Introdução
Linguagem alusiva, reincidência de confrontos, afirmações paradoxais, figuras antitéticas, busca de símiles, luta entre forças contrárias, mescla de gêneros e discursos, interseção da ciência e da arte, tendências e valores universais, criação de retratos de homens-símbolo, antropomorfização da natureza dão peculiaridade à obra principal, Os sertões, de Euclides da Cunha. Rompendo fronteiras entre as diversas esferas do saber humano, o escritor confere ao livro caráter multidisciplinar: autores e textos são incessantemente citados e submetidos à análise, numa recorrência à geologia, história, geografia, sociologia, etnografia, folclore, botânica, zoologia, física, antropologia, química, meteorologia, psiquiatria.
A obra, cientificamente fundamentada, leva Euclides da Cunha a amparar-se num quadro teórico, de cunho determinista, onde busca as luzes necessárias ao esclarecimento e interpretação dos fatos narrados. Contudo, deixando-se conduzir pela eficácia de suas intuições, o autor libera-se do cientificismo alienígena, inapto para explicar a realidade sertaneja e, a partir dela, da própria nação. Abre-se, assim, espaço para uma interpretação de caráter empiriocriticista e faz surgir o multiperspectivismo: ora temos o ponto de vista do ideólogo pessimista, guiando-se pelos fatalismos, preceitos e preconceitos do século XIX, ora do observador crítico, lançando mão de um desfiar de conjeturas e pragmatismos. Conforme a voz narrativa de Os sertões, as conjeturas
“tem o valor único de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questão que duplamente nos interessa, pelo seu traço superior na ciência, e pelo seu significado mais íntimo no envolver o destino de extenso trato do nosso país” (CUNHA, 1985, p.117).
Analisamos Os sertões como obra de arte literária com papel fundador - que transcende as desfigurações históricas, as incorreções de conteúdo, as deficiências de interpretações vinculadas a modelos externos enganosos e faz de seu criador o arauto de uma nova interpretação do Brasil.
Os sertões: uma nova interpretação do Brasil
O episódio histórico de Canudos é o motivador, a fonte de inspiração, a razão inicial da composição da obra. Euclides da Cunha analisa o arraial canudense, num contexto complexo de encadeamento, como cosmo paradigmático do Brasil genuíno, ou seja, como reflexo das contradições inerentes à nossa formação histórica, Canudos é o sintoma do drama maior, um refluxo para o passado; é o resultado da nossa herança sociocultural, do divórcio do poder central e da sociedade periférica; divórcio das áreas desenvolvidas e do Brasil interior tratado como capítulo à parte dos problemas do país. Sob o olhar avaliativo do narrador, o arraial de Canudos é desconhecido e homizio; “tapera miserável, fora de nossos mapas, perdida no deserto, aparecendo, indecifrável, como uma página truncada e sem número de nossas tradições” (CUNHA, 1985, p.374) e o sertanejo é “insulado no país que o não conhece”.
Em Os sertões temos uma síntese peculiar dos traços mais característicos do país, uma análise dos fundamentos da nossa construção e do nosso destino históricos, uma súmula fundamentada no conhecimento, na valorização do homem e da terra e na necessidade de afirmação da consciência nacional, uma avaliação reiteradas sobre o Brasil esquecido e abandonado e tudo que decorre desse esquecimento e abandono. No dizer do narrador, Canudos constitui “afloramentos de lições” e a Euclides coube reproduzi-los literariamente.
[Canudos] poderia ter despertado uma grande curiosidade. A mesma curiosidade do arqueólogo ao deparar as palafitas de uma aldeia lacustre, junto a uma cidade da Suíça...
Entre nós, de modo geral, despertou rancores. Não vimos o traço superior do acontecimento. Aquele afloramento originalíssimo do passado, patenteando todas as falhas da nossa evolução, era um belo ensejo para estudarmo-las, corrigirmo-las ou anularmo-nas. Não entendemos a lição eloqüente (CUNHA, 1985, p.375).
