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Euclides e o berço de Os Sertões
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Canudos entre dois Brasis
2001-06-08 00:00:00

 

" O país real, esse é bom, revela os melhores instintos;
mas o país oficial, esse é caricato e burlesco"
( Machado de Assis - "Diário do RJ" - 29-12-1861)

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Em quatro artigos estimulantes publicados no jornal "Folha de São Paulo", entre novembro e dezembro de 1999, o romancista e teatrólogo paraibano Ariano Suassuna aborda o episódio de Canudos, ressaltando sua importância histórica e relacionando-o com o mundo e o Brasil atuais. Faz observações surpreendentes e comparações dignas de reflexões. Vamos sintetizar os quatro artigos para entende-los como um conjunto coerente.

Suassuna afirma que, tanto na época de Canudos, como hoje, éramos governados por uma "insensível elite econômica e política" que , naquela época, representava o Brasil "oficial e mais claro", "falsificado", dos "brancos e poderosos", dona da "cultura" e identificada com São Paulo e o Rio de Janeiro. Era uma elite urbana que representava os ideais positivistas e modernizantes.

A essa elite, contrapunha-se "nosso povo, pobre, negro, índio e mestiço", que representava o Brasil "real e mais escuro", autêntico, vivendo na "barbárie". Era a população rural apegada à religiosidade e aos arcaísmos.

Para a elite, o fenômeno de Canudos representava "um país inimigo que era necessário invadir, assolar e destruir", já que ali organizou-se uma "comunidade pobre mas solidária", uma "sociedade justa, fraterna e despojada", como no passado havia sido o Quilombo de Palmares, e como viria a ser a comunidade dos caboclos da região do Contestado alguns anos após a guerra de Canudos.

O conflito acontecido em Canudos "é o mesmo de hoje, com o Brasil oficial esmagando e sufocando o povo do Brasil real"" pois, " acontecimentos de Canudos continuam a se repetir a cada instante. Em todos os lugares. Em todos os campos de atividade. Diariamente, incessantemente."

Ampliando sua visão para o plano internacional, Suassuna projeta Canudos nos países do Terceiro Mundo, designado-o como "um imenso arraial de Canudos, pobre e injustiçado" pelas potências dominantes do mundo atual. No plano interno, Canudos é identificado com a repressão oficial e policial aos posseiros, invasores, favelados, etc, que para ele "são outros tantos arraiais de Canudos que estão sendo esmagados e humilhados".

À famosa receita dos governantes do Brasil oficial de que "primeiro é preciso fazer o bolo para depois repartí-lo", Suassuna discorda e recomenda simplesmente que o ideal seria o "socialismo de pobre", ou seja, "socializar nem que fosse a pobreza, reduzindo-se o luxo supérfluo para diminuir a distância entre opulentos e miseráveis, numa sociedade mais justa, fraterna e despojada". Dever-se-ia "ampliar e aprofundar a comunidade verdadeira mas local de Canudos em comunidade verdadeira e nacional", já que nela o critério espiritual e humano estava acima da consideração material e econômica, e não o contrário, como apregoa hoje o Neoliberalismo, com sua "modernização falsificadora e falsa", que julga ser tudo mercadoria, podendo ser comprado e vendido. Basta observar o que acontece em nosso país, desde as privatizações até o tráfico de drogas, tudo desprovido de considerações humanitárias. A propaganda consumista pratica uma autêntica "lavagem cerebral" nas novas e velhas gerações, através dos meios de comunicação, a fim de "modernizá-las", isto é, de integrá-las ao mercado consumidor.

Honório Vilanova, um dos últimos sobreviventes da guerra de Canudos, deixou um célebre depoimento em que afirmou: "Canudos era um pedaço de chão bem-aventurado. Não precisava nem mesmo de chuva. Tinha de tudo. (...) Quem tinha roça tratava da roça, na beira do rio. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de reza ia rezar. De tudo se tratava porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo Peregrino. (...) Não havia precisão de roubar em Canudos porque tudo existia em abundância, gado e roçado, provisões não faltavam." (in "Memorial de Vilanova", Macedo, Nertan, Edições O Cruzeiro, RJ, 1964, pags. 67 e 70)

O notável romancista mineiro João Guimarães Rosa, talvez inspirado naquilo que Canudos significou historicamente, sublimou e colocou na boca do famoso personagem Riobaldo Tatarana palavras diferentes daquelas que Suassuna usou em seus artigos, mas que, no fundo, coincidem pelo sentido espiritual e humano: " às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rrezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar"". ( in " Grande Sertão: Veredas", Livraria José Olympio Editora, 15ª edição, RJ, 1982, página 47)

