Caro amigo Álvaro de Oliveira Neto, Diretor da Casa de Cultura Euclides da Cunha, demais autoridades presentes, companheiros de estudos euclidianos, maratonistas da 89a Semana Eculidiana, minhas senhoras e meus senhores, sinto-me particularmente grato a Alvinho pelo convite feito para aqui, nesta solenidade, nomeada de conferência oficial, falar sobre alguns aspectos da vida profissional do engenheiro Euclides da Cunha, tema desta 89a Semana Euclidiana, e da vida profissional do também engenheiro Teodoro Sampaio, homenageado deste ano.
Neste momento solene, não posso deixar de lembrar que esta 89a Semana Euclidiana está definitivamente marcada pelo desaparecimento do mais zeloso e entusiasmado dos euclidianos, o Dr. Oswaldo Galotti, louvado pela grande generosidade que fez dele exemplo de vida para todos nós que aqui prosseguimos a nossa jornada. Conheci o Dr. Galotti durante a Semana Euclidiana de 1992, apresentado a ele pela querida Helena, então diretora da Casa de Cultura Euclides da Cunha. A partir daí, tive abertas as portas do seu acervo particular e isto foi de grande valia para as minhas pesquisas.
A ele dedico o trabalho que apresentarei. Posso afirmar que a escolha do homenageado tornou o convite ainda mais atraente, ao possibilitar a oportunidade de falar nessa sessão sobre Euclides da Cunha, personagem das pesquisas que desenvolvi ao longo dos últimos anos e Teodoro Sampaio, que é o centro das minhas pesquisas atuais.
Quando das pesquisas realizadas para a elaboração da minha tese de doutoramento, que foi recém lançada pela Editora HUCITEC com o título de Ciência e Arte: Euclides da Cunha e as Ciências Naturais, dediquei uma parte do trabalho ao esclarecimento das ligações entre Teodoro Sampaio e Euclides da Cunha, que se mostraram ainda mais ricas que as referências à influência exercida pelo engenheiro baiano sobre as leituras científicas do autor de Os sertões feitas por autores como Capistrano de Abreu (1917/1977), Gilberto Freyre (1944), Sylvio Rabello (1946/1966), Aroldo de Azevedo (1950), Olimpio de Souza Andrade (1960), Nelson Werneck Sodré (1966) e pelo querido professor José Calasans (manuscrito sem data), recentemente falecido.
Antes de apresentar estas ligações, e reconhecendo que estaremos tratando aqui de dois personagens sobre os quais o conhecimento público atual encontra-se em patamares bastantes diferenciados, notadamente em se tratando deste público aqui presente em São José do Rio Pardo, meca do euclidianismo, faz-se necessário que inicialmente seja feita uma apresentação biográfica de Teodoro Sampaio, acreditando que os que a ouvirem saberão estabelecer as semelhanças e diferenças porventura existentes na vida pessoal e profissional dos dois engenheiros.
Quem, medianamente informado, de alguma maneira toma conhecimento das questões relacionadas à ocupação de terras que se desenrolam na região do Pontal do Paranapanema, no oeste paulista, provavelmente sabe da existência do município de Teodoro Sampaio. Se for um paulista, ou alguém que conheça a capital daquele Estado, este cidadão hipotético lembrará tratar-se do mesmo nome dado a uma das principais avenidas que corta o bairro de Pinheiros, mas dificilmente associará esta "coincidência" à atuação do engenheiro baiano que, durante os anos em que viveu e trabalhou em São Paulo (1886 - 1903) participou, dentre outras coisas, da fundação da Escola Politécnica e da criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, dirigiu os trabalhos de abastecimento e saneamento do Estado e, antes destes fatos, na condição de "primeiro-ajudante" do geólogo Orville Derby (diretor da Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo) foi responsável pela primeira expedição de exploração dos rios Itapetininga e Paranapanema.
