O arraial de Canudos foi fundado por Antonio Vicente
Mendes Maciel, o Antonio Conselheiro, em 1893, no interior baiano. Passara ele
os dez anos anteriores peregrinando pelo sertão do Ceará e da Bahia, pregando,
construindo igrejas e cemitérios. Canudos, ou Belo Monte, como também ficou
conhecido o local, trazia vestígios de ter sido uma fazenda de criação de gado,
localizada à beira do rio Vaza-Barris. Em Canudos, Antonio Conselheiro criou
um regime econômico-social igualitarista, com a abolição da propriedade privada,
do casamento civil, da moeda republicana e de outras instituições consideradas
civilizadas pela sociedade brasileira da época, que vivia a euforia da República
recém-instalada e ainda comemorava, embora com menor fragor, o fim do regime
escravocrata.
Conselheiro imprimia um governo despido de privilégios;
os bens e as riquezas individuais eram entregues ao tesouro comum, que provia
a todos, segundo as necessidades do indivíduo ou da família. Mas não cuidava
apenas das necessidades materiais de seu povo, que à época da guerra chegava,
provavelmente, a 15.600 pessoas. A seu modo, levava-lhes a palavra de um Deus
justo, bondoso mas exigente, que abria as portas do céu a quem sofresse as agruras
da terra e a quem se penitenciasse. Jogar a vida em luta pelo bem da posse coletiva,
notadamente da terra, era o bem individual supremo. O trabalho e o comparecimento
às ladainhas, rezas e pregações do "profeta" eram obrigatórios. A maior parte
das atividades de interesse comum era praticada coletivamente.
As autoridades políticas, religiosas e militares da época
acomodaram-se no exercício de um só olhar sobre Conselheiro e seus jagunços
: formariam eles um bando de desordeiros, foras-da-lei, monarquistas, insuflados
pelo desejo infrene de queda da República e de retorno do regime monárquico.
Faltou-lhes a análise do outro lado da moeda : a percepção do isolamento social,
da exclusão social que implicaria inexoravelmente o atraso cultural traduzido
no fanatismo religioso, no negar a República que desconheciam, a civilização
que lhes era mostrada pelo brilho da baioneta e pelo clarão da artilharia.
Em verdade, os jagunços formavam uma grande concentração
de pobres do campo. Quando chegaram a Canudos, havia cinco anos fora abolida
a escravatura negra e quatro de proclamada a República. Mas aquelas mudanças
na fisionomia política do País, impostas embora por certas modificações na estrutura
econômica, em nada melhoraram a sorte dos trabalhadores e muito menos da grande
massa do campo submetida pelos senhores latifundiários.
FACÓ (1965 : 78) assim se expressa a respeito :
Mantinha-se intacta a grande propriedade territorial
semifeudal. Tanto o escravo de ontem como os agregados, os moradores, os foreiros,
os chamados trabalhadores livres, não passavam de semi-servos do latifundiário.
Com a derrubada da Monarquia, em 1889, na República partilhavam o poder do Estado
os latifundiários e a burguesia, ambos se temendo mutuamente. Os primeiros,
depois de perderem a escravaria, receavam perder os feudos; os segundos, sonhando
com empreendimentos industriais, ferroviários, modernização da agricultura,
necessitavam de braços livres, mas temiam liquidar o regime latifundiário.
O agrupamento, a concentração dos pobres dos campos
nordestinos em Canudos, sob a chefia de Antonio Conselheiro, nesse dado momento
econômico da história brasileira assustava burgueses e latifundiários. Entre
1891 e 1895, escasseavam os cereais em que os Estados nordestinos tinham baseada
sua frágil economia, além do açúcar. A importação do milho estrangeiro crescia
assustadoramente. A importação do arroz e do feijão aumentava em igual medida.
Enquanto isso, no mesmo período, reduziam-se drasticamente as exportações do
açúcar. Em conseqüência da emigração de camponeses pobres do Nordeste para o
Sul e para a Amazônia, onde avultava a cultura da borracha, Estados como o Ceará,
que sempre havia produzido cereais para a sua subsistência, atravessavam grande
escassez. E, para piorar o quadro, em 1896, o principal produto de exportação
do Brasil, o café, base de toda a vida econômica nacional, entra pela primeira
vez em crise de superprodução. Os preços caem violentamente enquanto se acumulam
os estoques invendáveis.