Para ilustrar as idéias de Ariano Suassuna, lembraríamos alguns fatos do Brasil oficial que reforçam-nas: as comemorações pelo "descobrimento" do Brasil e a repressão aos protestos de índios e negros que se concentravam na região de Porto Seguro; o assassinato de um jovem na Praça da República, no centro de São Paulo, a socos e pontapés, por um grupo de dezoito "carecas" nazifascistas; o pedido de fuzilamento do Presidente da República por um deputado governista (exemplo de discórdia dos representantes do Brasil oficial que a elite deixa cair no esquecimento ...); a admiração manifestada por um brigadeiro e ex-ministro da Aeronáutica por Adolf Hitler...

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Ariano Suassuna assinala que Euclides da Cunha pertencia ao Brasil "oficial e mais claro" e que era "adepto positivista, urbano e modernizante", mas que o contato com o Brasil real provocou impacto decisivo em suas idéias políticas e conceitos científicos. "Sua intuição de gênio e seu nobre caráter de homem de bem colocaram-no imediatamente ao lado dele, para honra e glória sua." Em "Os Sertões", Euclides denunciou o crime cometido em Canudos e propôs como solução para o Brasil real a adoção da fórmula de "modernização do Brasil oficial", considerada "falsificadora e falsa" por Suassuna, como é o Neoliberalismo hoje em dia.

Gilberto Freyre, o autor do clássico "Casa Grande e Senzala", anotou que esta foi " a grande mensagem de Euclides: que era preciso unir-se o sertão com o litoral para salvação - e não apenas conveniência - do Brasil ", já que " o movimento do Conselheiro foi principalmente um choque violento de culturas: a do litoral modernizado, urbanizado, europeizado, com a arcaica, pastoril e parada dos sertões. E esse sentido social e amplamente cultural do drama, Euclides percebeu-o lucidamente, embora os preconceitos cientificistas - principalmente o de raça - lhe tivessem perturbado a análise e a interpretação de alguns dos fatos da formação social do Brasil que seus olhos agudos souberam, enxergar, ao procurarem as raízes de Canudos." Acrescenta que (...) a obra-prima de Euclides não temeu ofender o leitor europeu com o seu tropicalismo; ou picá-lo com o seu brasileirismo. Ao contrário: ostentou-o. Exibiu-o quase escandalosamente. Não se fingiu de inglês(...), nem de francês (...) Euclides da Cunha esplende de tropicalismo; arde de brasileirismo". ( in Freyre, Gilberto, " Perfil de Euclides e outros perfis ", Editora Record, 2ª edição, RJ, 1987, pags.21, 35 e 57.)

O peruano Mario Vargas Llosa, autor do romance "A guerra do fim do mundo", reconhece em "Os Sertões" "um manual de latino-americanismo, quer dizer, neste livro se descobre primeiro o que não é a América Latina. A América Latina não é tudo aquilo que nós importávamos. Não é tampouco a Europa, não é a África, nem é a América pré-hispânica ou as comunidades indígenas - e ao mesmo tempo é tudo isso mesclado, convivendo de uma maneira muito áspera e difícil, às vezes violenta. E tudo isso resultou algo que muito poucos livros antes de "Os Sertões" haviam mostrado com tanta inteligência e brilho literário. (in "Conversas com Vargas Llosa", Editora Brasiliense, 1ª edição, SP, 1986, página 39)

