"Euclides da Cunha - Esboço Biográfico" reúne
as anotações e pesquisas sobre o autor de "Os Sertões" feitas ao
longo de dez anos pelo crítico e professor da USP Roberto Ventura, morto no ano
passado
A VIDA
EM SUSPENSÃO
Leopoldo Bernucci
especial para a Folha
Como
"Um Paraíso Perdido", obra inacabada, com a qual Euclides da Cunha
nos teria dado outro grande exemplo de seu magnífico modo de narrar e analisar,
a biografia sobre o autor de "Os Sertões", que Roberto Ventura vinha
escrevendo, foi também infelizmente interrompida pela sua trágica morte no ano
passado. Igualmente trágico foi para o meio acadêmico o vácuo deixado pelo
jovem biógrafo e um dos mais dedicados pesquisadores dos assuntos euclidianos.
Lendo as páginas de "Euclides da Cunha - Esboço Biográfico", a
partir de levantamento realizado por Marcia Zoladz e Mario Cesar Carvalho nos
arquivos dos computadores de Ventura, percebe-se que, embora a narrativa biográfica
ainda estivesse tomando corpo, a pesquisa histórica, fundamental para qualquer
texto do gênero, já estava praticamente terminada. Para quem acompanhou de
perto as investigações biográficas de Ventura, como alguns de nós tivemos o
prazer de fazer, intercambiando com ele opiniões, notas e informações
diversas ao longo de uma década, percebe-se que nem todos os temas que ele
discutia com seus interlocutores se encontram nas páginas sobre a vida de
Euclides. Depois de estudá-la profundamente, a preocupação constante que
tinha Ventura com a relação ambivalente de Euclides com a causa republicana
deve ter ficado aquém da expectativa do biógrafo nos momentos de redação de
seu texto. Se bem que, quanto à pesquisa, o assunto tivesse sido esmiuçado por
ele, por meio do estudo dos vários episódios históricos que direta ou
indiretamente afetaram Euclides, "Euclides da Cunha - Esboço Biográfico"
se limitou a aludir ao forte republicanismo euclidiano que se desprende de sua
poesia precoce, principalmente aquele encontrado nos muitos poemas do caderno
"Ondas". Certamente, essa visão incompleta é fácil de explicar.
Deve-se ao fato de que a biografia que Ventura preparava fosse ainda um
"work in progress". Lamentavelmente, para o biógrafo não houve
suficiente tempo de preencher todas as lacunas de tão complexa narrativa para
dar conta dos momentos mais relevantes da vida de Euclides. Todos nós sabemos
que Ventura era uma fonte inesgotável de informações, que não só eram
compartilhadas generosamente com os colegas, mas que também estavam
impecavelmente organizadas de modo a facilitar a longa e difícil investigação
biográfica que ele vinha fazendo. Ironicamente, para alguém que entendia tão
bem as agruras do tempo, o seu problema foi justamente o de ter que lidar com o
roer das horas. Tão árduas e previsíveis foram as horas de estudo para ele e
tão insólita a maneira como Ventura deu adeus à vida. Se não tivemos a sorte
de ver publicado um texto de acabamento completo sobre a vida de Euclides da
Cunha, segundo as exigências do gênero biográfico e as do biógrafo, naquelas
600 páginas por ele projetadas, foi-nos dada ao menos a oportuna ocasião de
constatar um truísmo válido para esse tipo de obra: pouco é o número de páginas,
mas extremamente correto o seu conteúdo. "Euclides da Cunha - Esboço
Biográfico" apresenta-se entre os tantos esboços biográficos sobre
Euclides da Cunha já publicados, mas com a garantia diferenciada de que a sua
pesquisa agora se fez, na maioria das vezes, utilizando fontes primárias.
Investigação exaustiva
Esse dado por si só confere ao livro um mérito pouco comum entre nós, o da
investigação rigorosa e exaustiva realizada em arquivos e bibliotecas, o que
ficou sendo a marca registrada de Ventura. Por exemplo, é a primeira vez que
lemos um testemunho singular, como o de Alberto Rangel, sobre o conhecido ato de
protesto do cadete Euclides contra o ministro da Guerra do império, em 1888. A
partir de notas datilografadas deixadas pelo autor de "Inferno Verde"
e que se encontram no Arquivo Nacional, Ventura brinda seus leitores com um
depoimento de primeira mão, quase totalmente desconhecido entre os
euclidianistas.
