A segunda parte de Os sertões - O homem – começa abordando a complexidade da questão da etnologia brasileira, a ação do meio na formação das raças e a formação brasileira do nordeste. O capítulo II nos mostra a gênese do jagunço e do vaqueiro, a atuação dos jesuítas na Bahia, a mestiçagem e a raça forte, que é a sertaneja. Já no III, há um esboço das características físicas e psicológicas do sertanejo - “antes de tudo um forte”-, do jagunço e do gaúcho; considerações sobre a seca, a religião mestiça, a religiosidade sertaneja e as missões atuais. Enfim, no capítulo IV, particularmente nas páginas 132 à 135, que constituem o “corpus” de nosso estudo – é traçado o perfil do Conselheiro, líder do movimento considerado revolucionário-monarquista. Nessa descrição, o beato é um documento vivo de atavismo, um gnóstico bronco, um grande homem pelo avesso. Euclides refaz a genealogia de Antônio, como pré-requisito para essa atitude de “gnóstico bronco”. Conta os primeiros reveses, a separação da mulher, e mostra como se faz um monstro, narra as peregrinações e martírios do Conselheiro, as lendas, as prédicas, os preceitos de montanista, as profecias; descreve-o como um heresiarca do século II em plena idade moderna.
O início desse capítulo mostra que o fato era natural, como um refluxo das mais profundas camadas de nossa estratificação étnica, abrindo um fosso extraordinário e tirando de um passado remoto alguém como Antônio Conselheiro. Compara a atitude de um geólogo, ao analisar formações antigas para esboçar o perfil de uma extinta montanha, com a análise histórica de Antônio Conselheiro, que só teria validade se feita através de um estudo da psicologia da sociedade em que fora gerado. Sozinho, ele seria apenas um neurótico a mais, vítima de uma psicose progressiva.
Porém, em função do meio, esse indivíduo torna-se assustador. Assume uma tendência moral mórbida: É uma diátese, e é uma síntese. As fases comuns da sua vida mostram um resumo das características principais de um mal social gravíssimo. A fatalidade, no entanto, evitou que ele fosse para um hospício, levando-o para a história, através de um choque com a civilização. Ao olhar do historiador, Conselheiro não foi um desequilibrado, mas a personificação de caracteres diferenciais, de todas as crenças ingênuas, desde o fetichismo bárbaro até as aberrações católicas. Vemos, neste contexto, uma crítica à religiosidade, como tendência impulsiva das raças inferiores – este ponto de vista também nos permite observar a ideologia determinista, segundo a qual o nordestino seria uma espécie degenerativa, resultado de um cruzamento de raças. Talvez por isso Euclides o mostre sempre através de antíteses e paradoxos: é um Hércules-Quasímodo, que vai gerar, por conseqüência, um gnóstico bronco.
Esse trecho revela ainda a liberdade existente em Canudos, resultado da indisciplina da vida sertaneja, sem uma rígida vigilância dos costumes morais, pela própria dificuldade do meio e porque, nessa região, fundamental é a sobrevivência. E nessa idéia de “vida desregrada”, há o sinal do positivismo e da educação militar a que Euclides foi submetido durante toda a sua mocidade. Assim, os seguidores do Conselheiro são mostrados como exemplos de um sincretismo religioso, que os torna místicos “ferozes” e “extravagantes”. O próprio beato fora, simultaneamente, elemento ativo e passivo de toda a agitação irrompida naquele arraial. Sua biografia explicaria o fato de ter absorvido essas crenças em seu espírito torturado de reveses. E essas mesmas irracionalidades seriam revertidas, de volta às origens, a partir da consciência delirante do beato. Ou seja, a mesma tática que os colonizadores e a Igreja utilizaram para a dominação dos mais fracos serviram de força para desmoralizar o poder das instituições brasileiras daquela época.
A vida do líder dos jagunços se confunde com as tendências coletivas, daí a importância do estudo paralelo dos tipos que compunham aquela comunidade (o sertanejo, o vaqueiro e o jagunço, que poderíamos entender como o povo conduzido, o “pastor” do rebanho e o que comanda a vida e a morte dos que discordassem deles) e de Conselheiro. Entre eles, tudo é mútuo e convergente. Antônio também é, nesse trecho, o falso apóstolo. Por que “falso”? Parece-nos que a explicação vem a seguir, baseada na concepção de paranóia, estabelecida por Tanzi e Riva, caracterizada por um “recentramento” do mundo no “eu”, provocando uma “regressão atávica”, que indica o retorno da mente ao modo infantil egocêntrico do indivíduo e ao modo selvagem da espécie, portanto na teoria de Tanzi, segundo Luciano Del Pistoia, é importante o fator social e relacional da doença. Daí a sua descrição como documento raro de atavismo.
