiderme queimada do sol ardente, transpirando por todos os poros, sempre em movimento, observando tudo, sob as saraivadas fortes das marteladas dos operários da ponte, cuja obra continuava em progressivo andamento. Nas alternativas do calor para o frio estava às vezes tiritando de frio com a sua roupa de brim pardo, da sua predileção."
Também "não tolerava censura ou a crítica incrédula, mordaz e zombeteira, de onde quer que ela partisse".

O homem Euclides devia mesmo impressionar os amigos que fazia. No documento há uma descrição específica de seu modo de ser:

"Não deixava de ser interessante conhecer algumas particularidades admiráveis de Euclides da Cunha. Era de uma probidade inexcedível. Coração de ouro, alma nobre e generosa, caráter íntegro, qualidades morais admiráveis. Bom chefe de família, extremoso. Tinha, às vezes, as suas crises agudas de neurastenia, guardando e mantendo a compostura moral em seus atos. Curiosidade irrequieta, inquietantes mudanças de humor, tendo sempre em mira o respeito ao direito de todos. Independente, franco, nada pedia para si, modesto, estudioso.
Era fanático por cigarros, fumava exageradamente toda a espécie de cigarro. Constantemente levava a mão ao bolso tirando os fósforos para acender o cigarro, aceitava com prazer, fosse de quem fosse. Não apreciava o homem que não fumasse e logo dizia: "o homem que não fuma perde 20 porcento dos encantos da vida, se é que a vida tem encantos". Dizia sempre: "que coisa mesquinha não seria a vida se não tivéssemos um cigarrinho cheiroso, um livro bom, uma boa palestra.

Como estudioso que era, sabia de seus problemas de saúde, mas quanto a isso mostra o temperamento inflexível:

"Eu sou louco por cigarros, embora reconheça o grande mal que eles me fazem. Em caso algum obedeceria a médico que me proibisse de fumar, de saborear um cigarrinho."
(...)
"Completamente alheio aos interesses pessoais, não ambicionava riqueza, fortuna, grandezas. Tinha horror a política, ao mandonismo. Não ligava importância ao dinheiro. Tinha repugnância das cédulas sujas, rotas e velhas. Não trazia carteira de dinheiro. Moedas de prata ou níquel não entravam em seu bolso. Não guardava dinheiro. Seus vencimentos eram de 800$000 mensais, e ele os entregava todos a sua senhora, que se incumbia de todas as compras e pagamentos das despesas da casa, inclusive as suas avultadas contas de cigarros e fósforos."

Apesar disso, a aparência física do grande homem não lhe servia de motivo de orgulho, conforme deduzimos por suas correspondências. Era um homem
"... dotado de uma presença física franzina, (...) estatura baixa, moreno, olhos v

 
Maria Olívia Garcia Ribeiro de Arruda
 
Apoio
Protéton