No último decênio do século XIX, com essa crise do café,
os trabalhadores que abandonavam as fazendas arruinadas do Nordeste já não podiam
mais livremente demandar os cafezais de São Paulo e Estado do Rio. No mesmo
ano de 1896, ano em que se inicia a luta armada nos sertões da Bahia, as classes
dominantes já demonstravam incerteza diante do futuro e em face da própria realidade.
Falava-se em calamidade pública, não havendo como ocultar que a situação no
campo se agravava constantemente.
Se por um lado a situação era notadamente grave, atingindo
o setor mais numeroso da população, as massas campesinas pobres eram ignoradas
e silenciadas. A elas não havia caminho de ida. E à classe dominante não havia
acolhê-los. Este é um fator que não pode ser ignorado quando o assunto volta-se
à questão da exclusão e isolamento social do jagunço.
Voltemos a FACÓ (1965 : 81) que dá sua visão sobre o
problema :
O trabalhador do campo no Brasil fora sempre considerado
pelos grandes fazendeiros e seus porta-vozes como simples escravo ou servo,
geralmente equiparado aos animais de carga, como o fazia ainda em 1887 um agrônomo
baiano, Cristóvão Campos defendendo tese em Salvador, intitulada Capital rodante
da propriedade agrícola, apresentada à Imperial Escola de Agronomia da Bahia.
Opinava ele que a moléstia dos operários trabalhadores rurais e dos animais
eram obstáculo de pouca importância para uma propriedade bem dirigida. E não
só as moléstias, também a fome e a penúria de tudo na vida do trabalhador do
campo eram em geral consideradas coisa normal, tanto pelos grandes fazendeiros
como por seus representantes no Governo, no Parlamento, na imprensa, nas escolas.
Discutia-se tudo a respeito da terra : questões ligadas aos métodos de cultivo,
se os melhores animais de tração eram os bois ou os cavalos, a conveniência
da pequena ou da grande propriedade territorial, adubos. Só não se via a mola
mestra de toda a vida econômica do País então : o trabalhador rural, o camponês
sem terra. Era como se se tratasse de um elemento tão "natural" como a própria
terra, fazendo parte dela como o humo. O que importava era manter o latifúndio,
os privilégios odiosos do latifundiário
Daí surge a questão-fulcro deste
capítulo; se para as classes dominantes o trabalhador pobre do campo, sem-terra,
representava simplesmente uma força bruta como o boi ou o cavalo, um elemento
natural como a terra, uma energia orgânica como o adubo, como essas mesmas classes
dominantes haveriam de entender um grupo organizado de campesinos, armados,
chefiados por um líder religioso, dotados de um mínimo senso critico capaz de
levá-los a defender sua vida, seu pedaço de terra, suas crenças ? .
Seria óbvio supor que causasse horror às classes dominantes
qualquer tentativa de quebrar o sagrado monopólio da terra. Afinal, a agricultura
era o latifúndio, a exploração semifeudal, a opressão sem limites da massa campesina
despossuída. Tinha-se a propriedade territorial como a grande propriedade, cuja
ordem só estaria garantida enquanto houvesse o monopólio da terra por uma minoria.
A ordem no campo, em última análise, consistia no predomínio absoluto dos latifundiários,
e sua sobrevivência como classe estava condicionada à existência da grande massa
dos sem-terra.
A partir desses pressupostos, há de se entender que os
jagunços, ao longo da Campanha de Canudos, não estavam combatendo a República.
Aqueles milhares de sem-terra armados estavam em defesa (e não em ataque) pela
própria sobrevivência, em luta, ainda que espontânea , não consciente, contra
a monstruosa e secular opressão latifundiária. Equivale a dizer que estavam
violando abertamente o mais sagrado de todos os privilégios secularmente estabelecidos
desde os começos da colonização européia no Brasil - o monopólio da terra nas
mãos de uma minoria a explorar a imensa maioria.
