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Euclides e o berço de Os Sertões
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Euclides, Augusto dos Anjos e as Mazelas da República
2004-01-26 10:38:28

 

Maria Olívia Garcia R.Arruda
21/01/2004
´Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais que receber
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe corroer
Ê ô ô vida de gado
Povo marcado ê. Povo feliz
Ê ô ô vida de gado...´
                                                             
 
(Admirável Gado Novo - Zé Ramalho)


      Após alguns dias de merecidas férias rodando por aí
afora, voltei  mais consciente ainda da enorme diferença que
há entre nossas regiões. Não se trata, porém, apenas da
pluralidade cultural, de que tanto se fala ultimamente, mas
do atraso e da miséria que aumentam assustadoramente neste
país. Lembrando a data natalícia de Euclides da Cunha, dia 20
p.p., gostaria de refletir um pouco a respeito de algumas
denúncias que ele e outro grande escritor fizeram na época e
que servem também para os dias de hoje. Não que eu entenda de
política, mas confio na visão daqueles que souberam detectar
nossas mazelas logo no início.
No período de transição do Império para a República,
homens como Euclides e Augusto dos Anjos  revelaram
claramente onde se encontravam as raízes dos males que
degeneraram o sistema. Euclides denunciou a opressão, os
desmandos e se decepcionou com a República, que fora um ideal
pelo qual lutara em sua juventude e em que depositara suas
esperanças de um país mais justo e civilizado. Comprovam-no
seus artigos e sua correspondência.
Augusto vai um pouco além: com uma poesia cheia de símbolos,
que confunde o leitor,  mas com uma prosa direta e agressiva,
embora empolada,  tenta mostrar a ganância e a
superficialidade de uma classe dominante que se preocupava
apenas com coisas fúteis e efêmeras, soterrando os valores
mais nobres do ser humano. A intenção de Augusto - que torna
sua obra atualíssima -  parece ser mesmo alertar as pessoas
para a brevidade daquilo que elas elegem como objetivo de
vida, numa tentativa de despertar atitudes de regeneração e
restauração de valores essenciais.
Muitos falaram sobre os dois escritores, bem poucos
procuraram mergulhar em seus textos para compreender-lhes a
mensagem profunda. Considero-os, porém, os grandes humanistas
da época, talvez até por terem sido vítimas do próprio
sistema. 
Augusto e Euclides  possuem semelhanças incríveis em suas
biografias: dificuldades para a sobrevivência com a profissão
de escritor, a tristeza de serem obrigados a abraçar
carreiras que se tornavam fatigantes e não estavam de acordo
com suas vocações; a saúde frágil,  a constante insegurança
financeira, que lhes obrigava a freqüentes mudanças  de
residências e, por fim, a morte antecipada. O poeta do ´Eu´,
pela doença - que até hoje se discute se foi pneumonia,
conforme o laudo médico, ou tuberculose -  e Euclides, pela
forma trágica que buscou. Além disso, quando os dois 
conseguiram um emprego seguro, já lhes sobrarava pouco tempo
de vida.  Euclides, como professor no Rio de Janeiro e
Augusto como diretor de um grupo escolar, em Leopoldina,
Minas Gerais. O primeiro faleceu em 1909, como sabemos; o
segundo, em 1914. São tantas as coincidências que tive a
ousadia  de iniciar um estudo comparado desses gênios da
literatura e do pensamento humano. 
          É claro que hoje, neste artigo, esboçarei apenas
algumas idéias de ambos,  que parecem esclarecer um pouco as
razões das sucessivas crises que têm assolado nosso Brasil.
Gostaria de começar lembrando que a Sociologia traça
um conceito de ´Homem´ considerado por Euclides tão utópico
que só poderia ocorrer após um
aperfeiçoamento ´excessivamente remoto´ , só atingido quando
houvesse a união de todas as crenças e tradições, quando a
humanidade se tornasse, enfim, uma ´grande família´. É o que
ele diz em ´Homens de Hoje´. As idéias de Augusto não se
diferem muito: em suas Crônicas Paudarquenses, defende que,
num futuro distante, chegaria, enfim, a hora da ´morte das
hierarquias intelectuais´, da queda das barreiras  sociais e,
através da concórdia amorosa, a humanidade atingiria a
perfeição. Ambos defenderam fervorosamente o amor
desinteressado à pátria, atitude que já preconizava também
uma sociedade comandada apenas por interesses individuais, ou
de pequenos grupos. Se analisarmos um pouco a questão,
perceberemos que as civilizações ainda estão muito distantes
de concretizar esse ideal de ´ser´ humano... Neste mundo
extremamente capitalista, mais do que nunca o homem  tem
sido  o lobo do próprio homem.
Euclides deixou trechos bastante interessantes a
respeito do sistema político que então se instalava, como a
definição do senador Francisco Otaviano, que via a política
como a  ´... messalina histérica de cujos braços sai-se
corrompido.´  O poeta do ´Eu´, por sua vez, fala-nos das
inutilidades que avançavam, enchiam ´a lotação dos bondes´,
logravam ´na partilha dos lucros sociais as maiores
prebendas´ e promoviam ´sarabandas governamentícias´, ou
seja, enormes estardalhaços nas campanhas políticas. 
            O autor de ´Os sertões´, em sua correspondência
ao cunhado, em 1909, afirma: ´Estamos no período hilariante