Por intermédio do acontecimento histórico do arraial sertanejo, analisado como um afloramento de lições, Euclides da Cunha mostra analiticamente as mazelas subjacentes da nossa tradição histórica, o descaso maldito diante de questões cruciais, que encontram ressonância em toda esfera nacional. Questões que subsistem nos dias atuais com seu caráter perverso e, há muito, transformadas pelas falsas ideologias, em expressivo tema da agenda política.
No livro vingador, o leitor depara-se com o cenário vivo do sertão, onde a gente sertaneja, embora esquecida, move-se e manifesta-se no seu estoicismo peculiar como agente da história. Conforme pressuposto teórico defendido por Nelson Werneck Sodré (1969, p.2), “entre as manifestações da vida social, nenhuma traduz mais fortemente os seus traços do que as artísticas e, entre elas, as literárias”.
No livro, de caráter essencialmente acusatório, é reincidente a crítica à racionalidade litorânea e às suas pretensões civilizatórias. A Euclides da Cunha coube a glória de colocar em evidência a idéia que ficou registrada na consciência da intelectualidade brasileira: a idéia da divisão da comunidade nacional em duas sociedades antagônicas e dessincronizadas. A primeira é representada pelas áreas urbanas e litoral, representativa do Brasil cosmopolita, de caráter universalista, em constante transformação. É o Brasil favorecido pelo aparecimento de novas formas de produção, pela divisão do trabalho, pelo florescimento de uma classe média reivindicadora e participativa. É o Brasil voltado para o exterior e receptivo às suas influências, aos ideais de progresso e civilização. Esses ideais, conforme a concepção das elites sociais da época, significavam pura e incondicional assimilação de usos, costumes e idéias vigentes na Europa. Estas influências têm sua gênese na ideologia colonialista.
Cerca de quarenta anos depois, Sérgio Buarque de Holanda (2002, p. 34) afirmaria em seu ensaio, Raízes do Brasil: “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”. Cremos que a análise do ensaísta diante da influência externa e dos efeitos da transplantação, sobre o país, dá respaldo e vigor às teses de Euclides da Cunha.
A segunda sociedade concebida por Euclides da Cunha é representativa da “terra ignota” do sertão e sua gente, aquela rude sociedade, incompreendida e olvidada, conforme o dizer acusatório do narrador. Constitui a face real, a face que incomodava e se desejava não só ignorar, mas ocultar, como se ocultasse algo vergonhoso; embora menos expressiva, configura a essência de nossa nacionalidade. Representativo do Brasil genuíno, interior, agrário, colonial, retrógrado, mantém-se distanciado do progresso e bloqueado pelos latifúndios, pelo feudalismo tacanho de natureza perdulária. Formado historicamente a partir do modelo de organização agrária monocultora e escravista, sofria mais intensa e diretamente os frutos coloniais remanescentes: o atraso maior, nossa proverbial indiferença com as cousas desta terra, nossa inércia cômoda.
O capítulo I de Nova fase da luta traz luz às nossas considerações. O narrador refere-se à linha telegráfica recém-instalada nas proximidades de Monte Santo, como um “liame de progresso, porém, por ali, inútil”, pois não atenua “o caráter genuinamente roceiro do arraial”. Assim, quando novos expedicionários, saltando do trem deparam-se com o sertão e sua gente, o leitor percebe a “transição violenta. O narrador assumindo a função de observador e de caixa de ressonância tem, diante de si, “duas sociedades, de todo alheias uma à outra”. A primeira representada pelo “vaqueiro encourado que emerge da caatinga, rompendo entre a “casaria desgraciosa”; a segunda, pelos patrícios do litoral, que o não conhecem:
Discordância absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de telha do interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba deploravelmente a unidade nacional. [As tropas oficiais recém-chegadas] Viam-se em terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra língua... Invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria... O que ia fazer-se era o que haviam feito as tropas anteriores - uma invasão - em território estrangeiro. Tudo aquilo era uma ficção geográfica (CUNHA, 1985, p. 496-7).
A cena é dramática, provocadora de impacto emocional e constitui uma súmula avaliativa da tese defendida pelo escritor: a coexistência de dois brasis antagônicos que torna impossível a construção da unidade nacional.