Se o cidadão hipotético for baiano, lembrará da existência de um município Teodoro Sampaio, no Recôncavo Baiano, além de ruas com o mesmo nome em cidades importantes. Se a curiosidade o levar a uma rápida consulta ao livro dos códigos de endereçamento postal editado pela Empresa de Correios e Telégrafos encontrará o nome de Teodoro Sampaio em escola, túnel, ruas e travessas de cinco bairros da cidade de Salvador e ainda em ruas de cidades como Feira de Santana, Curitiba, Londrina, Rio de Janeiro e Santos, apenas para citar algumas. Certamente, no entanto, nenhuma relação fará entre estas "coincidências" e o filho de uma mãe escrava e um padre, que nascido em 7 de janeiro de 1855, sob o teto de uma capela no engenho Canabrava, no então Recôncavo de Santo Amaro, dali sairia aos nove anos, levado pelo pai, para estudar e se formar engenheiro em 1877, pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, vindo posteriormente a comprar as cartas de alforria de pelo menos dois dos seus irmãos, e intermediaría a libertação de um terceiro, que viviam na condição de escravos nas plantações de cana-de-açúcar da terra onde nasceram.
Teodoro Sampaio faleceu na Ilha de Paquetá - RJ, no dia 15 de outubro de 1937, aos 82 anos. Construindo uma trajetória profissional e intelectual que foi a grande impulsionadoras da sua ascensão social, o filho da escrava Domingas da Paixão e do Padre Manoel Fernandes Sampaio tornara-se um homem respeitado e querido. As notas nos jornais diários, os discursos proferidos nas instituições que integrara fazem referência à morte de um sábio brasileiro, grande perda nacional. Segundo os que discursaram na Academia Brasileira de Letras por ocasião da sua morte, Teodoro Sampaio era um "homem de letras" e, "além disto, cientista emérito, entre os maiores engenheiros do país, insigne tupinólogo, historiador dos mais eminentes".
Corria o ano de 1879, quando, por iniciativa do Conselheiro Cansanção Sinimbu, foi concretizada a organização da "Comissão Hidráulica", com a finalidade de realizar o estudo dos portos e navegação interior do País, sob a direção do engenheiro americano, Mr. William. Milnor Roberts e este fato viria a ser de grande relevância para a vida profissional de Teodoro Sampaio. O Senador Viriato de Medeiros convidou o jovem engenheiro para juntar-se ao grande contigente de técnicos, americanos e brasileiros, que deveria executar os trabalhos. No dia marcado para a apresentação, os técnicos tiveram a oportunidade de ouvir as palavras do Ministro, explicando as razões de governo que levaram à criação da Comissão. No dia seguinte, o Diário Oficial publicava a relação dos engenheiros nomeados e apenas um nome dos que assistiram à apresentação estava ausente: o do engenheiro Teodoro Sampaio. O motivo, conforme depoimento do próprio Teodoro Sampaio, estav relacionado ao fato de ser ele o único negro daquela luzidia comitiva (Sampaio, 1936), o que levou um "zeloso" Oficial de Gabinete do Ministro, a quem o fato parecia "chocante", a suprimir o seu nome como forma de evitar "constragimentos" aos técnicos americanos, que, ao seu juízo, não deveriam apreciar a companhia de um homem de cor. A pronta intervenção do Senador Viriato de Medeiros faria desaparecer a objeção do Oficial de Gabinete e Teodoro Sampaio foi nomeado Engenheiro de 2a classe e, nesta condição, trabalhou por dois anos na Comissão.
Aos técnicos já nomeados para a Comissão Hidráulica se juntaria, na forma de adido para a realização de trabalhos específicos da sua área de atuação, o então Diretor da Sessão de Mineralogia e Geologia do Museu Imperial (atual Museu Nacional), Orville Derby. Teodoro Sampaio já conhecia o geólogo, pois trabalhara como encarregado dos serviços gráficos do Museu quando este ali chegara, após a extinção da Comissão Geológica do Império em 1877. Companheiros no Museu Imperial, companheiros e amigos na Comissão Hidráulica, Teodoro Sampaio admitia que "boa parte do sucesso da minha carreira, se algum sucesso tive, devo-o a ele pelo seu conselho amigo pela interferência sempre oportuna. Devo-lhe muito do que sei a aprendi no grande livro da Natureza, cujas folhas ele me ensinou a volver com amor e confiança".
Durante os seis meses de viagem d Comissão Hidráulica, Teodoro Sampaio utilizou pelo menos quatro cadernetas de anotações nas quais coabitam as informações obre providências para o bom andamento da Comissão, os dados técnicos obtidos e as impressões do viajante diante de um quadro desconhecido (o que incluía topografia, clima, geologia, agricultura, mineração e também população, cidades e vilas), além de tabelas e ilustrações traçadas por mãos peritas. Estas cadernetas cartamente foram de grande utilidade para os trabalhos de preparação de plantas, mapas e relatórios. O próprio Milnor Roberts resolveu incluir no relatório da Comissão um capítulo especial, elaborado por Teodoro Sampaio, contendo os resultados das explorações realizadas desde a cidade de Carinhanha, no rio São Francisco, até a cidade de São Felix no recôncavo baiano. As anotações do engenheiro foram também a base do trabalho O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina, publicado pela primeira vez na forma de livro no ano de 1906.