Era, sem dúvida, o mais nefando dos crimes contra a ordem
dominante. Entendamos por ordem dominante aquela formada pelos republicanos,
o Exército a serviço da República, os latifundiários e seus representantes no
Parlamento e na imprensa. Imagine-se o seu espanto, a sua perplexidade ante
um movimento armado no campo. Admitir que se batiam os pobres do campo contra
a opressão feudal era admitir que tinham o direito de fazê-lo. Era admitir o
feudo e a miséria dos trabalhadores. Assim, sentiram a necessidade de ocultar
aquelas que, em sua concepção, seriam as verdadeiras causas das lutas que surgiam
no interior da Bahia, esconder seus reais objetivos.
Diz FACÓ (1965 : 82, 83 ) :
Procuraram sempre, através de toda a história do Brasil,
desvirtuar essas lutas no nascedouro, apresentando-as como simples atos de banditismo.
Esmagavam-nas de um golpe ou tratavam de desalojar os combatentes, dispersá-los,
para deformar o sentido inicial da luta e o motivo determinante, e transformar
os insurgentes em reles bandoleiros, condenando-os ao papel de salteadores,
sem apoio firme entre as populações rurais às quais estavam ligados mais diretamente
e onde constituíam uma ameaça à grande propriedade territorial. Mas, enfrentar
um baluarte fixo em pleno sertão, cercado pela simpatia e o apoio das populações
rurais como foi Canudos, era uma situação nova para as classes dominantes. Por
isso, quando rebentou a luta armada dos habitantes de Canudos, fazendeiros,
Governo, toda a imprensa das classes dominantes, republicana ou restauradora,
mostraram-se mais que surpresos - alarmados. Para tirar-lhe a importância social,
caracterizaram-na desde logo como um surto de banditismo ou fanatismo religioso,
e nada mais. Para melhor combatê-la e obter neste combate o apoio do povo, faziam
crer também que era um movimento anti-republicano pela restauração da monarquia.
Porque monarquia representava escravidão, atraso, obscurecimento, o que devia
ser degradante para o povo, contra aspirações populares de liberdade e progresso.
Com efeito, analisando os jornais da época, os relatórios
militares e as correspondências havidas e recolhidas então, constata-se esse
estado de animosidade da classe dominante contra os jagunços. Pelo menos, dois
livros reúnem notável número desses escritos: um é a tese de livre-docência
de Walnice Nogueira Galvão, submetida em julgamento no ano de 1972, e logo após
publicada pela Atica, SP, sob o título No calor da hora ; o outro é a recente
publicação da Editora da Universidade de São Paulo - EDUSP, dada em 1999, organizado
por Consuelo Novais Sampaio, intitulado Canudos - cartas para o barão.
Analisemos alguns textos.
Sabia-se que Antonio Conselheiro era um homem razoavelmente
letrado e que escrevia com certa correção, como se pode verificar nos autógrafos,
inclusive carta que o Instituto Histórico e Geográfico da Bahia possui. Os trechos
em seguida fazem parte de um texto que é evidentemente uma paródia e faz, ademais,
uma série de comentários jocosos sobre a Guerra de Canudos e sobre meandros
da política central que nem poderiam ser do conhecimento do líder sertanejo.
Trata-se do Manifesto do Antonio Conselheiro, publicado no jornal A Notícia,
do Rio de Janeiro, na seção Caleidoscópio, em 1897, coletado por Walnice Galvão
em No calor da hora. Lendo-o, percebe-se hoje que a intenção do autor era clara
: ridicularizar Conselheiro, colocando-o sob a ótica da subversão e do atraso,
da barbárie que não mais poderiam coexistir com o clima progressista da República
recém-instaurada e com os anseios da classe dominante. Observemos alguns trechos
e a grosseira tentativa de minimizar o chefe dos jagunços, no plano das idéias
e na ortografia :
"Meus jagunçu queridu da minha arma. - Arresolvido
cumo estou a butá abaixo esta república que é a mandinga desta terra das mata
virge, venhu chamá ocês tudo as arma promode enchê us claro qu´as força do governo
abriu na minha gente. Ocês são testimunha que eu estava aqui bem sucegado cumprindo
a missão que Deus me deu de sarvá as arma dos fié da verdadeira religião de
Jesus e fazendo o pussuvi promode enchê de benefiçu esta terra amardiçoada,
mas os republicanu intendeu que o Brasi é só dos eregi ( ...) "
" Jagunçada minha, vamu recebê a tiru essa cambada
di eregi mandada plu diabo si mascarandi-se de republicanu pra inganá us tolo
e pençandu que os outro são burro. Iche ! Si o Bom Jesus, figurado e incarnado
em eu vencê essa bataia tudo quanto é jagunço das arredondeza Qui tivé pegado
nas arma santa com fé vai direitinho pru céu nu momentu fatá da morte (...)
