Euclides da Cunha entre a ciência e a arte
Paulo Herculano Especial para DEMOCRATA
Euclides da Cunha aliou a técnica científica ao subjetivismo artístico, sem impor um esquema de hierarquias entre arte e ciência e sem imaginá-las elementos contraditórios entre si - é basicamente esta a tese de Ronaldes de Mello e Souza, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que proferiu no dia 9 a conferência oficial de abertura da 91ª Semana Euclidiana, encerrada ontem. Vencedor do concurso de ensaios sobre o centenário de "Os Sertões", Mello e Souza falou durante mais de uma hora sobre "A Geopoética de ´Os Sertões´", com que faturou o primeiro lugar do concurso e que lhe rendeu lugar de destaque entre as estrelas maiores do euclidianismo universitário. No Manauara Hotel, onde ficara hospedado nesta SE, Mello e Souza recebeu DEMOCRATA para a seguinte entrevista:
Que tipo de referências o sr. tinha sobre a Semana Euclidiana? "Eu conheço a Semana desde há muitos anos, sobretudo quanto ao culto à memória de Euclides, que é um dos exemplos mais emocionantes de reverência a um valor cultural. Também tenho acompanhado as publicações dos euclidianos. Inclusive nos últimos anos está havendo toda uma reavaliação crítica da obra de Euclides da Cunha, enriquecendo a compreensão de sua obra por parte de pessoas que aqui se reúnem anualmente, como Roberto Ventura, José Carlos Barreto de Santana, Adelino Brandão, entre tantos outros nomes"
Muito de seu trabalho acadêmico baseia-se na tríade Euclides da Cunha, Guimarães Rosa e Machado de Assis. Por que a preferência por esses autores? "Publiquei em 78 um livro sobre ´Grande Sertão: Veredas´, de Guimarães Rosa. Vou começar agora em agosto a escrever um livro sobre ´Sagarana´e ´Corpo de Baile´. E tenho esse trabalho que foi premiado pela Casa Euclidiana, "A Geopoética de Euclides da Cunha". Vou esperar sair o livro sobre Euclides da Cunha e lançarei um novo livro sobre Machado de Assis, que já está pronto."
Em sua participação na conferência de abertura da Semana Euclidiana, o sr. falou muito sobre o consórcio, em "Os Sertões", entre a ciência e a arte. Afinal, quais são os limites entre ciência e arte em "Os Sertões"? "Na verdade, a genialidade de Euclides da Cunha consiste em ter rompido o divórcio entre ciência e arte. Toda a tradição hegemônica do conhecimento ocidental europeu, desde Platão, houve um divórcio entre uma coisa e outra, entre a poesia e a ciência. A tradição estética, de certa maneira, perpetuou esta separação. Euclides se volta contra duas concepções dominantes: uma é o objetivismo da ciência e a outra é o esteticismo na arte. Ao não aceitar as duas versões canônicas da arte e da ciência, e esta concepção canônica é que estabeleceu o divórcio entre a ciência e a arte, ele procurou repensar uma ciência que incluísse o poético e uma arte que incluísse o conhecimento, acabando com a dissidência entre a ciência como forma de conhecimento e a arte como uma forma de emoção, mas sem valor cognitivo. Euclides não aceitou esta separação e buscou um consórcio entre a ciência e a arte."
Esse consórcio entre ciência e arte pode ser explicado pela formação profissional de Euclides da Cunha, que era engenheiro? "Euclides da Cunha talvez seja um exemplo consumado de um homem que superou sua formação. Ele foi formado num espírito positivista. A ciência que se praticava no Brasil e no exterior no seu tempo tinha um tempo muito positivista, o que inviabilizava o consórcio entre ciência e arte. Por outro lado, a concepção dominante no Brasil era o formalismo, o esteticismo na arte, na literatura. Euclides não aceitou o formalismo e nem o positivismo na ciência." A crítica revisionista já disse que Euclides da Cunha usa a arte quando a ciência não é capaz de descrever um fato. O sr. concorda com essa tese? "Não, não concordo. Essa tese inclusive foi brilhantemente argumentada pelo Luís Costa Lima, que coloca a uma sub-cena literária; quando não se tem meio de explicar pela ciência, aí então eu recorro à Literatura. Isso significa admitir que a Literatura não é apenas uma forma de conhecimento. Em cada discurso científica, Euclides determina o sentido do fenômeno investigado. Ele não diz que os discursos científicos não sejam importantes, e sim que estes discursos são insuficientes para compreender a personalidade excessiva e dramática do Antônio Conselheiro. Para ele, a Literatura não é para ornamentar, e sim para mostrar a estrutura pluri-significativa do discurso literário, que se caracteriza por adotar múltiplos pontos de vista. O discurso científico nem sempre consegue explicar o fenômeno, mas Euclides não vai utilizar o discurso literário como um ornamento ou um suplemento. Ele vai utilizar o discurso literário como uma estrutura pluri-significativa e um discurso capaz de ser multi-perspectivado para vários pontos de vista para explicar uma realidade que excede a possibilidade de um discurso pretensamente canônico." Portanto Euclides não apenas não via contradição entre ciência e arte, mas também não fazia hierarquia entre uma coisa e outra... "Essa é uma questão fundamental. Euclides da Cunha talvez seja o escritor mais avesso a todo sistema de hierarquia e coação. Toda a sua vida era uma impulso passional contra a coação."
No texto euclidiano, a arte é um instrumento para minimizar a aspereza descritiva, sobretudo da parte "A Terra"? "Não, e podemos dar alguns exemplos para vermos com quem Euclides da Cunha se irmana. Por exemplo: fala-se da guerra de Tróia. Houve milhares e milhares de sagas troianas. E por que a "Ilíada" permaneceu? Porque ali tínhamos um discurso poético, em que a preocupação ali não era a de representar fato. O discurso poético não se interessa por fatos e sim por fatores. Se você quiser aprender alguma coisa sobre a Guerra de Tróia, n a ´Ilíada´ você não aprenderá nada do ponto de vista da objetividade histórica. A preocupação de Homero é o efeito que os acontecimentos causam nos protagonistas da guerra. A mesma coisa fez Euclides da Cunha - ele não narrou a história da luta de Canudos. A preocupação fundamental era o efeito dessa guerra sobre os combatentes, tanto sertanejos quanto os soldados."
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