Os "constrangimentos" preconizados pelo "zeloso" oficial de gabinete não se confirmaram. Pelo menos este foi o juízo formado pelo próprio Teodoro Sampaio: "a nuvem do preconceito, que se procurou insinuar à conta dos americanos, sissipou-se por completo e eu tive a honra de lhes conquistar a estima e amizade que me foram tão benéficas no correr dos anos e tanto me serviram na profissão que adotei". No entanto, aquele que foi considerado por Rudolf Wiezer, ajudante de Milnor Roberts, "the beste brazilian engineer in Mister Robert´s staff" continuaria tendo um tratamento diferenciado em relação aos demais integrantes da Comissão, que tiveram imediatamente garantidos empregos e promoções. Decorridos seis meses, a única proposta de trabalho seria recusada por ser considerada um rebaixamento: o último emprego de engenheiro numa estrada de ferro em Pernambuco. Apenas no ano de 1882 Teodoro Sampaio voltaria a trabalhar na sua profissão: ocupando o cargo de engenheiro de primeira classe, foi trabalhar nas obras do prolongamento da Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco e aí esteve encarregado de calcular e projetar as pontes metálicas desta via férrea. Entre 1883 e 1886, a convite do engenheiro Antônio Plácido Peixoto Amarante, que havia trabalhado como 1o Engenheiro da Comissão Hidraúlica e estava então dirigindo a Comissão de Desobstrução do rio S. Francisco, Teodoro Sampaio ocupou o cargo de 1o Engenheiro desta Comissão. O trabalho seria uma espécie de continuidade do que havia sido feito pela Comissão Hidraúlica sendo o resultado mais notável dessa nova fase a desobstrução da cachoeira do Sobradinho, o maior obstáculo da navegação do rio na sua seção superior, após o que se estabeleceu a navegação a vapor entre a cidade de Juazeiro - BA e Pirapora - MG.
O período em que trabalhou pelo interior da Bahia (1878-1886) transformou-se em importante cabedal para o conhecimento de Teodoro Sampaio sobre a natureza deste estado e resultou, inclusive, num elemento fundamental das suas ligações com Euclides da Cunha e no prestígio que viria a desfrutar entre os mais conceituados geólogos que trabalhava no Brasil desta época. Em 1886, Teodoro Sampaio foi convidado por Orville Derby para ocupar o cargo de 1o Engenheiro da Comissão Geográfica e Geológica de S. Paulo, que seria criada naquele ano e teria o geólogo com o seu primeiro diretor. Este convite resultaria na fixação de Teodoro Sampaio no estado de São Paulo por quase 20 anos. Em São Paulo ele consolidaria a sua carreira profissional e se veria envolvido diretamente nos sucessos que se desenvolviam naquele período particularmente importante de crescimento do estado, capitaneado pela ascendente cafeicultura.
Na Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo Teodoro Sampaio trabalhou durante cerca de quatro anos e dali sairia para exercer o cargo de Engenheiro Chefe da Companhia Cantareira. Em 1892, a convite do então Secretário de Estado dos Negócios do Interior, Vicente de Carvalho, assumiu o cargo de Engenheiro Sanitário, incumbido de realizar as obras de saneamento da cidade, que ele mesmo havia projetado por iniciativa do Governo Provisório, depois da Proclamação da República em 1889. A partir de 1898 até o seu pedido de demissão em 1903, foi nomeado Engenheiro Chefe da Repartição de Águas e Esgotos de São Paulo.
Euclides da Cunha e Teodoro Sampaio se conheceram em São Paulo, no início da década de 90 do século XIX, numa das passagens do primeiro pela cidade, enquanto Teodoro integrava a primeira equipe da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo. Segundo Teodoro Sampaio uma transação relacionada à necessidade de instalação de Euclides teria se constituído no elemento que os aproximara.
