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A Morte de Hersílio Ângelo
2003-09-25 12:40:06

 

A MORTE DE H. A.

 

MÁRCIO JOSÉ LAURIA

 

Domingo à tarde fomos levar o Prof. Hersílio Ângelo para o leito derradeiro em que, ao lado de Odette, está repousando dessa longa vida.

As notícias de morte já não se espalham em instantes no boca-a-boca da amizade e das cartas de luto. As pessoas como que se recolhem, se encolhem, se desligam do mundo, nos finais de semana.

Hersílio Ângelo morreu pelas dez da manhã e foi sepultado ao cair da tarde, bela tarde de fazer lembrar um dos  sonetos de Bilac que ele sempre lia em classe, “Vila Rica”, aquele em que o ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre.

Triste fim o do professor. Por anos a fio suportou a paralisia das pernas, uma delas cortada há alguns meses, tomada pela gangrena. Foi-lhe cortada, antes, coisa de mais valor, a presença de Odette, consumida ela própria pelo zelo com que se dedicara ao marido enfermo.

Passou-me de uns tempos para cá ser penoso visitá-lo;  ele se emocionava e se enervava, tolhido na audição, na visão, até na dificultosa concatenação de idéias. Alma aprisionada no corpo em ruínas, a mão direita emperrada, perdido até o prazer elementar de escrever, reduzido a sacrifício o ler com lupa uma página qualquer.

Além de tudo, a morte de tantos amigos, alguns de maneira inconcebível, como Itagiba; outros valendo como advertência ao próprio fim que se aproximava. Galotti, por exemplo.

Mestre Hersílio surpreendeu com o fundo empenho de ir à Câmara Municipal, em 2001, receber o Diploma de Mérito Euclidiano, prioritária concessão a ele e ao Galotti. Nem falar pôde. Moisés, o filho, representou-o lendo um texto cuidado e sintético. Hersílio estava feliz, tanto por ter sido lembrado já num primeiro momento, quanto esperançoso de merecer a companhia de Galotti, o amigo desde antes de 1940. Galotti não conseguiu comparecer. Estava já às vésperas de morrer.

Deve ser hoje difícil entender como eram as relações entre um professor e um grupo seleto de alunos, trabalhados por anos a fio na aquisição de conhecimentos que pouco ou nada tinham a ver com a eventual obtenção de notas. Queria-se aprender, isto sim. Muitos dos discípulos privilegiados de H.A. sabiam estar frente a um professor de incomum saber, de completa honestidade intelectual, prazerosos todos em buscar os desafios desta língua nossa tão cheia de caprichos e particularidades.

Quando tomo a Gramática Metódica da Língua Portuguesa, de Napoleão Mendes de Almeida, e leio na página de rosto o meu nome, a data (1943) e a minha série (1.ª ginasial), fico pensando em como eram as coisas e como têm mudado. Hoje Napoleão é tido por difícil livro de consulta. Que deve ter  sido para nós, meninos e meninas de onze ou doze anos?

Conservo Noções de História das Literaturas, de Manuel Bandeira,  a provecta Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, a Gramática Expositiva (curso superior), de Eduardo Carlos Pereira – todos comentados, anotados e até corrigidos por Hersílio...

Estudava-se muito? Não me lembro de nenhum esforço pessoal incomum. Lembro-me bem das lamúrias de muitos colegas capengas na redação, sempre às voltas com as insídias da próclise, da ênclise, da mesóclise, com os casos especiais do uso da crase, com o estudo detalhado do infinitivo pessoal e as mirabolantes regras de Frederico Diez e Soares Barbosa. E os mistérios do pronome se com suas inalcançáveis funções (até de sujeito psicológico) na visão de autores do peso de Said Ali.

Querido de todos? Admirado por todos? Certo que não. Havia sempre choro e ranger de dentes nas tomadas de exercícios caseiros, nas  provas mensais, nas parciais, nos exames orais que se arrastavam pelo dia todo e o Prof. Hersílio ali, exigindo de cada um a leitura expressiva de um trecho, o comentário gramatical, a análise sintática das excepcionalidades de Camões, Vieira, Bernardes... E Machado de Assis romancista, contista, poeta, cronista, teatrólogo... A escola com Hersílio Ângelo não era mesmo risonha e franca para todos.

Um colega de científico e de normal ainda hoje não pôde esquecer-se do incidente desimportante que o colocou em rota de colisão com o professor:

— Sr. Waldemar, o Sr. há de avir-se comigo. Trate de estudar, e muito!

E o Sr. Waldemar estudou muitíssimo. Tanto, que até recentemente me recitou páginas inteiras da Gramática de Eduardo Carlos Pereira, decoradas em 1948, para avir-se com o professor de Português... O brio! O brio!

Em nosso longo convívio nunca vi o Prof. Hersílio mais desgastado, mais infeliz, mais amargurado do que no seu abreviado mandato de diretor da Faculdade de Filosofia. Lutou não só contra as adversidades de uma fase dificílima da escola, como também não contou com o esperado apoio da administração local. A Prefeitura acabou intervindo na Faculdade, ele foi afastado do cargo e  nunca mais voltou por lá nem mais comentou seu terrível  instante de Jó. Silenciou a respeito, mas nada esqueceu.

Sua reconciliação com o ensino superior deveu-se ao convite do Prof. Francisco Ribeiro Sampaio para lecionar Literatura Brasileira na PUC de Campinas. É desse produtivo período da década de sessenta a bela edição didática de Os Sertões, da Cultrix, de parceria com Alfredo Bosi.

Revejo na memória Hersílio Ângelo na sala dos professores sempre próximo de dois queridos colegas e compadres, precoces na morte: Laércio Barbosa (Latim) e Itagiba d’Ávila Ribeiro (Matemática). Com os três experimentei intensamente o prazer de ser aluno e posteriormente  de conviver e de lecionar em época áurea numa escola que nos dava muito orgulho – o Instituto de Educação Euclides da Cunha.

 
Márcio José Lauria
 
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