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Euclides e o berço de Os Sertões
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Viagens e pontes, fendas e fraturas:perspectivas d’Os sertões, de Euclides da Cunha
2003-12-05 11:53:32

 

Viagens e pontes, fendas e fraturas:

perspectivas d’Os sertões, de Euclides da Cunha1

 

 

Léa Costa Santana Dias2

 

 

Desde a publicação em 1902 até os nossos dias, Os sertões tem servido de tema para discussões entre os estudiosos da História, Geologia, Literatura, Geografia, Sociologia, Antropologia, Etnografia, Psicologia, Filosofia, etc. No campo literário, há inúmeras controvérsias, que podem ser entendidas como uma amostragem dos impasses a que são submetidos os estudiosos das diferentes áreas. O crítico literário Afrânio Coutinho (1995: 61) considera o livro como “uma obra de ficção, uma narrativa heróica, uma epopéia em prosa, da família de A guerra e a paz, da Canção de Rolando e cujo antepassado mais ilustre é a Ilíada.” Luiz Costa Lima (1997: 204), adotando outra postura, entende-o como obra de ciência e afirma que o literário em Euclides é apenas um “ornamento embelezador ou ressaltante de verdades cientificamente dispostas.” Entre os dois extremos está a maior parte dos críticos, que preferem entendê-lo como um texto de múltiplas inserções, no qual Euclides põe em prática o princípio norteador de sua escrita: o consórcio entre Ciência e Arte.

Considerando-se essa última hipótese como a mais adequada para se tentar compreender o percurso discursivo de Os sertões, nossa dissertação pretende pôr em discussão o modo como se constrói a narrativa do livro, com ênfase em suas antinomias e idéias muitas vezes contraditórias, que são estratégias através das quais Euclides da Cunha, portando-se como um viajante/descobridor, representa eventos da guerra sertaneja, com emoção e consciência crítica. Retomando os ideais de Thierry - que entendia que a história deveria ser vista como ciência e arte (Facioli, 1990: 89) - e Michelet – que sempre reagiu contra o conceito puramente documental da história (p. 90), Euclides assume a posição de sujeito diante do objeto que observa e faz da História o lugar de intersecção entre Ciência e Arte. Aquela vista como capaz de definir “(...) na história as épocas sucessivas de elevação humana” (Cunha, 1995: 672) e esta, como capaz de “formar a mais pronta, a mais ampla e a mais segura idéia da superioridade afetiva e mental de um povo” (p. 672). Ou seja, com o consórcio entre Ciência e Arte, Euclides visa atingir a totalidade, a fusão entre o particular (nacional) e o universal, e o evento histórico de Canudos é o acontecimento que lhe possibilita a realização de tal intento.

Na viagem à Bahia, Euclides se depara com o “mundo novo” representado por Canudos e é levado a repensar seus conceitos referentes ao tema e a reconstruir seus textos anteriores à viagem: os dois artigos intitulados A Nossa Vendéia, publicados n’O Estado de S. Paulo nos dias 14 de março e 17 de julho, nos quais compara a guerra sertaneja com a rebelião religioso-monarquista, ocorrida na França, na região da Vendéia, em 1793. Visando a traduzir em linguagem o que vira, ouvira e imaginara, Euclides se propõe a redirecionar seu livro (idealizado antes da ida a Canudos), através de exaustivas leituras, reescrita de textos, revisão de notas, reunião de documentos, reorganização de idéias e impressões pessoais, agindo menos como um cientista em busca de uma suposta verdade do que como um artista em busca da força das palavras na representação do real.

Dessas viagens intra e extra-textuais empreendidas por Euclides, surge o tratado de revelação de um país em que apenas a uma face era dado o privilégio de ser. Mais do que apresentar aos brasileiros a existência de um país dividido, formado por dois brasis antagônicos – um centrado na hegemonia dos proprietários rurais de São Paulo e de Minas Gerais; e outro, marginalizado, sem condições de competir em capitais e mão-de-obra com as regiões detentoras do poder político e econômico -, Euclides revela a não existência da nação. Afinal, conforme assinala Valentim Facioli, “a nação constituída de uma minoria privilegiada à custa da terrível miséria e opressão da maioria, não figurava uma nação real, mas a ser formada, a ser construída” (Facioli, 1990: 101). Desse modo, mais do que a representação de um país, o que aparece é a representação do monstro, profundamente marcado e dilacerado pelas desigualdades socioeconômicas. Ao ser revelado o “outro” desconhecido, foram retiradas as máscaras e desvendadas muitas coisas que permaneceram ocultas durante muito tempo; foram arrancadas as vendas dos olhos e os brasileiros puderam contemplar-se a si mesmos num espelho, cujo reflexo era horrendo: “o desgracioso, desengonçado, torto” (Cunha, 1996: 64) invade a Rua do Ouvidor e põe em xeque o processo de modernização do país:

 

Nem um rosto viril, nem um braço capaz de suspender uma arma, nem um peito resfolegante de campeador domado: mulheres, sem-número de mulheres, velhas espectrais, moças envelhecidas, velhas e moças indistintas na mesma fealdade, escaveiradas e sujas, filhos escanchados nos quadris desnalgados, filhos encarapitados às costas, filhos suspensos aos peitos murchos, filhos arrastados pelos braços, passando; crianças, sem-número de crianças; velhos, sem-número de velhos; raros homens, enfermos opilados, faces túmidas e mortas, de cera, bustos dobrados, andar cambaleante (Cunha, 1996: 289).

 

Com o extermínio de Canudos, os “rudes patrícios retardatários” (p. 176) não foram incorporados à civilização. Isso só poderia ser feito no futuro. E o futuro – que possibilitava ao Brasil firmar-se como nação – vinha representado por uma imagem monstruosa – uma criança com o rosto mutilado:

 

E essa criança horrorizava. A sua face esquerda fora arrancada a tempos, por um estilhaço de granada; de sorte que os ossos dos maxilares se destacavam alvíssimos, entre as bordas vermelhas da ferida já cicatrizada... A face direita sorria. E era apavorante aquele riso incompleto e dolorosíssimo aformoseando uma face e extinguindo-se repentinamente na outra, no vácuo de um gilvaz (p. 290).

 

Este era o símbolo maior das dicotomias do país. Em uma face, havia o sorriso; na outra, a chaga. De um lado, a suposta barbárie, que nada mais era que um agrupamento de pessoas lutando pela sobrevivência, resistindo até à morte em defesa do território invadido; do outro, a civilização, que de tão aprisionada aos próprios ideais, cometeu uma das maiores barbáries da nossa História. De um lado, a certeza da vitória; do outro, mulheres torturadas pela derrota, “precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos” (p. 292). De um lado, um batalhão de cinco mil soldados; de outro, quatro defensores solitários: um velho, dois homens e uma criança. De um lado, o hasteamento da bandeira nacional em meio à praça vencida e os brados em comemoração à vitória; do outro, casebres em ruínas, fogo, destruição e morte.

A nação era incompleta e, por isso, era monstruosa. Representá-la era o objetivo de Euclides. No entanto, como o ser que observava era parte integrante do monstro, a nação não podia ser vista como um todo, e a observação também era monstruosa, conflitante (Facioli, 1990: 101-104). Para resolver o impasse, a escrita também precisava ser conflituosa. Impossível a síntese, o raciocínio do autor só podia fundar-se em tese e antítese.

Acreditamos que essas incontornáveis questões é que levaram o homem positivista a pôr em xeque os saberes que se interpenetram no livro e a fazer viagens e pontes contínuas, preenchendo as fendas e fraturas de seu pensamento com metáforas, símbolos, silêncios e sugestões de leituras não feitas e de palavras não ditas. 

 

 

Notas

 

 

1.     O texto “Viagens e pontes, fendas e fraturas: perspectivas d’Os sertões, de Euclides da Cunha” foi publicado no Jornal Tribuna Feirense, Feira de Santana, domingo, 01 de dezembro de 2002, Cad. Cultural, ano 1, nº 20, p. 6, Col. 1-6.

2.     Léa Costa Santana Dias é graduada em Letras (CESVASF – PE), especialista em Estudos Literários (UEFS – BA) e mestra em Literatura e Diversidade Cultural  (UEFS – BA).

 

 

Referências bibliográficas

 

COUTINHO, Afrânio. “Os sertões”, obra de ficção. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Afrânio Coutinho (org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. vol. 2, p. 61-6.

CUNHA, Euclides da. Dia a Dia. Crônica. In: Id. Obra completa.. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. vol. 1, p. 671-3.

CUNHA, Euclides da. Notas à segunda edição. Os sertões. 2. ed., São Paulo: Ática, 2001. p. 501-10. (Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão).

CUNHA, Euclides da. Os sertões. 19.ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. 297p.

FACIOLI, Valentim A. Euclides da Cunha: a gênese da forma. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1990. 172p. (Tese de Doutoramento).

LIMA, Artur Costa. Terra ignota: a construção de “Os sertões”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 304 p.

 

 

 

 
Professora Léa Costa Santana Dias
 
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