O ficcionista em Os sertões
Apologista do enlace da ciência e da arte, da vinculação essencial do cientista e do artista, conforme testemunhos deixados em conferências, discursos, artigos, prefácios, cartas, Euclides da Cunha defende a tese de que a ciência sem a arte e a arte sem ciência não se legitimam. Assim, José Veríssimo (1966, p.621) (1966, p.621), escreve que “o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é a tendência mais elevada do pensamento humano”. E, formulando o que seria seu ideal, dezcreve: “eu estou convencido de que a verdadeira impressão artística exige, fundamentalmente, a noção científica do caso que a desperta”.
Teóricos de literatura e da nova história admitem hoje uma íntima associação entre o relato ficcional e o histórico: ambos envolvem a presença de um sujeito, de um ponto de vista, de um preceito, de uma ideologia e o historiador lida com as mesmas problemáticas narrativas dos escritores de ficção. Todo documento é uma versão, uma interpretação do que realmente aconteceu, da história verdadeira, inapreensível em termos de origem. O fato não preexiste à sua dimensão textual, de linguagem, de discurso e, como a arte, é um produto humano, possui um momento de gênese, ganhando significado de fato histórico a partir da interpretação e representação construídas sobre o mundo real. A arte, concebida como manifestação, necessidade e direito universais do homem, constitui a via encontrada por Euclides da Cunha para atingir a quintessência da realidade do episódio de Canudos, tomado como símbolo lingüístico.
A ficção é, incontestavelmente, uma das vertentes da estrutura narrativa da obra analisada, embora a história constitua a linha diretriz, o eixo em torno do qual as narrativas gravitam. O universo fictício que com ela intercruza, de várias formas, tem autonomia e referentes próprios. A literariedade, concebida como essência da literatura, ou propriedade abstrata que faz a singularidade do fato literário e a historicidade, pólo norteador e substancial da história, compartilham estreitamente da instância narrativa.
Na análise de Berthold Zilly (2001, p. 296), autor da tradução de Os sertões para o alemão, a importância do livro deve-se à sua abrangência quase enciclopédica, ao seu caráter de summa, mas, principalmente, pelo seu valor e significado como obra de arte literária, que reúne em suas páginas as três formas básicas de literatura - a epopéia, o drama, a lírica.
No livro de caráter dramático não há personagem principal, um herói central que aja como fio condutor do enredo. Aparecem como protagonistas, Antônio Conselheiro, seu rebanho e a própria natureza animada e transfigurada em agente tático precioso de ofensiva ou defensiva e vista como projeções das ações humanas. O narrador manifesta-se com diversas funções, entre elas, pintor de retratos de homens representativos da coletividade e pintor de paisagens. Assim, Antônio Conselheiro é uma síntese da sociedade sertaneja e a formação tumultuária do sertão baiano explica e delineia o próprio facies geográfico dos sertões do Norte.
Os recursos literários são recorrentes e múltiplos, o discurso essencialmente metafórico é causador de impacto: o sertão sofre “rudeza extrema”, uma intercadência de “dias esbraseados” e “noites frigidíssimas”, agravando todas as angústias dos “martirizados sertanejos”, embora lhes constitua um “imenso lar sem teto”; “as forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície”. Os ventos copiam “o mesmo singular desequilíbrio”: ora “turbilhonando revoltos”, ora desaparecem “esboçando prelúdio entristecedor da seca”. “As plantas mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda”; a terra mítica liga-se ao sertanejo por elos invisíveis e faz dele sua imagem e semelhança: “O martírio do sertanejo é o reflexo de tortura maior, mais ampla”. “Nasce do martírio secular da Terra”.