Aparece, aqui, o pensamento de Tanzi: a constituição mórbida levava o Conselheiro a interpretar caprichosamente as condições objetivas, cujas relações com o mundo exterior foram alteradas por essa interpretação subjetiva, traduzindo-se como uma regressão ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie. A paranóia manifestava-se, nessa concepção, através de delírios que eram tidos como “revelações divinas”. O Conselheiro não chegara à total demência, conforme o texto, por representar em Canudos as aspirações mais altas daquela população miserável e necessitada de um líder messiânico, pois vivia à margem da sociedade, sem condições dignas de vida e exilada do meio cultural.
Porém, se essa análise fosse realizada pela ótica antropológica, o beato seria considerado um indivíduo normal, apenas com um nível mental recuado no tempo, fixando uma fase remota da evolução. Em seguida, o texto nos mostra que um psiquiatra procuraria justificar o caso franco de delírio sistematizado, na fase persecutória ou de grandezas – realmente, Tanzi considera essa primeira fase da doença como a que apresenta megalomanias ou sentimentos de perseguição; enquanto a análise antropológica o classificaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização – um anacronismo palmar.
Por que há essa necessidade de mostrar o Conselheiro pela ótica de duas ciências diferentes? Talvez pelo fato de que a Psiquiatria já pertencesse, naquela época, à área da medicina, ou seja, das Ciências da Natureza, enquanto a Antropologia era estudo das Ciências do Espírito. E pode ser também uma crítica à visão extremamente cientificista da época, que corria o risco de não considerar as propriedades e características da alma humana. A veia humanística de Euclides não permitiria que tal injustiça passasse incólume. E os traços mais simbólicos daquele estranho misticismo mostram-se, então, naturalíssimos para nós, pois já tinham sido, naquela era, aspectos religiosos vulgares, não somente nas raças inferiores, mas afirma o locutor: vimo-los há pouco, de relance, em período angustioso da vida portuguesa.
Há uma comparação entre o fanatismo religioso e a formação do cristianismo. Para compreender Canudos, é mister uma viagem na História, aos primeiros dias da Igreja, quando o gnosticismo universal se erigia como transição obrigatória entre o paganismo e o cristianismo, na época da decadência do Império Romano e da literatura latina, que foi substituída pelos sofistas e letrados tacanhos de Bizâncio. Aqui o texto nos remete à época em que o rei bárbaro Alarico e seu primo Ataulfo, com suas hordas de hunos e godos, invadiram Roma. Os bárbaros impediram a entrada de mantimentos na cidade, reduziram drasticamente a produção de pães, fazendo com que os romanos começassem a morrer de fome ou tentassem sobreviver comendo animais repugnantes. Então os impediu de enterrar os cadáveres fora da cidade, o que provocou o acréscimo da peste, dizimando a população. Quando chegaram à beira do canibalismo, os romanos enviaram uma comissão a Alarico, pedindo paz em condições razoáveis, ou então lutariam até o último sobrevivente. A comparação com Canudos é perfeita. Constantino, imperador romano, transferiu a capital do império para Constantinopla (antiga colônia grega de Bizâncio).
Esse trecho de Os sertões já prepara o leitor para o que virá nos últimos capítulos do livro: a comprovação de que os bárbaros eram os homens do exército, e isso ficará explícito no episódio da degola dos prisioneiros, em que o autor afirma: aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Os soldados haviam voltado à animalidade primitiva. Por que esse estranhamento da igreja e do governo em relação à comunidade de Canudos, se o próprio início do cristianismo apresentava tantas seitas com seus doutores histéricos e exegeses hiperbólicas, que hoje nos forneceriam casos repugnantes de insânia? E ainda assim, mostra o texto que foram esses casos considerados normais.
Uma espécie de desconstrução da tradição do cristianismo é feita nestas linhas que falam das correntes místicas que a doutrina cristã abrangia no início até o século II. A primeira, a dos montanistas da Frígia, iniciada por Montano e duas profetisas que o seguiam, Priscila e Maximila, “porta-vozes” do Espírito Santo, que divulgavam a necessidade de um rigoroso ascetismo, com jejuns e abstinência sexual, para esperar o fim do mundo, que seria próximo, com a segunda vinda de Cristo. Movimento muito semelhante ao atual “Inri Cristo”, no Paraná. Os montanistas foram excomungados, mas na Idade Média o movimento ressurgiu na Europa, com os flagelantes, os taboritas e os alumbrados, todos considerados como reflexos de reações populares a situações de grande tensão econômica e social, assim como foi Canudos. Depois, os adamitas infames. Pois bem, os adamitas eram praticantes de um comunismo ilimitado entre si, andavam nus, para tentar a reintegração ao paraíso e praticavam o amor livre. Segundo Marc-Alain Descamps, os movimentos nudistas foram criados pelo Cristianismo. Mas por que “infames”? Neste adjetivo estão implícitos os reflexos do pensamento medieval, que considerava o corpo humano como algo pecaminoso, que não deveria ser mostrado, do mesmo modo que o amor livre também é algo condenado pela civilização, desde a Idade Média.