Em 1986, Mario Vargas Llosa declarava que via, no episódio de Canudos, a própria tragédia da história da América Latina, ou seja, de uma parte do Terceiro Mundo mencionado por Suassuna. Llosa anotou:" A tragédia da América Latina é que nossos países, em diferentes momentos de nossa história, se viram divididos e lançados em guerras civis, repressões maciças ou mesmo matanças, como a de Canudos, por cegueiras recíprocas parecidas. Talvez esta seja uma das razões porque Canudos tanto me impressionou: ali, isto se pode ver em miniatura, quase como num laboratório. Mas, evidentemente, o fenômeno é geral. Basicamente, é o fenômeno do fanatismo e da intolerância que pesa sobre nossa história. Em alguns casos, eram rebeldes messiânicos; em outros, eram rebeldes utópicos ou socialistas; em outros ainda, lutas entre conservadores e liberais. E se não era a mão da Inglaterra, era a do imperialismo ianque, ou a dos maçons, ou a do diabo. Nossa história está manchada dessa incapacidade de aceitar divergências. " Sobre o papel de Antônio Conselheiro, Vargas Llosa assinala: "O Conselheiro evidentemente não podia resolver o problema material dessas pessoas. Não tinha nenhuma possibilidade de melhorar econômica e socialmente um mundo em situação de pauperismo extremo, trágico, e ainda com a seca, os bandoleiros, sem contar a pobreza da própria terra, tão terrível. Mas creio que o genial do Conselheiro foi que ele converteu tudo o que era defeito em virtude. O que deu aos jagunços foi uma possibilidade de interpretar essa condição desamparada e trágica que eles tinham como algo que podia enobrece-los e dignificá-los. Ou seja: ser extremamente pobre, graças à prédica do Conselheiro, se converteu em ser eleito. Eles eram os mais pobres porque tinham um sinal de eleição. Eram os chamados, porque serem os mais pobres era serem os mais puros, de certa forma.. Era poderem assumir de uma maneira mais íntegra, mais completa, a fé, a crença em Deus. O Conselheiro lhes deu, além disso, um orgulho de seus costumes. Daí o fato de muitos bandidos se oporem à República. Eles iam porque, graças à pregação do Conselheiro, começavam a sentir-se orgulhosos de sua maneira de ser. Havia como que uma reivindicação de uma condição, um orgulho que confere dignidade à gente que não tinha isso, que era realmente a escória da terra. Eles eram diferentes, sim, mas eram os defensores de algo - defendiam a fé. O que eles defendiam era algo que podiam entender. A República eles não podiam entender - como seres primitivos como eles poderiam compreender essas abstrações positivistas ? " (in "Conversas com Vargas Llosa", Editora Brasiliense, 1ª Edição, SP, 1986, págs.39, 45, 47 e 48) .

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O brilhante romancista baiano João Ubaldo Ribeiro, no seu épico romance "Viva o Povo Brasileiro", de 1984, refere-se a Canudos através de um personagem que diz a um representante da elite do Brasil oficial que justificava a repressão contra Canudos: " (...) não vamos eternamente poder abafar a voz dos despossuídos, oprimidos e injustiçados, que são a grande maioria, através de ações militares. Trata-se de estabelecer um regime que, no lugar de procurar solidificar as vantagens de seus sequazes no poder, procure compreender que o país só poderá ser grande na medida em que não mantiver seu povo marginalizado, escravizado, ignorante e faminto. (...) Não está vendo que não pode haver um país decente, um país forte, cujo povo seja de escravos, miseráveis, doentes e famintos ? (...) Não se pode pensar neste país como propriedade de vocês! E, mesmo que assim o considerem no íntimo, por que o tratam como nenhum fazendeiro trata sua fazenda? Por que não lhe dão nada, só querem receber? (...) Pilhadores, piratas, saqueadores, encaram esta terra como uma coisa que não tem nada a ver com vocês, não querem dar nada, só querem tirar! (...) Não são os tabaréus de Canudos que devem ser tidos, como são, na conta de estrangeiros. São vocês, são vocês que são os estrangeiros, os que nunca realmente se conformaram em nascer e viver aqui, são vocês! Vocês pervertem qualquer coisa! A República, um ideal de progresso, prosperidade e justiça, se transformou imediatamente no veículo para vocês ganharem mais dinheiro, mais poder, mais se locupletarem de todas as formas possíveis e imagináveis, ladrões do próprio país, traidores do próprio povo, can... " (in "Viva o Povo Brasileiro", Editora Nova Fronteira, 1ª edição, RJ, 1984, págs. 580/585)

Há três séculos atrás, o padre Antônio Vieira lembrava ao rei de Portugal que o mal do Brasil devia-se a que os funcionários portugueses mandados para cá vinham não para fazer o nosso BEM, como seria de se esperar, mas sim buscar os nossos BENS... Na mesma época, o poeta baiano Gregório de Mattos denunciava : "Vence neste mundo quem mais rapa!"... Vieira precisou explicar-se junto à Inquisição e Gregório foi exilado na África. Fica evidente que a elite nacional herdou a mentalidade e os hábitos de "rapar" os bens do país em seu próprio proveito dos colonizadores portugueses. Fatos mais recentes evidenciam os roubos e saques que os representantes da elite dominante praticam sem temer nenhuma impunidade, como um senador que construiu uma fazenda particular em terras públicas nos arredores de Brasília... Por essa e por outras falcatruas, o mandato desse senador foi cassado. Na maior cidade do país, o próprio prefeito afastado pela Justiça surpreendeu-se com a sua recondução ao cargo, por decisão dessa mesma Justiça, envolvido que estava (?) num escândalo de grandes proporções.