"
" As arma! Purtanto. Corra tudo pra defendê a santa
missão de Deus contra esses sugeitos que botaru o cambiu numa pindaiba dus diabo
desdi que o imperadô foi inxotadu da sua terra natá onde canta us sabiá (...)
Os republicanus queren é si inchê bem pra gozá o mundo com as muié. Pur isso
é que eu digu pra trazê as muié cá pru arraia onde mais antis cuzinhá e trabaiá
pra nois du que sê agarrada plus eregi, cujos tem o diabo no corpo. Aqui ellas
não ganha dinhero mas ganha a graça de Deus si trabaia tudo bem trabaiadinho
i sem pedi ordenado coisa que por aqui não há. Louvado seja Nosso Sinhô que
paga mió que quarquê capitalista das cidades (...)"
Ainda em No calor da hora, Walnice Galvão fala de textos
apócrifos ou possivelmente apócrifos. Um exemplo é o que aparece no jornal Diário
de Notícias, da Bahia, edição de 22 de setembro de 1897, na primeira página.
É o Credo de Antonio Conselheiro, texto elaborado, novamente, com a explícita
intenção de jogar Conselheiro contra a República. Notemos :
" Creio no Sr. D. Pedro segundo, ex-imperador e defensor
perpétuo do Brasil, criador da constituição monárquica do Império, do Exército
e da Armada que o depuseram; creio na Princesa D. Isabel que é a sua filha e
legítima herdeira da coroa, que casou-se com o Sr. Conde D´Eu, que nasceu no
Rio de Janeiro e foi dali banida com seu velho pai, padecendo este e todos seus
sob o poder da malvada República, representada pelo governo provisório de Deodoro
da Fonseca; que o velho monarca morreu apaixonado na Europa, onde foi sepultado,
por ser obrigado a abandonar o Brasil e seus caros filhos, descendo o país ao
pântano da miséria, donde ressurgirá em breve com a restauração da Monarquia,
subindo ao trono a aludida princesa, onde permanecerá assentada à mão direita
de seu marido, que se tornará poderoso e donde há de vir a julgar todas as obras
daqueles hereges e conspiradores republicanos que tanto concorreram para a perdição
do país; creio na coragem e fidelidade dos meus jagunços, na sua ressurreição,
na vitória alcançada por João Abade e Macambira, na restauração da Monarquia
e na vida eterna dos meus sonhos. Amém."
A defesa da propriedade fundiária estava no grito de
luta que uniu todos os setores das classes dominantes na guerra contra Canudos.
A campanha de formação de opinião pública era implacável, mesmo após o final
da guerra. GALVÃO (1994 : 95) diz a respeito :
Se, para o General Artur Oscar, em carta que enviou
ao República e que saiu na edição de 9 de setembro de 1897, os rebeldes de Canudos
eram "estes miseráveis e sórdidos jagunços"; se, para o autor do soneto comemorativo
da vitória, dedicado ao soldado brasileiro, intitulado Anônimo sublime, que
saiu n´O República de 13 de outubro de 1897, Antonio Conselheiro era um "mísero
embusteiro" e seus homens uma "cáfila assassina"; se o telegrama que a deputação
federal baiana enviou ao governador da Bahia, e que foi estampado na primeira
página da Segunda edição d´A Notícia em 7/8 de outubro, congratula-se pela "completa
destruição de Canudos, baluarte de bandidos e fanáticos, atentado à ordem legal
e instituições"; e se, em discurso comemorativo publicado na mesma página, o
Presidente da República fala "desses fanáticos aglomerados junto a um velho
mentecapto talvez" e declara biblicamente que "em Canudos não ficará pedra sobre
pedra", não é dos intelectuais que devemos esperar uma linguagem diferente.
Com efeito, os intelectuais, representados em grande
parte pelos acadêmicos baianos, terminariam um manifesto publicado em Gazeta
de Notícias, meses antes do fim da guerra, precisamente no dia 1º de abril de
1897, da seguinte forma : "O fanatismo rebelado em Canudos é uma nódoa, uma
vergonha que cumpre extinguir de pronto e por completo (...)"
