Parceiros
adm    
Euclides e o berço de Os Sertões
Usuarios Online: 3
12:34:55 , Thursday, 02 de May de 2024 , Bom Dia!

Menu
<< Próximo || Anterior >>

A VIDA EM SUSPENSÃO
2003-08-11 18:54:45

 

"Euclides da Cunha - Esboço Biográfico" reúne as anotações e pesquisas sobre o autor de "Os Sertões" feitas ao longo de dez anos pelo crítico e professor da USP Roberto Ventura, morto no ano passado

A VIDA EM SUSPENSÃO

Leopoldo Bernucci
especial para a Folha

Como "Um Paraíso Perdido", obra inacabada, com a qual Euclides da Cunha nos teria dado outro grande exemplo de seu magnífico modo de narrar e analisar, a biografia sobre o autor de "Os Sertões", que Roberto Ventura vinha escrevendo, foi também infelizmente interrompida pela sua trágica morte no ano passado. Igualmente trágico foi para o meio acadêmico o vácuo deixado pelo jovem biógrafo e um dos mais dedicados pesquisadores dos assuntos euclidianos. Lendo as páginas de "Euclides da Cunha - Esboço Biográfico", a partir de levantamento realizado por Marcia Zoladz e Mario Cesar Carvalho nos arquivos dos computadores de Ventura, percebe-se que, embora a narrativa biográfica ainda estivesse tomando corpo, a pesquisa histórica, fundamental para qualquer texto do gênero, já estava praticamente terminada. Para quem acompanhou de perto as investigações biográficas de Ventura, como alguns de nós tivemos o prazer de fazer, intercambiando com ele opiniões, notas e informações diversas ao longo de uma década, percebe-se que nem todos os temas que ele discutia com seus interlocutores se encontram nas páginas sobre a vida de Euclides. Depois de estudá-la profundamente, a preocupação constante que tinha Ventura com a relação ambivalente de Euclides com a causa republicana deve ter ficado aquém da expectativa do biógrafo nos momentos de redação de seu texto. Se bem que, quanto à pesquisa, o assunto tivesse sido esmiuçado por ele, por meio do estudo dos vários episódios históricos que direta ou indiretamente afetaram Euclides, "Euclides da Cunha - Esboço Biográfico" se limitou a aludir ao forte republicanismo euclidiano que se desprende de sua poesia precoce, principalmente aquele encontrado nos muitos poemas do caderno "Ondas". Certamente, essa visão incompleta é fácil de explicar. Deve-se ao fato de que a biografia que Ventura preparava fosse ainda um "work in progress". Lamentavelmente, para o biógrafo não houve suficiente tempo de preencher todas as lacunas de tão complexa narrativa para dar conta dos momentos mais relevantes da vida de Euclides. Todos nós sabemos que Ventura era uma fonte inesgotável de informações, que não só eram compartilhadas generosamente com os colegas, mas que também estavam impecavelmente organizadas de modo a facilitar a longa e difícil investigação biográfica que ele vinha fazendo. Ironicamente, para alguém que entendia tão bem as agruras do tempo, o seu problema foi justamente o de ter que lidar com o roer das horas. Tão árduas e previsíveis foram as horas de estudo para ele e tão insólita a maneira como Ventura deu adeus à vida. Se não tivemos a sorte de ver publicado um texto de acabamento completo sobre a vida de Euclides da Cunha, segundo as exigências do gênero biográfico e as do biógrafo, naquelas 600 páginas por ele projetadas, foi-nos dada ao menos a oportuna ocasião de constatar um truísmo válido para esse tipo de obra: pouco é o número de páginas, mas extremamente correto o seu conteúdo. "Euclides da Cunha - Esboço Biográfico" apresenta-se entre os tantos esboços biográficos sobre Euclides da Cunha já publicados, mas com a garantia diferenciada de que a sua pesquisa agora se fez, na maioria das vezes, utilizando fontes primárias.