Esta amizade se firmaria a partir de 1895, quando Euclides da Cunha faz a opção definitiva de deixar a farda e fixa-se em São Paulo, onde passa a trabalhar como engenheiro civil da Superintendência de Obras Públicas do Estado. As atividades desenvolvidas incluíam orçamentos, fiscalizações, projetos e estudos de áreas, além da execução de obras pelo interior do estado. Gama Rodrigues (1956), diante de levantamento feito na documentação dos trabalhos realizados por Euclides da Cunha naquela Superintendência, registra a predominância de serviços de pontes, que corresponderia a uma especialização descoberta ou emprestada ao engenheiro pela repartição, sendo a sua obra mais conhecida a ponte metálica aqui da cidade de São José do Rio Pardo.
As atividades do engenheiro eram compatíveis com o processo de crescimento do Estado de São Paulo. capitaneado pela ascendente cafeicultura. No entanto Euclides da Cunha dizia viver "(...) em perene conflito com a minha engenharia obscura, cujas exigências me afastam de outras ocupações mais atraentes, às quais somente dedico um ou outro quarto de hora de folga nos meus dias fatigantes de operário". Com exceção do período em que permaneceu residindo em São José do Rio Pardo (1898-1901), as viagens pelo interior do estado eram freqüentes, o que fazia com que a sua profissão fosse descrita como "a minha engenharia rude, engenharia andante, romanesca e estéril, levando-me em constantes viagens através de dilatado distrito", o que o levaria a habituar-se "(...) a estudar nos trens de ferro, troles e até a cavalo!".
Apesar das queixas, encontrava Euclides da Cunha condições para os estudos, e Olímpio de Souza Andrade vê, ainda no início da sua atividade em terras paulistas, que autores caros ao engenheiro, como Kant, Spencer, Descartes e Pascal, vão cedendo espaço para alusões e referências a "autores brasileiros ou que tenham escrito sobre o Brasil. O homem mudava de caminho e seus encontros seriam outros: os antigos cronistas, os viajantes estrangeiros, os autores de monografias sobre a terra e a gente do Brasil, as obras de Varnhagen, Morize, Caminhoá, Sílvio Romero, Capistrano de Abreu, Teodoro Sampaio, Orville Derby, Saint-Hilaire, Liais...".
Alguns dos novos autores estudados por Euclides da Cunha estavam também trabalhando no estado de São Paulo, onde, a partir das duas últimas décadas do século XIX, estava em curso um quadro de ampliação dos espaços de efetivação das atividades científicas, sendo que algumas instituições haviam sido implantadas na província ou já no estado de São Paulo, das quais são exemplos: a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886), o Instituto Agronômico de Campinas (1887), o Instituto Bacteriológico de São Paulo (1892), a Escola Politécnica de São Paulo (1893), o Museu Paulista (1894), o Instituto Butantan (1901). Para fazer funcionar estas instituições era necessário contratar profissionais, e, neste período, para São Paulo vieram geólogos, como Orville Derby, Francisco de Paula Oliveira, Gonzaga de Campos e Eugênio Hussak; químicos, como W. F. Dafert; engenheiros, como Teodoro Sampaio; botânicos, como Alberto Loefgren; zoólogos, como Hermann von Ihering; médicos, como Adolfo Lutz e Vital Brasil, etc.
Em março de 1897 o nome de Euclides da Cunha foi proposto para sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Os autores da proposta foram Alberto Loefgren, Orville Derby e Teodoro Sampaio, fundadores do Instituto.
Segundo Teodoro Sampaio, o exercício da profissão de engenheiro civil, numa vida errante pelo interior paulista, levava a longos desaparecimentos de Euclides da Cunha e era expressa pelo mesmo através do "ar de tédio, a trair-lhe uma repugnância invencível". Mas esta atitude seria modificada com as notícias da Guerra de Canudos, que passou a ser assunto freqüente das suas conversas, antes e depois da passagem de Euclides pelos sertões baianos.
Um mapa de autoria de Teodoro Sampaio, Trecho da Carta da Bahia, quando ainda inédito, foi fornecido a Euclides da Cunha quando, em 1897, este escreveu o seu primeiro artigo ("A nossa Vendéia") sobre a Guerra de Canudos. A autorização para que Euclides da Cunha fizesse a cópia do mapa foi dada com a condição de que não houvesse divulgação do mesmo, o que não aconteceu e gerou uma convocação de Teodoro Sampaio para uma conferência com o governado de São Paulo, Campos Sales. Por se tratar de um mapa de uma região ainda pouco conhecida, onde o exército já sofrera sucessivas derrotas, o governador fez mais de uma cópia e as enviou para o Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro.