A seguir, os ofiólatras, que rendiam cultos à serpente, símbolo de morte e regeneração, de renovação contínua, mediadora entre o mundo físico e o espiritual, embora hoje sua conotação seja com o Mal. O maniqueísmo é a outra seita apontada nesse capítulo; doutrina do persa Manis, disseminada no século III, com adeptos na Índia, China, África, Itália e sul da Espanha, baseada no princípio de criação do universo pela dualidade Mal absoluto/ Bem absoluto, era considerados praticantes de mistérios lúbricos e imundos. (“Imundos” vem corroborar a ideologia do autor a respeito do amor livre.).
Portanto, conforme esse capítulo de Os sertões, a história se repete. Ou seja, Antônio Conselheiro foi, como tantos outros dos primórdios do cristianismo, um gnóstico bronco. É apresentado como um caso de degenerescência intelectual, que só não descambou para a loucura total porque houve um meio que se identificava com ele, ambos rebeldes, retrógrados e incompreendidos, o que evitou o seu isolamento. Esse mesmo meio o fortaleceu, elevando-o a profeta, emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências humanas, inclusive ao sofrimento e à morte, mas sua grande missão era apontar o caminho da salvação aos pecadores. A ironia denuncia, neste trecho, a visão que nivela fanáticos como o Conselheiro e padres, pastores ou qualquer homem que acredite ser representante divino que deve levar as pessoas à salvação.
E o beato jamais extrapolou sua função, pois passou a vida a pregar pelo sertão, seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível, equilibrando a consciência em torno dessa posição média, a linha ideal que Maudsley lamenta não se poder traçar entre o bom senso e a insânia. São as fronteiras oscilantes da loucura, onde são confundi confundidos os heróis e os facínoras, como também os reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, gênios e degenerados. Antônio não ultrapassou esse limite porque a repressão social foi eficaz, no entanto não chegou a recalcá-lo (embora o autor use o termo “recalque”), pois através do misticismo ele deu vazão às pulsões do inconsciente, sublimando-as, deixando-as irromper na revolta, no misticismo comprimido que esmagaria a razão, e o fator sociológico cultivara a psicose mística do indivíduo, limitou-a sem a comprimir. Aqui está presente o discurso de Freud, sobre o funcionamento do aparelho psíquico. Mas o espírito do líder religioso, mesmo com a predisposição à rebeldia franca contra a ordem natural – Que “ordem natural” ? A imposta pela sociedade? Essa expressão denuncia a ideologia fixada pelas instituições da época – cristalizou num ambiente propício de erros e superstições comuns.
O resto desse quarto capítulo mostra a história da família Maciel - da qual o Conselheiro era o último sobrevivente - como exemplo do que normalmente acontece naquelas paragens, porém será abordado em outra ocasião, pois esse estudo é muito extenso.
Concluindo, a partir da leitura do discurso embutido no texto, podemos observar que a enunciação apresenta críticas às instituições da época: à igreja e aos governantes, enquanto detentores da verdade, não permitindo questionamento, nem aceitando a diversidade de opiniões; ao uso de uma violência desnecessária contra um povo miserável; à brutalidade do soldado “civilizado”, que revela em si forças desconhecidas e primitivas; ao Exército em geral, por permitir a utilização de uma violência bárbara, exatamente aquela que se propusera a combater para salvar a República. Há também a questão hermenêutica: conforme o texto, a interpretação da palavra divina como verdade amparou tanto a retórica dos conselheiristas, como a da Igreja (que se colocou como possuidora da única resposta para todo o mistério do desconhecido) e da instituição governamental que a apoiou, a República.
Vemos, como mostra o discurso, que esse problema de interpretação sempre existiu, uma vez que as palavras de Cristo deram margem à formação de várias seitas entre os séculos I e III, que pregavam desde o retorno ao Éden, através do naturismo e do amor livre (provavelmente baseados na interpretação do “Que todos sejam um” e “Amai-vos uns aos outros”), até a necessidade de mortificações, como jejum, abstinência sexual e autoflagelação, chegando ao extremo da castração, como os gauleses praticavam na Frígia.
Em todo o trecho detectamos a presença da ideologia positivista-determinista, que denota o mestiço sertanejo como uma espécie em degeneração, uma sub-raça. Há outros aspectos a pontuar, como a visão do analista social, diferenciando a análise psicológica da antropológica, revelando um amplo conhecimento da história do cristianismo e do gnosticismo. O “gnóstico bronco”, que já foi apontado várias vezes como apenas mais uma questão lingüística, ou seja, a preferência do autor pelas antíteses e paradoxos, revela-se aqui, com uma leitura mais profunda, um termo que resume a crítica severa à atitude das instituições (igreja e governo) àquele genocídio que não se justificava. Não há como aprovar essa atitude arbitrária e insana, daí a conclusão do livro: É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e crimes das nacionalidades.
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(Psicopatologia: realtà di um mito, 2003)
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Como Inglês e Sousa os aponta em O missionário, p. 60.
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