A flora, “embaralhada em esgalhos”, reflete a agonia da terra, “brutalmente golpeada”; “galhos estorcidos e secos”, “revoltos”, “entrecruzados” refletem a “tortura” da “flora agonizante”; algumas espécies, incapazes de uma defesa individual agem coletivamente, transmudando-se em “plantas sociais”: “intimamente abraçadas” formam “falanges intransponíveis”, aprisionam o inimigo, como armadilha e arrebatam-lhe as armas; os “quipás reptantes” aparecem trançados, com “espinhos dilaceradores” e armam-se em ciladas contra o forasteiro. As “palmatórias-do-inferno”, “diabolicamente eriçadas de espinhos”, com suas flores rutilantes quebram a “tristeza solene” das paisagens”;; arbustos esparsos ou aglomerados protegem-se da seca, “inteiramente soterrados”; a “caatanduva”, vegetação agonizante, doente e informe, exausta lembra um espasmo doloroso, caída sobre seu terrível leito de espinhos”; as “rapsálides serpeantes... flexuosas, como víboras verdes pelos ramos”, fogem do solo bárbaro para a copa da palmeira; “as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu... Não o escondem apenas, amparam-no” (CUNHA, 1985, pp.277-8). Os espessos renques de “xiquexiques”, como falanges intransponíveis e fervilhando espinhos, aprisionam o inimigo; os “mandacurus despidos e tristes” envolvem “colinas nuas”, onde são encontradas “lagoas mortas”, que “denotam o esforço dos filhos do sertão”. “No pino dos verões, um pé de macambira é para o matuto sequioso um copo de água cristalina e pura”; o haxixe das “juremas” fornece “inestimável beberagem, que revigora os caboclos das caminhadas longas”.
“Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados”; as “cunanãs servem de iluminação, dependurando-se pelos galhos como grinaldas fantásticas” (p.281).
Com a chegada da chuva há uma “mutação de apoteose”, e o “o viajante, pasmo, não vê mais o deserto”: o sertão é um paraíso.”Passam-se um, dous, seis meses venturosos, derivados da exuberância da terra...” (p..125-6). Desse modo, a agressividade da flora e a sua luta agônica diante da adversidade do meio não impedem uma transfiguração, uma “mutação de apoteose”. Com a referida chegada da chuva, “o viajante, pasmo, não vê mais o deserto”: “os vales secos fazem-se rios”; “as amarílis atapetam o solo”; “a vegetação recama de flores”; “os mulungos à borda das cacimbas cheias, estadeiam a púrpura das largas flores vermelhas”; as “quixabeiras” cobrem-se de folhas pequeninas e frutos que lembram “contas de ônix”; “as umburanas perfumam os ares”; “os umbuzeiros... irradiantes em círculo... árvores sagradas do sertão... semelham grandes calotas esféricas”; “os icozeiros... ondeiam, móveis, avivando a paisagem”; a “fauna resistente” participa dessa apoteose e exuberância, provocando uma “palpitação de asas”, um “tumultuar de desencontrados vôos”, “enquanto feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeiro... tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga predileta; o sertão transmuda-se em “um vale fértil”, “um pomar vastíssimo sem dono”, “um paraíso”; a natureza “compraz-se em um jogo de antíteses” (Cunha, 1985, pp.125-7).
A descrição de um vegetal, em A terra, permite ao narrador criar um signo indicador ou representativo da barbárie que caracterizou a luta: trata-se dos chamados cabeças-de-frade:
deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes, convergindo-lhes no vértice superior formado por uma flor única, intensamente rubra. Aparecem, de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica (CUNHA, 1985, p.124).
O signo é significativo da degola, prática a que eram submetidos os prisioneiros de guerra canudenses, pela força oficial; confere competência ao texto, tem caráter antecipatório e perspectivante,. Sua finalidade é preparar o leitor para as atrocidades mostradas pela narrativa épica, na terceira parte do livro, por intermédio da luta de forças agônicas no palco vivo da natureza.
No final da segunda parte da obra, o autor toma um episódio histórico e o transfigura em quadro dramático: “em certa manhã de maio, no alto de um contra-forte... apareceu, ladeada de duas outras, figura estranha àqueles lugares. Era um missionário capuchinho” (CUNHA, 1985, p.251). Trata-se da visita de um frade italiano a Canudos, a mando do arcebispo da Bahia, Frei João Evangelista. Euclides tomara conhecimento dessa visita por meio do jornal Correio de Notícia.