Esta ocorrência foi tornada pública no discurso em que Teodoro Sampaio homenageia Euclides da Cunha na passagem do décimo aniversário de sua morte, mas existe um registro mais significativo do incidente no diário do engenheiro baiano, ainda inédito, que se encontra no IGH-BA. No diário, Teodoro Sampaio mostra-se irritado com o acontecido, que lhe poderia trazer problemas para uma negociação em curso visando a impressão do mapa. Também não deve ser esquecido que o próprio Teodoro Sampaio dizia encontrar-se em campo político oposto a Euclides da Cunha. Teodoro Sampaio era monarquista, considerava a monarquia inocente nas acusações de envolvimento na Guerra de Canudos e adjetivava de "celerados energúmenos" os que assassinaram Gentil de Castro, durante os eventos que se seguiram à derrota da Expedição Moreira César, o que poderia implicar em que o engenheiro baiano não se sentia à vontade para ceder informações, através do mapa, para utilização na campanha militar. Euclides da Cunha forneceu uma cópia do mapa ao IHG-SP no dia 20 de março de 1897, uma semana após o artigo "A nossa Vendéia" e um dia após a conferência de Teodoro Sampaio com Campos Sales.
Euclides da Cunha pediu ainda a Teodoro Sampaio apontamentos históricos, e este, "(...) como os possuía, enfeixados em cadernos de notas, de bom grado lhes fornecia (...)". Este caderno de notas a que se refere Teodoro Sampaio continha os seus "Apontamentos para a história da geografia brasílica", que durante algum tempo se imaginou serem resultantes do trabalho conjunto dos dois, versão que seria favorecida pelo próprio Teodoro que se refere ao mesmo como um "manuscrito da lavra de nós ambos" e agravada pela não devolução do caderno ao seu dono, ficando de posse de Euclides da Cunha e, finalmente, sendo doado ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia por Arnaldo Pimenta da Cunha, após a morte do escritor. Na verdade os "Apontamentos" consistem nas cuidadosas anotações de Teodoro Sampaio para um futuro livro sobre o tema, e que, emprestados a Euclides da Cunha, devem ter servido de base para os estudos históricos do mesmo, que, além de não devolvê-los ao amigo, ainda aproveitou as páginas em branco como rascunho, ou versões preliminares, de trabalhos que iriam depois compor o livro Contrastes e confrontos (1907).
Em São Paulo, Euclides da Cunha, enquanto escrevia o seu livro, encontrou em Teodoro Sampaio um interlocutor para as questões relacionadas à natureza dos sertões baianos, relevo, clima e geologia, que eles repassavam através, principalmente, dos trabalhos de Orville Derby e Frederic Hartt. Processava assim a revisão nos seus conhecimentos, tentando superar deficiências que ele mesmo anotara em campos como a geologia e a botânica.
No início de 1898 Euclides da Cunha viu-se envolvido com a reconstrução de uma ponte metálica que desabara na cidade de São José do Rio Pardo, fato que ganharia importância na elaboração do seu livro, vez que se fixou nesta cidade por aproximadamente três anos e encontrando ali um ambiente favorável para a continuidade dos seus estudos.
Encarregado das obras de reconstrução da ponte, decidiu desmontar toda a estrutura que ruíra e realizou sondagens no leito do rio para redefinir o local mais adequado para a sua localização. De posse dos dados, elaborou um mapa da área e relocou a ponte a montante da posição anterior, baseando-se na ocorrência ali de rocha gnáissica que servisse como elemento seguro da fundação da obra.
Durante a sua permanência em São José do Rio Pardo, Euclides da Cunha recebeu a visita de Teodoro Sampaio, escolhido perito do governo na questão do desabamento da ponte metálica. Teodoro Sampaio esteve na cidade de São José do Rio Pardo entre os dias 22 e 24 de maio de 1898, conforme registrado no seu diário inédito, mantido no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Considerando-se autores como Sílvio Rabelo e Olímpio de Souza Andrade e o testemunho de Teodoro Sampaio, que mostram um Euclides da Cunha a ler, para os amigos, trechos do seu livro à medida que o ia escrevendo, acredito que isso tenha também ocorrido quando da presença de Teodoro Sampaio em São José do Rio Pardo.
