Maria Olívia Garcia R.Arruda 21/01/2004 ´Vocês que fazem parte dessa massa Que passa nos projetos do futuro É duro tanto ter que caminhar E dar muito mais que receber E ter que demonstrar sua coragem À margem do que possa parecer E ver que toda essa engrenagem Já sente a ferrugem lhe corroer Ê ô ô vida de gado Povo marcado ê. Povo feliz Ê ô ô vida de gado...´ (Admirável Gado Novo - Zé Ramalho)
Após alguns dias de merecidas férias rodando por aí afora, voltei mais consciente ainda da enorme diferença que há entre nossas regiões. Não se trata, porém, apenas da pluralidade cultural, de que tanto se fala ultimamente, mas do atraso e da miséria que aumentam assustadoramente neste país. Lembrando a data natalícia de Euclides da Cunha, dia 20 p.p., gostaria de refletir um pouco a respeito de algumas denúncias que ele e outro grande escritor fizeram na época e que servem também para os dias de hoje. Não que eu entenda de política, mas confio na visão daqueles que souberam detectar nossas mazelas logo no início. No período de transição do Império para a República, homens como Euclides e Augusto dos Anjos revelaram claramente onde se encontravam as raízes dos males que degeneraram o sistema. Euclides denunciou a opressão, os desmandos e se decepcionou com a República, que fora um ideal pelo qual lutara em sua juventude e em que depositara suas esperanças de um país mais justo e civilizado. Comprovam-no seus artigos e sua correspondência. Augusto vai um pouco além: com uma poesia cheia de símbolos, que confunde o leitor, mas com uma prosa direta e agressiva, embora empolada, tenta mostrar a ganância e a superficialidade de uma classe dominante que se preocupava apenas com coisas fúteis e efêmeras, soterrando os valores mais nobres do ser humano. A intenção de Augusto - que torna sua obra atualíssima - parece ser mesmo alertar as pessoas para a brevidade daquilo que elas elegem como objetivo de vida, numa tentativa de despertar atitudes de regeneração e restauração de valores essenciais. Muitos falaram sobre os dois escritores, bem poucos procuraram mergulhar em seus textos para compreender-lhes a mensagem profunda. Considero-os, porém, os grandes humanistas da época, talvez até por terem sido vítimas do próprio sistema. Augusto e Euclides possuem semelhanças incríveis em suas biografias: dificuldades para a sobrevivência com a profissão de escritor, a tristeza de serem obrigados a abraçar carreiras que se tornavam fatigantes e não estavam de acordo com suas vocações; a saúde frágil, a constante insegurança financeira, que lhes obrigava a freqüentes mudanças de residências e, por fim, a morte antecipada. O poeta do ´Eu´, pela doença - que até hoje se discute se foi pneumonia, conforme o laudo médico, ou tuberculose - e Euclides, pela forma trágica que buscou. Além disso, quando os dois conseguiram um emprego seguro, já lhes sobrarava pouco tempo de vida. Euclides, como professor no Rio de Janeiro e Augusto como diretor de um grupo escolar, em Leopoldina, Minas Gerais. O primeiro faleceu em 1909, como sabemos; o segundo, em 1914. São tantas as coincidências que tive a ousadia de iniciar um estudo comparado desses gênios da literatura e do pensamento humano. É claro que hoje, neste artigo, esboçarei apenas algumas idéias de ambos, que parecem esclarecer um pouco as razões das sucessivas crises que têm assolado nosso Brasil. Gostaria de começar lembrando que a Sociologia traça um conceito de ´Homem´ considerado por Euclides tão utópico que só poderia ocorrer após um aperfeiçoamento ´excessivamente remoto´ , só atingido quando houvesse a união de todas as crenças e tradições, quando a humanidade se tornasse, enfim, uma ´grande família´. É o que ele diz em ´Homens de Hoje´. As idéias de Augusto não se diferem muito: em suas Crônicas Paudarquenses, defende que, num futuro distante, chegaria, enfim, a hora da ´morte das hierarquias intelectuais´, da queda das barreiras sociais e, através da concórdia amorosa, a humanidade atingiria a perfeição. Ambos defenderam fervorosamente o amor desinteressado à pátria, atitude que já preconizava também uma sociedade comandada apenas por interesses individuais, ou de pequenos grupos. Se analisarmos um pouco a questão, perceberemos que as civilizações ainda estão muito distantes de concretizar esse ideal de ´ser´ humano... Neste mundo extremamente capitalista, mais do que nunca o homem tem sido o lobo do próprio homem. Euclides deixou trechos bastante interessantes a respeito do sistema político que então se instalava, como a definição do senador Francisco Otaviano, que via a política como a ´... messalina histérica de cujos braços sai-se corrompido.´ O poeta do ´Eu´, por sua vez, fala-nos das inutilidades que avançavam, enchiam ´a lotação dos bondes´, logravam ´na partilha dos lucros sociais as maiores prebendas´ e promoviam ´sarabandas governamentícias´, ou seja, enormes estardalhaços nas campanhas políticas. O autor de ´Os sertões´, em sua correspondência ao cunhado, em 1909, afirma: ´Estamos no período hilariante dos grandes homens-pulhas (...) em cada degrau da Secretaria um salvador das instituições e da Pátria. Da noite para o dia surgem não sei quantos imortais... ´ E nenhum dos dois pré- modernistas conhecia o poder do autor de ´Marimbondos de Fogo´, nem a força de manipulação da mídia na era da tecnologia! ´É asfixiante!