O desenrolar do fato lembra um processo fílmico: o narrador onipresente que tudo focaliza, acompanha e identifica no espaço e no tempo, compara a chegada do visitante com um episódio bíblico e clama: “Daniel vai penetrar na furna dos leões”. Cria, assim, a metáfora da bravura e selvageria, que envolve Antônio Conselheiro e seu rebanho. Sob olhar perscrutador o narrador convida o leitor para acompanhar o religioso. No seu dizer irônico, o missionário comovera-se diante do espetáculo, ou seja, diante das infelizes personagens que acabava de encontrar armados até os dentes, na “Tebaida turbulenta”.
Na descrição cênica, o Frei “passa, impassível, por diante da capela”, enveredando-se “logo por um beco sem saída”. A sondagem psicoanalítica das personagens viabiliza a representação dos pensamentos e sentimentos do povoado: “às portas os moradores surpreendidos... ar irrequieto e o olhar ao mesmo tempo indagador e sinistro, denunciando consciências perturbadas e intenções hostis”, observam o visitante. Enquanto faltava ao capuchinho “o tato finíssimo de um apóstolo que, falando em corda bamba na casa de enforcado, espraiou-se em alusões imprudentes”, Antônio Conselheiro dirige aos visitantes “saudação pacífica” (CUNHA, 1985, p.255). A cena gera um clima de suspense, motivado pela maldição do frade sobre Canudos, precisamente no momento em que se encerra a segunda parte do livro, encarregando-se de despertar a curiosidade do leitor e, conseqüentemente, motivá-lo para a leitura do terceiro bloco - A luta:
O missionário, “como outrora os apóstolos às portas das cidades que os repeliam, sacudiu o pó das sandálias” apelando para o veredicto da Justiça Divina...
Atinge o alto da montanha. Pára um momento...
Considera pela última vez o povoado, embaixo...
É invadido de súbita tristeza. Equipara-se “ao Divino Mestre diante de Jerusalém”.
Mas amaldiçoou (CUNHA, 1985, p.255).
Dentre as técnicas de ficcionalização, empregadas no relato desse episódio, são evidentes: a visualização, a presença da maldição intensificando a dramaticidade da cena e criando expectativa quanto à sua possível realização, a perscrutação psicológica dos personagens, entre outras.
A criação de cenas e sumários quadros dramáticos encerram ação, movimento, tragicidade, visualização, sonoridade e, muitas vezes, são mostrados mediante técnicas que lembram as focalizações cinematográficas, favorecendo o narrador no seu papel de pintor de paisagem e criador imagético. Assim, temos a imagem de Canudos: com seu “solo perturbado”, cercado por “uma elipse de montanhas”, dando ao observador a impressão de se achar sobre “platô elevadíssimo” repousando sobre as serras. As roupas dos soldados, rasgadas pela vegetação e os pedacinhos de vestes, arrancados pelos espinhos, deram colorido à caatinga: “dos galhos tortos dos angicos pendiam restos de divisas vermelhas, trapos de azuis e brancos, molambos de calças carmezins ou negras, e pedaços de mantas rubras - como se a ramaria morta desabotoasse toda em flores sanguinolentas (CUNHA, 1985, p.464).
À tarde, o “toque da Ave-Maria”, em “ondulações sonoras”, extinguiam-se em “ecos indistintos”; as “vozes suavíssimas dos sertanejos” e as badaladas do sino repercutiam em “vibrações de alarma”. O narrador, mediante sondagem psíquica de alguns soldados que se distraíam contemplando o “arraial intangível” afirma:
Nada mais.Em torno o debucho misterioso de uma paisagem bíblica... colinas desnudas, ermas, sem árvores. Um rio sem águas, tornejando-as, feito uma estrada poenta e longa. Mais longe... a corda ondulante das serras... o quadro desmedido daquele cenário estranho.
Era uma evocação... tinha-se, ali, o que quer que era recordando um recanto da Iduméia, na paragem lendária... do Asfaltite, esterilizada para todo o sempre pelo malsinar fatídico dos profetas...
O arraial... como as cidades do Evangelho - completava a ilusão.
Ao cair da noite de lá ascendia... refluindo nas montanhas longínquas, o toque da Ave-Maria (CUNHA, 1985, p. 436).