E durante a guerra, a campanha movida pelas classes
dominantes mostrava-se acirrada. Era necessário que, a todo custo, a opinião
pública nacional da época e o juízo crítico futuro da História tivessem uma
única leitura quanto à rebelião armada em Canudos : Conselheiro e sua gente
formavam uma horda posicionada na contramão da modernidade, indo de encontro
aos anseios da República, esta, sim, manifestação do progresso, do avanço, da
linha de frente do concerto nacional de suas unidades federativas.
A classe dominante brasileira de então asseverava que
os conselheiristas não cogitavam apenas em restaurar a Monarquia. Nutriam, também,
a pretensão de se conservarem independentes, livres de toda a ação governamental.
Não pensavam em destruir sistematicamente a República, regime que não compreendiam.
As autoridades supunham que os jagunços teriam da República uma limitadíssima
idéia, e que se conhecessem alguma coisa de socialmente útil, essa coisa não
ultrapassaria a dimensão da estreita região agreste, quase bárbara, onde assentavam
seus arraiais. Julgavam mais : que o fanatismo rebelado em Canudos conservava-se
no interior da Bahia, de forma obstinada, à espera de uma inevitável destruição
- o aniquilamento inexorável de um povo fraco por um povo forte, conforme nos
diz Euclides da Cunha - que iria, mais cedo ou mais tarde, realizar-se para
desagravo da civilização brasileira e da honra de seu Exército, gravemente ofendida
pelas desastrosas conseqüências das mortes infelizes de seus soldados e de seus
mais ilustres oficiais.
"O fanatismo rebelado em Canudos é uma nódoa, uma vergonha,
que cumpre extinguir de pronto e por completo." Tal era o espírito que movia
a classe dominante.
Um outro livro que nos leva a entender melhor esse medo
e reação da classe dominante diante do episódio dos conselheiristas intitula-se
Canudos - cartas para o barão, organizado por Consuelo Novais Sampaio, publicado
pela Editora da Universidade de São Paulo -EDUSP, primeira edição em 1999. Este
livro reúne 70 cartas que compõem uma pequena parte do arquivo privado do barão
de Jeremoabo.
Este ilustre político, de nome Cícero Dantas Martins,
foi um dos mais ativos e combativos homens públicos da Bahia. Durante a campanha
de Canudos, era ele dono de 61 fazendas (59 na Bahia e 2 em Sergipe), tendo
sido, possivelmente, o maior proprietário rural dos sertões. Exercia o hábito
de a todos ouvir e atender, procurando conciliar divergências e coordenar interesses
pessoais. As cartas e documentos que constituem o seu arquivo testemunham suas
múltiplas atividades e sua insofismável liderança política.
Mantinha correspondência ativa com todos os amigos. E
esses amigos eram, em sua grande maioria, proprietários rurais e homens públicos.
Daí, a leitura e a análise do teor dessa correspondência havida na época do
conflito podem proporcionar uma avaliação mais precisa do pensamento da classe
dirigente local e da sociedade sertaneja em geral. Selecionei trechos significativos
de 10 cartas. O conjunto desses trechos leva à compreensão do sentimento dessa
parcela da classe dominante em relação aos conselheiristas. Notemos :
" (...) Seguiu daqui e destas imediações esta semana
para o Conselheiro umas 16 a 20 famílias, é um horror !! ... (...)" Carta do
tenente-coronel Marcelino Pereira Miranda, 12 de janeiro de 1894.
"(...) O Antônio Conselheiro continua a ser o motivo
da saída de muita gente daqui, e outros pontos, que ameaça ficarão despovoados.
O êxodo agora de nossa gente é grande e o Governador não pode agora tomar providências,
que são urgentes. Compreendo que, quando a miséria, que já começa a manifestar-se
em Canudos, tomar proporções maiores, os roubos e assassinatos serão a conseqüência
do pouco caso com que se olha para os primeiros atos daqueles monomaníacos.
Quem for fazendeiro nas proximidades de Belo Monte (assim se chamam hoje os
Canudos) há de pagar o descuido e a negligência dos que nos governam (...)"