dos grandes homens-pulhas (...)  em cada degrau da Secretaria
um salvador das instituições e da Pátria. Da noite para o dia
surgem não sei quantos imortais... ´ E nenhum dos dois pré-
modernistas  conhecia o poder do autor de ´Marimbondos de
Fogo´, nem a força de manipulação da mídia na era da
tecnologia!
´É asfixiante!´ - continua Euclides -´A atmosfera
moral é magnífica para batráquios.´ E Augusto complementa-o,
denunciando que as classes dirigentes empenhavam-se em
movimentar ´a máquina dos trabalhos ávidos, para a colheita
das fortunas.´ Esclareça-me, caro leitor: alguma coisa mudou?
Engana-se quem pensa que só nos tempos atuais é que a
honestidade saiu de moda... A atitude é antiga, vem daquela
virada para o século XX, como percebemos nos textos que nos
deixaram esses consagrados escritores: ´A turba dos
aduladores impropriou para tais lutas os sinceros e os
dignos´, reclamava Euclides. O caráter, então, apresentava-se
como um ´candidato à ruína´, conforme Augusto dos Anjos, e
o ´homem de bem´ tornara-se motivo de zombaria, ´uma figura
de manicômio´... E hoje? O quanto se reconhece o valor de um
trabalhador honesto? O que lhe sobra após uma vida toda
dedicada ao serviço à comunidade?
Mas a República seguiu em frente, com a fila
de ´cavadores´ de postos públicos engrossando cada vez mais,
abrindo espaços sempre maiores para os que conseguiam dar um
jeitinho em tudo... E resultou no que conhecemos hoje: um
país de imensas possibilidades desperdiçadas, pois a maioria
da população não lê, não pensa, não escreve - como já dizia
Euclides naquela época - e não  luta por uma efetiva mudança
no sistema.
Mas a miséria provocou a construção gradual e
silenciosa de um universo paralelo, em que as pessoas vão
trocando a ameaça de desemprego e da fome pela venda de
drogas, pela prostituição e pela violência - um submundo
baseado na lei do mais forte, que tem  acuado cada vez mais
os ´homens de bem´ e invadido rapidamente a nossa realidade.
Que ninguém se julgue livre do risco de ser a próxima vítima!
Que ninguém pense em soluções enquanto uma parcela da
população continuar acomodada, indiferente, ignorando a
situação desses milhões de brasileiros marginalizados, que
não enxergam outras opções!
Nem momentaneamente, nem em curto prazo virá uma
solução satisfatória...  O mal é antigo, arraigado fortemente
em nossas instituições. ´Destruir no organismo social o
tóxico lentamente infiltrado é aplicar os antídotos violentos
dos casos desesperados´, avisa Euclides. Precisamos de ações
efetivas, de menos discursos construídos ao gosto do ouvinte
e de mais atitudes precisas, geradoras de resultados
animadores. Que se diminuam gastos com propagandas que não
correspondem à realidade de nossa vida política... O
incentivo à cultura deve ser real, não apenas uma imagem
comercializada. A responsabilidade é, sim, muito grande dos
que chegam ao poder e maior ainda de quem tem condições de
esclarecer os que não percebem as entrelinhas. Só criando
cidadãos conscientes mudaremos o destino do país.
Sei que tudo isso já é muito batido, no entanto causa
tristeza concluir que palavras escritas no início do século
passado ainda retratam a realidade brasileira, como as de
Augusto: ´Digam o que quiserem, a República, entre nós,
desmentiu todos os sonhos  biferais e cuspiu nos ensinamentos
de seus idealizadores, como Silva Jardim.´
Também não desejo chegar a um pessimismo como o de
Euclides, a ponto de considerar que ´a nossa raça (?) está
liquidada. Deu no que podia dar:  a escravidão, alguns atos
de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o
que aí está - a bandalheira sistematizada.´
Quero, sim, acreditar que o povo brasileiro é
composto, em sua maioria, por pessoas que lutam e que só
necessitam de melhores oportunidades para mostrar o grande
potencial criativo que trazem adormecido... Que é um povo
realmente diferente dos europeus ou de qualquer outro povo
estrangeiro, pois o brasileiro é a soma de culturas diversas,
é muito mais alegre e descontraído, talvez até menos
ambicioso e não se pode ignorar suas características
peculiares, tentando impingir-lhe modelos de projetos mal
copiados do exterior, que só fazem destacar-lhe os problemas,
em vez de valorizar-lhe as qualidades.
          Por este motivo é que todo cidadão consciente deve
dar a sua parcela de dedicação, da maneira que lhe for
possível, à disseminação da cultura, da educação e à luta
pelo direito que todo ser humano tem de satisfazer dignamente
as suas necessidades básicas, de não ser obrigado a viver
como um animal que se atira sobre a presa inocente, movido
pelo instinto de sobrevivência. 
Não se esqueçam, caros leitores, honestos
trabalhadores: cada um de nós está, atualmente, muito mais
para caça do que para caçador!

BIBLIOGRAFIA:

ANJOS, Augusto. Obra copmpleta. Organização, fixação do texto
e notas Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S/A, 1996;
CUNHA, Euclides da. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1995. v.I. Digitalizado e revisado por Juan Carlos
Pires de Andrade, in http://www.euclidesite.com.br ;
CUNHA, Euclides. Correspondência. Org. Walnice Nogueira
Galvão e Oswaldo Galotti. 

 
Maria Olivia Garcia R Arruda
 
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