Observamos acima a linguagem metafórica, o paralelismo, a busca do símile, a recorrência à história e às passagens bíblicas.
O narrador, que surpreende nos homens e nos fatos a sua substância íntima, denuncia as práticas de violência e destruição dos estrategistas das tropas oficiais e descreve os bombardeios provocados pelo “monstruoso canhão Whitworth”. Num desses bombardeios, o velho sino que chamava, ao descer das tardes, os combatentes para as rezas, ao ser atingido pelos elementos mortíferos do “canhão assassino”, salta pelos ares, “revoluteando, estridulamente badalando, como se ainda vibrasse um alarma” (CUNHA, 1985, p.490).
A cena tem um fim útil: destaca os efeitos devastadores da conflito armado, comove o leitor mediante a dramatização do discurso.
No capítulo III de O homem, cria uma metáfora de efeito estético com o vocábulo “sol poente” e, a partir dela, desenvolve o quadro num espaço físico que vai sendo observado e descrito detalhadamente: colinas circulavam “um vale único”, lembrando um “anfiteatro irregular”. A vegetação florida, cobrindo este relevo, lhe dava aparência de “algum velho jardim em abandono”:
Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta... à sua sombra pelo chão e protegido por ela - braços largamente abertos, face volvida para os céus - um soldado descansava.
...O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses... rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes...
Os cavalos mortos... semelhavam espécimes empalhados, de museus... Entre eles estava o que fora abatido juntamente com o cavaleiro, o alferes Wanderley; quase em pé... com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes... (CUNHA, 1985, pp.112-13).
Além do efeito estético e emotivo, a cena expressa a aridez, a força de ação do clima e do ar, a hostilidade do meio e a brutalidade da luta. A morte do alferes Wanderley e de seu cavalo suscita a imagem representativa da morte de muitos outros soldados, identificados ou não, e de seus respectivos cavalos, que terão destinos semelhantes.
No capítulo II de O homem, o leitor emociona-se com a cena, em que o narrador rememora a “via sacra dos sertões”, de três quilômetros de extensão. A referida cena envolve um relato histórico: Frei Apolônio de Todi, “o maior missionário do Norte”, considerado o Anchieta sertanejo, no final do século XVIII, depara-se com Monte Santo. Este, com seu relevo montanhoso, “semelhante ao calvário de Jerusalém”, é transformado em “templo majestoso de engenharia rude e audaciosa”. Conforme o narrador-voz, Monte Santo é um “prodígio de engenharia rude e audaciosa”, que a população sertaneja completou, dando, assim, destaque à arquitetura natural, com a construção de vinte cinco capelas, “por onde têm passado multidões sem conta, em um século de romarias”. Monte Santo “fez-se o templo prodigioso, monumento erguido pela natureza e pela fé, mais alto que as mais altas catedrais da terra”. Trata-se de uma “vereda branca de sílica”, com milhares de degraus, lembrando “uma escada para o céu”:
Esta ilusão é empolgante ao longe.
Vêem-se capelinhas alvas, que a pontilham a espaços, subindo...alteando-se sempre, erectas sobre despenhadeiros, perdendo-se nas alturas, cada vez menores, diluídas a pouco e pouco no azul puríssimo dos ares, até à última, no alto...
E quem segue pelo caminho das Queimadas, atravessando um esboço de deserto, onde agoniza uma flora de gravetos - arbustos que nos esgalhos revoltos retratam contorções de espasmos... bromélias desabotoando em floração sanguinolenta - avança rápido, ansiando pela paragem que o arrebata (Cunha, 1985, p. 289).
O autor transferiu para o livro a impressão que o santuário sertanejo lhe causara e beneficiado pelo relato histórico, reuniu suas considerações ao nome histórico do citado capuchinho, deu à cena sentido e peculiaridade e, através dela, transmitiu valores. Na apreciação crítica de Nelson Werneck Sodré (1969, pp. 382-3), “a reprodução artística da realidade foi sempre a meta dos grandes escritores... Independente da vontade do homem, a arte nasce da vida e reproduz a vida”.