Carta do coronel Aristides da Costa Borges, deputado estadual, 9 de fevereiro
de 1894.
"(...) Ontem fomos surpreendidos com a aparição de
dezessete sicários do Antonio Conselheiro, armados até os dentes; demoraram
pouco e seguiram para os lados daí; a notícia que correu foi que iam em busca
de um portador que foi levar uma musica no Riacho e não voltou mais, tendo trazido
alguns animais. Principiam as correrias, em breve os roubos e desrespeito às
autoridades, e como repelir-se!!! " Com uma só praça que tem no Pombal (...)"
Carta do tenente-coronel Antonio Ferreira de Brito, 10 de fevereiro de 1894.
"(...) O Conselheiro está agora percorrendo as Vilas
deste sertão e planta-nos sua lei, que ele é o Governo desta terra sem lei,
pior governo. Ontem subiu com um pessoal imenso, e tendo raspado esta terra
aos vinténs que tinha e tudo mais, o povo dando e pedindo esmola. Pessoas que
nunca julguei acompanhá-lo seguiram com ele. O Conselheiro tornou a voltar pelo
Monte Santo, Tucano, Pombal e fazer sua volta por aqui carregando madeira, carregando
o povo, e os últimos recursos e plantando sua lei, sem Ter embaraço, pois não
houve, não há, e nem haverá governo!!! Estamos derrotados neste sertão, Sr.
Barão, não me retiro porque estou feito defunto, é quanto basta dizer-lhe (...)"
Carta do coronel José Américo Camelo de Sousa Velho, proprietário rural, 2 de
janeiro de 1896.
"(...) Estamos ameaçados agora da visita do Conselheiro,
e era o que nos estava faltando por aqui !... Ontem chegou ao Juazeiro uma força
de 100 prças do 9º, requisitada pelo juiz de direito e comércio. A população
está alarmada, e algumas pessoas já se mudando. Consta que vem a pretexto de
levar um taboado para uma igreja que está fazendo. Além da carestia dos gêneros
que já é excessiva, ainda mais esta (...)" Carta do coronel Francisco Martins
Duarte, 8 de novembro de 1896.
"(...) A expedição dos Canudos oferece séria dificuldade
por causa das distâncias, e só terá bom êxito se a força for numerosa e bem
comandada. A loucura de mandar cem homens já deu os resultados conhecidos, retornando
aqui setenta soldados em mísero estado. Consta que já tem havido nos Canudos
crimes bárbaros. Avalie o que se sucederá se a força conseguir bater os adeptos
do Conselheiro. Dispersos em grupos começarão em larga escala as mortes, roubos
etc. Tudo isto por não se ter operado em tempo. Deus nos dê tranqüilidade."
Carta do bacharel Benigno Dantas, proprietário rural, 5 de dezembro de 1896.
"(...) Como vai o célebre Conselheiro? Daqui tem seguido
para desbaratar este fanático e seu povo muita tropa e munições. Já foram uns
quatrocentos soldados, que vão ser comandados pelo capitão Salvador. Eles contam,
depois de algumas escaramuças, assediar aqueles pobres-diabos nos Canudos para
arrasá-los com a artilharia. É possível que desta vez liquidem a questão, embora
com grandes sacrifícios e dispêndios, quando de há muito já poderiam tê-lo feito
sem maiores dificuldades. O que sei é que eu serei o mais prejudicado, pois
com certeza na nossa fazenda não deixarão pedra sobre pedra(...)" Carta do juiz
federal Paulo Martins Fontes, proprietário rural, 12 de dezembro de 1896.
"(...) Escrevi-lhe por seu pai e não tenho carta
sua a que devo resposta. Meu irmão, portador da presente, é carta viva e lhe
dirá os dias amargurados e aflitivos por que temos passado, receando, a todo
momento, ser esta vila invadida e saqueada pelos sicários de Antonio Conselheiro
e seus habitantes trucidados. O sobressalto é geral e estamos de sobreaviso
para retirarmo-nos logo que chegue qualquer notícia desagradável. Quem pensaria
que este maníaco ou perverso fosse tão funesto? Quanto sangue derramado somente
pela incúria do governo que, apesar de avisado, não preveniu em tempo o mal.
Que complicação não trará ainda este negócio, que cada vez vai mais se complicando.