´ - continua Euclides -´A atmosfera moral é magnífica para batráquios.´ E Augusto complementa-o, denunciando que as classes dirigentes empenhavam-se em movimentar ´a máquina dos trabalhos ávidos, para a colheita das fortunas.´ Esclareça-me, caro leitor: alguma coisa mudou? Engana-se quem pensa que só nos tempos atuais é que a honestidade saiu de moda... A atitude é antiga, vem daquela virada para o século XX, como percebemos nos textos que nos deixaram esses consagrados escritores: ´A turba dos aduladores impropriou para tais lutas os sinceros e os dignos´, reclamava Euclides. O caráter, então, apresentava-se como um ´candidato à ruína´, conforme Augusto dos Anjos, e o ´homem de bem´ tornara-se motivo de zombaria, ´uma figura de manicômio´... E hoje? O quanto se reconhece o valor de um trabalhador honesto? O que lhe sobra após uma vida toda dedicada ao serviço à comunidade? Mas a República seguiu em frente, com a fila de ´cavadores´ de postos públicos engrossando cada vez mais, abrindo espaços sempre maiores para os que conseguiam dar um jeitinho em tudo... E resultou no que conhecemos hoje: um país de imensas possibilidades desperdiçadas, pois a maioria da população não lê, não pensa, não escreve - como já dizia Euclides naquela época - e não luta por uma efetiva mudança no sistema. Mas a miséria provocou a construção gradual e silenciosa de um universo paralelo, em que as pessoas vão trocando a ameaça de desemprego e da fome pela venda de drogas, pela prostituição e pela violência - um submundo baseado na lei do mais forte, que tem acuado cada vez mais os ´homens de bem´ e invadido rapidamente a nossa realidade. Que ninguém se julgue livre do risco de ser a próxima vítima! Que ninguém pense em soluções enquanto uma parcela da população continuar acomodada, indiferente, ignorando a situação desses milhões de brasileiros marginalizados, que não enxergam outras opções! Nem momentaneamente, nem em curto prazo virá uma solução satisfatória... O mal é antigo, arraigado fortemente em nossas instituições. ´Destruir no organismo social o tóxico lentamente infiltrado é aplicar os antídotos violentos dos casos desesperados´, avisa Euclides. Precisamos de ações efetivas, de menos discursos construídos ao gosto do ouvinte e de mais atitudes precisas, geradoras de resultados animadores. Que se diminuam gastos com propagandas que não correspondem à realidade de nossa vida política... O incentivo à cultura deve ser real, não apenas uma imagem comercializada. A responsabilidade é, sim, muito grande dos que chegam ao poder e maior ainda de quem tem condições de esclarecer os que não percebem as entrelinhas. Só criando cidadãos conscientes mudaremos o destino do país. Sei que tudo isso já é muito batido, no entanto causa tristeza concluir que palavras escritas no início do século passado ainda retratam a realidade brasileira, como as de Augusto: ´Digam o que quiserem, a República, entre nós, desmentiu todos os sonhos biferais e cuspiu nos ensinamentos de seus idealizadores, como Silva Jardim.´ Também não desejo chegar a um pessimismo como o de Euclides, a ponto de considerar que ´a nossa raça (?) está liquidada. Deu no que podia dar: a escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está - a bandalheira sistematizada.´ Quero, sim, acreditar que o povo brasileiro é composto, em sua maioria, por pessoas que lutam e que só necessitam de melhores oportunidades para mostrar o grande potencial criativo que trazem adormecido... Que é um povo realmente diferente dos europeus ou de qualquer outro povo estrangeiro, pois o brasileiro é a soma de culturas diversas, é muito mais alegre e descontraído, talvez até menos ambicioso e não se pode ignorar suas características peculiares, tentando impingir-lhe modelos de projetos mal copiados do exterior, que só fazem destacar-lhe os problemas, em vez de valorizar-lhe as qualidades. Por este motivo é que todo cidadão consciente deve dar a sua parcela de dedicação, da maneira que lhe for possível, à disseminação da cultura, da educação e à luta pelo direito que todo ser humano tem de satisfazer dignamente as suas necessidades básicas, de não ser obrigado a viver como um animal que se atira sobre a presa inocente, movido pelo instinto de sobrevivência. Não se esqueçam, caros leitores, honestos trabalhadores: cada um de nós está, atualmente, muito mais para caça do que para caçador!
BIBLIOGRAFIA:
ANJOS, Augusto. Obra copmpleta. Organização, fixação do texto e notas Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S/A, 1996; CUNHA, Euclides da. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. v.I. Digitalizado e revisado por Juan Carlos Pires de Andrade, in http://www.euclidesite.com.br ; CUNHA, Euclides. Correspondência. Org. Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti.
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