Euclides, o estilizador de nossa história
Partimos da noção de estilo como produto de vários fatores articulados entre si, como questão de muitas faces, que inclui elementos identificadores de múltiplos aspectos, como: a) percepção e vislumbres futuristas do escritor quanto à realidade abordada; b) inquietações políticas, culturais e ambigüidades que marcaram a época em que viveu o escritor; c) transição dos valores do cânone literário; d) expressão prática que coloca em interação os vários elementos da composição; e) jogo de significado, que faz a obra subsistir à barreira do tempo, que transcende o desgaste dos efeitos sonoros de sua poesia; f) estilo que, no dizer de Helder Godinho (1982), ultrapassa o domínio puramente lingüístico, vai além das barreiras impostas pela tradução e imortaliza o texto, por fazer parte integrante do jogo diferencial significativo que criou a obra; g) estilo que, embora trazendo a marca da individualidade da composição e a condição de espelho do seu criador, as transcende por possuir valores universais; h) estilo que traz as marcas da dignidade e poder.
O multiperspectivismo, o caráter de denúncia que perfaz o texto e a conseqüente simultaneidade entre a postura de ataque, envolvendo representantes da “civilização e progresso” e a atitude de defesa, envolvendo o sertanejo favorecem alguns expressivos traços do estilo de Os sertões. Conforme Walnice Nogueira Galvão (1981, p. 94), em Os sertões [temos] “a voz de um Euclides que se queria a voz dos oprimidos, mas que não consegue deixar de ser um estrategista do Exército”. Logo, a situação, em si, é ambígua e inquietante: o Exército brasileiro, que se postula baluarte das classes oprimidas, pelo Ancien Régime, paradoxalmente, massacra a plebe marginalizada de Canudos, praticando “a luta mais brutal dos nossos tempos”. A própria concepção de verdade, conforme princípios do mobilismo, do relativismo, da mutabilidade e da provisoriedade de tudo que existe, cultivadas por Euclides e espelhadas na sua prova de Lógica, contribuem para a presença dos paradoxos e seus correlatos.
A citada intérprete do “livro vingador”, ao justificar as razões do estilo de Os sertões, aborda algumas questões oportunas para nossas argüições:
Como obter uma comunicação harmoniosa, uma síntese, entre o que foi aprendido nos livros e no convívio urbano, com aqueles estranhos perigosos, tão brasileiros quanto nós? Como compreendê-los... confraternizar com eles, se são tão diferentes de nós, se não aceitam nossa ciência, se não aceitam nossa revolução...? Como podem não admitir que nós estamos certos e eles errados? Por que nos odeiam? É bem verdade que os métodos de contato que estamos usando são exterminadores: aquilo que não conhecemos procuramos destruir. Mais nem isso eles aceitam passivamente; eles, os retardatários, os fanáticos, os inferiores, reagem e contra-atacam. O fascínio pelo heroísmo, que Euclides demonstra não só pelo Exército como também pelos canudenses, é palpável. Como não admirá-los? Como não ficar traumatizado para sempre se foi ali que se descobriu o Brasil, em que pela primeira vez se foi ao encontro da plebe miserável que até hoje constitui a maioria da população brasileira, e uma plebe cujas ações são de natureza incompreensível (Galvão, 1981, p.80).
Por outro lado, Antônio Cândido (2002, p.12) prefaciando o ensaio Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, afirma:
No pensamento latino-americano, a reflexão sobre a realidade social foi marcada, desde Sarmiento, pelo senso dos contrastes e menos dos contrários – apresentados como condições antagônicas em função das quais se ordena a história dos homens e das instituições. ‘Civilização e barbárie’ formam o arcabouço do ‘Facundo’ e, decênios mais tarde, também de ‘Os sertões’.
As afirmações contraditórias, os confrontos e paradoxos, as figuras antitéticas: antítese[1] e oxímoro recorrentes são, essencialmente, geradores de impacto dramático e atendem à proposta da obra, além de contribuir para a sua perenidade, pois vão além da temporalidade e do decurso, sobretudo pela força, significação e sistema de relações que encerram. Para Walnice Nogueira Galvão, a antítese e sua forma mais extremada, o oxímoro refletem a incapacidade de encontrar racionalmente uma síntese entre a diversidade de tendências. Porém, ao permitir que dois opostos sejam aproximados, resolve o dilema literariamente. Dessa forma, na impossibilidade de apresentar uma síntese que satisfaça as diversas tendências, o autor encontra nas figuras antitéticas uma solução para os impasses e desafios.