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Não existem, no Brasil atual, aqueles males que o padre Vieira, Gregório de Mattos, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, João Ubaldo Ribeiro, Vargas Llosa e Ariano Suassuna e tantos outros intelectuais sérios denunciaram ?

Ariano Suassuna atualiza a observação machadiana de 139 anos atrás, colocada como epígrafe deste artigo, nos seguintes termos: " Se Machado de Assis fosse vivo, veria que o povo do Brasil real ainda acende nossa esperança, porque continua bom e revelando os melhores instintos; e, se alguma coisa mudou, foi o Brasil oficial, que está ainda mais caricato e burlesco do que no tempo dele."( Folha de São Paulo, 02/05/2000, p.02). Convém lembrar como um fato representativo do Brasil oficial e "moderno", "ainda mais caricato", o vexame dado pela réplica da nau capitânia de Cabral construída na Bahia e que não saiu do lugar, não navegou, "por razões técnicas", apesar dos milhões de reais investidos e de ter um engenheiro naval francês como responsável pela sua construção... No mesmo instante, os índios, negros, pobres e sem-terra, representantes do Brasil real, eram duramente reprimidos pela polícia baiana na região de Porto Seguro, por representarem a "baderna", na ótica oficial... Mais recentemente, ministros, governadores e prefeitos tem sido agredidos verbal e fisicamente por manifestantes que representam o Brasil real que aqueles teimam em ignorar, rotulando-os com os clichês de sempre. Uma das "armas" principais usadas pelos descontentes tem sido ovos... Quem sabe não seria de todo descabido interpretar psicanaliticamente o ovo como um símbolo do desejo inconsciente de renovação da vida . No mês de junho, o país assistiu perplexo pela TV o trágico episódio em que um assaltante manteve várias pessoas como reféns durante horas dentro de um ônibus, no Rio de Janeiro. A polícia carioca concluiu a operação atirando na refém e asfixiando o assaltante que havia sido capturado com vida a caminho do hospital... É impossível não recordar que os jagunços de Canudos foram degolados pelos militares em 1897, enquanto que este caso nos faz lembrar Wladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, asfixiados durante o regime militar, mas dados como suicidas pela versão do Brasil oficial. A ótica repressiva policial, segundo a qual "bandido bom é bandido morto", não considerou relevante investigar que o assaltante era um menino de rua desde os 7 anos de idade e que sobreviveu ao massacre da praça da Candelária em 1993, ou seja, fazia parte do Brasil real. Outra demonstração de "eficiência" foi dada pela Polícia Florestal do Distrito Federal ao prender e maltratar um agricultor desempregado e analfabeto pelo "crime" de ter raspado a casca de uma árvore para fazer um chá para sua esposa que sofre de doença de Chagas. Isso não daria razão a Suassuna de que os "acontecimentos de Canudos continuam a se repetir a cada instante" ?

Considerado do ponto de vista histórico-temporal, o Brasil é um país-criança quando comparado a outros países. Como sociedade, no entanto, somos tão novos quanto velhos ao mesmo tempo; dinâmicos e estáticos; progressistas e reacionários; carnavalescos e necrófilos; íntegros e corruptos; solidários e individualistas; cristãos e sanguinários; caridosos e injustos; comovidos e indiferentes; doces e agressivos, etc. Cremos que o pior identifica-se com o Brasil oficial e o melhor com o Brasil real. Um poeta popular paulista, Francisco Xavier Maciel, fez assim o diagnóstico do presente de nosso país com base na dualidade Brasil oficial-Brasil real:

" O mal de nossa terra está
entre alguém e ninguém:
poucos serem COM,
muitos serem SEM.

Mande a sua ajuda
para o menino Brasil.
Endereço: qualquer rua,
o número é dois mil !

Se não quiser ajudar
então fique na sua !
Depois não vá dizer
que a culpa não é sua !

Se você prestar atenção
de onde vem essa voz,
ela vem bem lá do fundo,
de dentro de todos nós !

Esta criança é um milagre,
Só parece que é um bebê !
Tem mais de quinhentos anos
E se parece com você !

Mas ela tem um segredo
que vem do passado escuro:
ela é nosso presente,
prá ser um novo futuro !



Vamos, menino Brasil !
Vamos tudo mudar !
Vamos recomeçar a luta
prá justiça implantar !

O modelo para seguir
está em nossa memória.
Vamos seguir Canudos
Prá avançar na História !


*******

( Nicola S. Costa é escritor e professor da Rede Municipal de
São Paulo.)

 
Nicola S. Costa
 
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