Investigação exaustiva


Esse dado por si só confere ao livro um mérito pouco comum entre nós, o da investigação rigorosa e exaustiva realizada em arquivos e bibliotecas, o que ficou sendo a marca registrada de Ventura. Por exemplo, é a primeira vez que lemos um testemunho singular, como o de Alberto Rangel, sobre o conhecido ato de protesto do cadete Euclides contra o ministro da Guerra do império, em 1888. A partir de notas datilografadas deixadas pelo autor de "Inferno Verde" e que se encontram no Arquivo Nacional, Ventura brinda seus leitores com um depoimento de primeira mão, quase totalmente desconhecido entre os euclidianistas.
Alguns excelentes momentos corroboram a qualidade narrativa de "Euclides da Cunha - Esboço Biográfico". A título de exemplo, bastam duas passagens reveladoras da fortuita concorrência entre linguagem e análise do biógrafo. Uma delas demonstra a sensibilidade em enxergar o estranho caráter do biografado, ao descrever analiticamente uma cena em que Euclides joga gamão com Júlio Bueno em Campanha (MG). Dessa cena, Ventura conclui: "Euclides projetava sobre o jogo a angústia que sentia com sua vida, convertida em prisão. Sentia-se tão encurralado quanto as peças que Júlio tinha cercado no tabuleiro" (págs. 130-1).
Outra passagem dá a vívida idéia da emoção que Euclides sentia ao estar entre oficiais, velhos companheiros de escola militar, num encontro em Monte Santo (BA) (págs. 164-5). Sem dúvida, são episódios muito felizes do ponto de vista do relato biográfico.
Na seleção e no arranjo dos fatos narrados em "Euclides da Cunha - Esboço Biográfico", Ventura esmera-se como biógrafo, ora enfatizando questões conhecidas de fundo social e histórico para melhor compreender o biografado, ora esmiuçando fatos pouco conhecidos para o leitor moderno. Veja-se o tratamento dado à questão Dreyfus, para estabelecer um laço entre os protagonistas desta e o destino que teve o pai de Ana de Assis -o general Solon- e o próprio escritor; aquele na carreira militar, e este também no Exército e nos vários serviços públicos prestados como engenheiro. A trajetória narrativa adotada para "Euclides da Cunha - Esboço Biográfico" se fundamenta num princípio cronológico que enfatiza os primeiros 36 anos da vida de Euclides, mais especificamente desde o seu nascimento até a publicação de "Os Sertões". Sem grande esforço, o leitor notará, primeiramente, a riqueza de informações utilizadas para esse período e, depois, à medida que avançamos em direção ao ano da morte do grande escritor (1909), uma certa simplificação composicional dos blocos narrativos e o acentuado aumento de esboços esparsos. Esse desnível de escritura é perfeitamente compreensível porque a primeira grande etapa da existência euclidiana, por razões cronológicas, ganha uma redação mais cuidadosa e às vezes até polida, enquanto que a dos últimos anos da vida de Euclides prescinde de uma forma discursiva mais depurada.



 

"Guia sumário"


"Euclides da Cunha -Esboço Biográfico" chega agora ao público com um suporte editorial organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana. O volume vem ainda acompanhado de notas do autor, chamadas de rodapé e prefácios dos organizadores, nota editorial, cronologia e rica bibliografia de e sobre Euclides da Cunha. Os organizadores adotaram também cuidadosos critérios editoriais para a organização dos vários blocos narrativos escritos por Ventura.
Desse modo, na nota editorial expressa-se a preocupação dos organizadores em dissipar possíveis dúvidas dos leitores com respeito à coerência entre as diferentes partes da matéria biográfica, que, nas palavras de Santana, lê-se como um "guia sumário". Não foi difícil prever, antes mesmo de estar no prelo, que enriqueceria sobremaneira a compreensão da vida tumultuosa de Euclides da Cunha. Os estudos euclidianos serão sempre devedores de Roberto Ventura.


Leopoldo Bernucci é professor de literatura brasileira na Universidade do Texas, em Austin (EUA). É autor de "A Imitação dos Sentidos" (Edusp) e organizador da edição comentada de "Os Sertões" (Ateliê Editorial).


Euclides da Cunha - Esboço Biográfico
352 págs., R$ 42,00
Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana (orgs.). Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/ xx/11/3707-3500).

 
Leopoldo Bernucci
 
Apoio
Protéton