Os canudenses carregam “bacamartes homicidas com as contas dos rosários”; “o Exército sente na própria força a própria fraqueza”; o soldado “minotauro, impotente e possante”; “a expedição [de Artur Oscar] devia marchar corretíssima. Corretíssima e fragílima”; a vida no sertão “normalizava-se na anormalidade”; o marechal Bittencourt é “impassível dentro da impaciência”; Cansanção “era um parêntese feliz naquele desolamento”; O arraial de Canudos, “intacto - era fragílimo; feito escombros – formidável. Rendia-se para vencer”. Em Bom Jesus da Lapa, podia-se encontrar “imagens e relíquias entre facas e espingardas”.
O oxímoro, “Hércules-Quasímodo”, empregado numa alusão ao sertanejo, faz-se acompanhar de um verdadeiro jogo antitético, que se apresenta sob variadas formas: “paraíso tenebroso”; “sol escuro”; “tumulto sem ruído”; “coro na mudez”; “carga paralisada”; “profecia retrospectiva”; “medo glorioso”; “construtores de ruínas”; “ordem no próprio desvario”; sertões “barbaramente estéreis, maravilhosamente exuberantes”; o deserto é “um paraíso”, um “bacamarte fértil”, um “pomar vastíssimo”; os soldados sentiam “na própria força a própria fraqueza”; a vida dos conselheiristas “normalizara-se na anormalidade”. Em Moreira César “entrechocavam-se “tendências monstruosas e qualidades superiores” , “extrema dedicação e extremo ódio”, “calma soberana e desabrimentos repentinos”, “bravura cavalheiresca na barbaridade revoltante”, “podia receber a camisa-de-força ou a púrpura” e “definir-se como herói ou como facínora”. “Era tenaz, paciente, dedicado e leal, mas, impávido, cruel, vingativo, ambicioso”. Antônio Conselheiro é, ao mesmo tempo, um grande homem, enquanto líder, mas um retrógrado enquanto fruto da miscigenação racial. Tanto podia ir para a história, quanto para o hospício. “Espécie de grande homem pelo avesso”, que “realizava o absurdo de ser útil” e concebia a beleza como “a face tentadora do satã”.
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. “A sua aparência, entretanto... revela o contrário... É desgracioso, desengonçado, torto... reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos... É o homem permanentemente fatigado” (p.179). Porém, basta ocorrência de qualquer incidente para que assuma o “aspecto dominador de guerreiro antigo”, de “um titã acobreado e potente”. O vaqueiro, cuja existência é marcada de “horas felizes e horas cruéis, de abastanças e de misérias”, é caracterizado mediante uma intermitência de contrastes, uma “intercadência impressionadora entre extremas manifestações de força e agilidade e longos intervalos de apatia”, “atravessa a vida entre ciladas”.
Cabe-nos indagar: como poderia o narrador andante, focalizador onipresente, livrar-se dos confrontos paradoxais, se a natureza que aborda “compraz-se em um jogo de antíteses”? Se o sertão vai da “extrema aridez à exuberância extrema”? Se a “morfologia da terra viola as leis gerais dos climas”? Se o “facies geográfico da terra a combate e a natureza reage”? Se o próprio homem, “agente geológico notável, amiúde reage brutalmente sobre a terra”? Se o contexto vivenciado pelo escritor-poeta traz as marcas de situações conflitantes e paradoxais?
Acreditamos que o estilo da obra ajusta-se às brutalidades da natureza, ao homem que nela vive e à complexidade temática. O desejo do escritor de reter o irreversível, o impossível de fisgar, os sinais autênticos de um povo justifica o estilo que, juntamente com a estrutura lingüística, fazem parte da própria mensagem do escritor. Um estilo que Theodoro Sampaio classifica de “calhaus no meio de uma corrente harmoniosa”.
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