O nome de Teodoro Sampaio aparece apenas três vezes em Os sertões, numa delas encabeçando a lista dos autores do "esboço geológico para o estado da Bahia", o que parece muito pouco para quem teve a sua influência sobre Euclides da Cunha reconhecida por diversos autores. Algumas informações fornecidas por Teodoro Sampaio podem ser identificadas no livro, a exemplo do significado de termos tupis ou a passagem do saque de Januária-MG por jagunços sediados em Carinhanha-BA, acontecimento ocorrido quando a Comissão Milnor Roberts passava na região, e que está registrado no "Diário de viagem da Carinhanha à Bahia pelo engenheiro civil Teodoro Sampaio (1879-1880)" e no livro O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina (1905).
Embora não tenha encontrado, sobre as ciências naturais, trechos de Os sertões que possam ser diretamente comparados com textos de trabalhos de Teodoro Sampaio, parece-me que a contribuição deste para com Euclides da Cunha, evidenciada pelo depoimento do engenheiro baiano, se verifica desde a elaboração do artigo "A nossa Vendéia". Além do fornecimento de mapas e notas, a maior familiaridade de Teodoro Sampaio com a região deve ter servido como orientação para as leituras de Euclides da Cunha, que não se esquivava de discutir com o amigo à medida em que surgiam os originais das primeiras páginas do seu livro. Gilberto Freyre acrescenta ainda a possibilidade de Teodoro Sampaio ter traduzido, para Euclides da Cunha, trechos mais difíceis da língua inglesa, o que, evidentemente, incluiria os livros e artigos de autores como Charles Frederic Hartt.
Muito se tem escrito sobre o ambiente favorável que Euclides da Cunha encontrou em São José do Rio Pardo, e que teria sido de muita importância para a elaboração de Os sertões. Naquela cidade o escritor encontrou amigos que muito o ajudaram e estimularam durante a produção do livro, destacando-se alguns deles, como Francisco Escobar, que o teria ajudado em pesquisas bibliográficas, providenciado para que não faltassem os livros de que necessitasse, e até mesmo traduzido trechos de latim de livros como a Flora Brasiliensis, que Escobar fora buscar junto à Câmara Municipal de Casa Branca, e do qual traduzira as partes que interessavam ao amigo.
Parece-me importante lembrar que um ambiente favorável e amigos dispostos a colaborar, também foram encontrados na capital paulista. A amizade com Teodoro Sampaio e Orville Derby, dentre outros, garantiu a Euclides da Cunha substancial colaboração nos estudos e até mesmo na redação do livro. É admitido por seus biógrafos, e confirmado pelo seu inventário, que Euclides da Cunha não possuía uma biblioteca das mais amplas, seja devido aos recursos financeiros limitados, proveniente dos seus salários enquanto engenheiro em cargos comissionados, ou porque as constantes mudanças de cidades o impediam de juntar consigo um grande número de livros. Na cidade de São Paulo esta limitação seria relativizada pela solidariedade dos amigos, que eram também autores de trabalhos por ele consultados, e também por que ali o escritor dispunha de acervos como o do Instituto Histórico e Geográfico e até mesmo da Comissão Geográfica e Geológica, onde poderia encontrar parte dos trabalhos de que necessitasse para os seus estudos.
O professor José Calasans anotou, num dos seus muitos esboços de estudos, que "não estaria longe da verdade quem disser que Os sertões é um livro de equipe. Uma obra de muitos colaboradores. Livro que Euclides fez questão de ler para vários amigos". Na mesma perspectiva do historiador baiano, Franklin de Oliveira afirma que "Os sertões é um livro que não só socializa saberes, como sua própria autoria": ele teria sido impossível sem a colaboração direta e indireta de vários amigos e autores, sem que isto implique em "capitis diminutio". No que diz respeito ao conteúdo das ciências naturais, acredito que as afirmativas encontram terreno fértil.
Sendo um livro ímpar na cultura brasileira, O sertões não pode sequer ser confundido com uma descrição da natureza e da luta do interior da Bahia, que poderia ser escrito por qualquer dos seus colaboradores, em qualquer área, mas o esforço de construção do livro envolveu Euclides da Cunha em estudos e leituras que, sem as suas relações com personagens como Teodoro Sampaio, poderiam se tornar um obstáculo da importância igual à que ele julgou ter o exército encontrado diante da natureza sertaneja.
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