Alguns excelentes momentos corroboram a qualidade narrativa de "Euclides da
Cunha - Esboço Biográfico". A título de exemplo, bastam duas passagens
reveladoras da fortuita concorrência entre linguagem e análise do biógrafo.
Uma delas demonstra a sensibilidade em enxergar o estranho caráter do
biografado, ao descrever analiticamente uma cena em que Euclides joga gamão com
Júlio Bueno em Campanha (MG). Dessa cena, Ventura conclui: "Euclides
projetava sobre o jogo a angústia que sentia com sua vida, convertida em prisão.
Sentia-se tão encurralado quanto as peças que Júlio tinha cercado no
tabuleiro" (págs. 130-1).
Outra passagem dá a vívida idéia da emoção que Euclides sentia ao estar
entre oficiais, velhos companheiros de escola militar, num encontro em Monte
Santo (BA) (págs. 164-5). Sem dúvida, são episódios muito felizes do ponto
de vista do relato biográfico.
Na seleção e no arranjo dos fatos narrados em "Euclides da Cunha - Esboço
Biográfico", Ventura esmera-se como biógrafo, ora enfatizando questões
conhecidas de fundo social e histórico para melhor compreender o biografado,
ora esmiuçando fatos pouco conhecidos para o leitor moderno. Veja-se o
tratamento dado à questão Dreyfus, para estabelecer um laço entre os
protagonistas desta e o destino que teve o pai de Ana de Assis -o general Solon-
e o próprio escritor; aquele na carreira militar, e este também no Exército e
nos vários serviços públicos prestados como engenheiro. A trajetória
narrativa adotada para "Euclides da Cunha - Esboço Biográfico" se
fundamenta num princípio cronológico que enfatiza os primeiros 36 anos da vida
de Euclides, mais especificamente desde o seu nascimento até a publicação de
"Os Sertões". Sem grande esforço, o leitor notará, primeiramente, a
riqueza de informações utilizadas para esse período e, depois, à medida que
avançamos em direção ao ano da morte do grande escritor (1909), uma certa
simplificação composicional dos blocos narrativos e o acentuado aumento de
esboços esparsos. Esse desnível de escritura é perfeitamente compreensível
porque a primeira grande etapa da existência euclidiana, por razões cronológicas,
ganha uma redação mais cuidadosa e às vezes até polida, enquanto que a dos
últimos anos da vida de Euclides prescinde de uma forma discursiva mais
depurada.
"Guia
sumário"
"Euclides da Cunha -Esboço Biográfico" chega agora ao público com
um suporte editorial organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto
de Santana. O volume vem ainda acompanhado de notas do autor, chamadas de rodapé
e prefácios dos organizadores, nota editorial, cronologia e rica bibliografia
de e sobre Euclides da Cunha. Os organizadores adotaram também cuidadosos critérios
editoriais para a organização dos vários blocos narrativos escritos por
Ventura.
Desse modo, na nota editorial expressa-se a preocupação dos organizadores em
dissipar possíveis dúvidas dos leitores com respeito à coerência entre as
diferentes partes da matéria biográfica, que, nas palavras de Santana, lê-se
como um "guia sumário". Não foi difícil prever, antes mesmo de
estar no prelo, que enriqueceria sobremaneira a compreensão da vida tumultuosa
de Euclides da Cunha. Os estudos euclidianos serão sempre devedores de Roberto
Ventura.
Leopoldo
Bernucci é professor de
literatura brasileira na Universidade do Texas, em Austin (EUA). É autor de
"A Imitação dos Sentidos" (Edusp) e organizador da edição
comentada de "Os Sertões" (Ateliê Editorial).
Euclides da Cunha - Esboço Biográfico
352 págs., R$ 42,00
Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana (orgs.). Companhia das
Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/
xx/11/3707-3500).
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