Euclides e Conselheiro: o elo psicanalístico
por Flavio Moura
“Esboço Biográfico” traz a ousada interpretação de Roberto Ventura sobre o autor de “Os Sertões”
Num domingo de agosto de 1909, Euclides da Cunha recebeu o escritor Viriato Corrêa em sua casa com vista para o mar de Copacabana. Pela manhã, conversaram sobre as dificuldades enfrentadas pelo autor para publicar “Os Sertões”. Em seguida almoçaram e caminharam descalços pela praia. “Era sol e era azul”.
Essa é a frase que encerra o livro “Esboço Biográfico”, organizado a partir dos originais deixados pelo professor de teoria literária da USP Roberto Ventura (ed. Companhia das Letras). Licença que destoa do tom informativo do texto, a frase enfatiza a tragicidade da morte de Euclides, ocorrida no dia 15 do mesmo mês, em duelo com o amante de sua mulher. E aproxima o destino de Euclides do próprio Ventura, morto em agosto do ano passado num acidente de carro.
Lançado um ano após o centenário de publicação de “Os Sertões”, o livro foi organizado pelo jornalista Mario Cesar Carvalho, que acompanhou de perto o trabalho desde o início das pesquisas, mais de dez anos atrás, e pelo historiador da ciência José Carlos Barreto de Santana.
Exceto alterações minúsculas, o material publicado corresponde na íntegra ao arquivo “Euclides da Cunha - Uma Biografia”, encontrado no disco-rígido do computador de Ventura e chamado pelos organizadores de “guia sumário” da vida de Euclides.
Apesar de interrompido, o livro traz interpretações inéditas sobre a obra do escritor, apresenta dados pouco conhecidos de sua vida e se caracteriza por um rigor extremo na utilização das fontes.
O lance mais ousado da interpretação diz respeito à relação entre Euclides e Antonio Conselheiro. O religioso e o escritor tinham traços em comum: ambos eram órfãos, trabalharam como construtores e tiveram suas vidas marcadas pela república e pelo adultério -a mulher de Conselheiro teria fugido com um agente de polícia.
Semelhanças assim reforçariam a possibilidade de se enxergar o líder do povoado de Canudos como uma projeção psicanalítica de Euclides. “O escritor projetou sobre Antônio Conselheiro e Canudos muitas de suas obsessões, como o temor da sexualidade, da irracionalidade, da loucura, do caos e da anarquia”, escreve Ventura.
O fanático religioso a brandir seu cajado contra a ordem republicana que aparece em “Os Sertões”, assim, seria mais um personagem condizente com as aspirações do escritor, decepcionado com o regime que apoiara, do que com a figura histórica do religioso, cristão primitivo cuja índole revolucionária nunca ficará provada.
A idéia da projeção psicanalítica, para a professora Walnice Nogueira Galvão, traz um enfoque novo aos estudos euclidianos. “É perfeitamente válida”, diz ela, autora de uma edição anotada de “Os Sertões” (Ática) e uma das maiores especialistas na obra do escritor. Mas frisa que são tudo conjecturas, vista a escassez de documentos sobre a vida de Conselheiro. “Não ponha o pé nessa lama que acabará tragado”, brinca.
É vastíssima, contudo, a documentação de que Ventura se vale para construir sua biografia. Exemplo disso é o testemunho do escritor pernambucano Alberto Rangel, autor de “Inferno Verde”, sobre o ato de protesto de Euclides contra o ministro da Guerra, Tomás Coelho, em 1888.
“Ventura brinda seus leitores com um depoimento de primeira mão, quase totalmente desconhecido entre os euclidianistas”, escreveu a esse propósito Leopoldo Bernucci, professor da Universidade do Texas e também autor de edição comentada de “Os Sertões” (Ateliê Editorial).
A obsessão do biógrafo por seu tema beirava o anedótico. Como nota José Carlos Barreto de Santana na introdução ao livro, Ventura queria saber, por exemplo, se Euclides era vesgo, estrábico ou se tinha apenas orelhas grandes -perguntas que formulava a partir do fato de Euclides ser sempre fotografado de lado ou de perfil.
Mas é preciso reiterar que se trata de livro inacabado e, como tal, irregular e por vezes repetitivo. Há trechos apenas esboçados, como o capítulo sobre o drama familiar do escritor. Drama é a palavra exata: Euclides morreu aos 43 anos num tiroteio com o cadete Dilermando de Assis, amante de sua mulher, Ana da Cunha, num episódio que se tornou um dos maiores escândalos da vida nacional no início do século. Sete anos depois, em 1916, seu filho Quidinho foi morto a tiros pelo mesmo Dilermando ao tentar vingar o pai. Sólon da Cunha, o outro filho do escritor, morrera dois meses antes, no Acre, onde era delegado, com um tiro no estômago.
A última alteração feita por Roberto Ventura no documento foi em 10 de novembro de 2001, mais de oito meses antes de morrer. Mario Cesar Carvalho acredita que Ventura havia abandonado a empreitada. “Roberto não publicaria o trabalho nesse formato”, acredita o jornalista. “Mas o livro traz um manancial de pistas. Não seria ético esconder isso dos pesquisadores.”
O motivo do abandono seria justamente a dificuldade de encontrar o enfoque certo, principalmente para dar sentido à aproximação entre Euclides e Conselheiro. Uma possibilidade era valer-se da abordagem do historiador romano Plutarco, que foi lido por Euclides e escreveu biografias de estadistas buscando supostos paralelos entre eles e seus pares gregos. Roberto Ventura não teve tempo de levar a proposta a cabo. Mas se algum pesquisador adotar estratégia semelhante para entender a relação de Ventura com Euclides, por certo terá riquíssimo material nas mãos.
Flavio Moura
É jornalista e crítico literário.