Deus se compadeça de nós(...)" Carta do Dr. Reginaldo Alves de Melo, proprietário
rural, 18 de março de 1897.
"(...) Não acredito no extermínio completo dos bandidos
que não oferecem combate, limitam-se a guerrilhar, o que torna quase impossível
uma ação completa. Entretanto, parece que há desânimo entre eles, que têm emigrado
em grande número. Deus proteja a nossa causa. Tenho lido com cuidado o que há
sobre política, e quer me parecer que os governantes naufragam na luta(...)"
Carta do coronel Aristides Costa Borges, 20 de julho de 1897.
"(...) Peço-lhe e dou minhas alvíssaras pela morte
do monstro horroroso do Brasil, Antônio Maciel; assim como dos seus maiores
confidentes, Macambira, Norberto, Manuel Franco, que levaram com o monstro três
dias esperando sua ressuscitação, desenganados deram sepultura em uma rasa cova.
Os jagunços estão se reunindo nas caatingas e dizendo que o infeliz tem de ressuscitar
para vir mostrar que é Deus. Já vi portanto que o fanatismo ainda não se acabou
destes malvados, e ficam sem serem perseguidos nestes pontos onde estão muito
pior (...) Este fim deveria deixar tudo liquidado e findo (...)" Carta do coronel
José Américo Camelo Sousa Velho, 15 de outubro de 1897.
Os trechos aqui selecionados foram extraídos de cartas
que abrangeram, basicamente, o período de 1894 e 1897 e estão dispostos em ordem
cronológica. São contemporâneas da guerra de Canudos. Seus remetentes pertenciam
à elite política, militar e mesmo ruralista. Nota-se, por sua leitura - e há
de se dizer que as outras sessenta cartas publicadas no citado livro apresentam
o mesmo teor - um medo coletivo que tomou conta daqueles ilustres membros da
classe dominante.
O exame dessas cartas sugere que a questão de Canudos
se agravou em relação direta ao acirramento da disputa pelo poder entre grupos
oligárquicos, tanto no plano nacional, como no estadual e municipal.
Fica claro que essa parcela da classe dominante não ajudou
a construir ou proteger Canudos, mas a destruir, expugnar , exterminar Canudos,
de modo a não restar "pedra sobre pedra".
Eles sentiam medo, mas não um medo costumeiro. Quando
as populações sertanejas vivem o medo das secas prolongadas, das doenças de
toda espécie, das arbitrariedades da força policial, das punições da Igreja
Católica, das devastações do banditismo etc., eles estão, em verdade, exercitando
mecanismos que desenvolveram para administrar esses diversos medos. É o medo
cotidiano, é o medo costumeiro.
Analisando o medo das classes dominantes em face de Canudos,
pode-se inferir que este medo foi um medo construído, com um determinado fim.
A hipótese não é nossa. É de Consuelo Novais Sampaio,
que organizou o livro Canudos - cartas para o barão.
Diz SAMPAIO (1999 : 32) :
O medo que destruiu Canudos foi um medo diferente. Em
contraste com esses medos, foi um medo construído, não só pelas facções políticas
em luta mas, principalmente, pela Igreja Católica e pelo Exército. A imprensa
(grande e pequena) encarregou-se de recriar e de espalhar esse medo que, de
boca em boca, foi impregnando os brasileiros, até atingir o paroxismo da perversidade,
após a fragorosa derrota da terceira expedição militar (...) Ao contrário do
que ocorreu nas revoluções e rebeliões estudadas por aqueles renomados historiadores
franceses, as quais promoveram mudanças estruturais e imprimiram avanços no
processo histórico, o medo que destruiu Canudos não surgiu das camadas populares
nem impeliu o progresso. O medo de Canudos foi um medo construído pelos de cima,
com o propósito de enfraquecer e mesmo aniquilar forças adversárias, numa cruenta
disputa pelo poder político no interior de uma mesma classe social.
É interessante notar que após a guerra, aquele medo construído
provocou esturpor, impôs uma trégua na disputa entre as facções políticas rivais
e no confronto entre o militarismo, dominante nos primeiros anos da República,
e o civilismo, que procurava se impor. Quando se dissipou, teve um efeito paralisante
e mesmo retrógrado. O statu quo das classes dominantes foi preservado e os campesinos
sem posse foram contidos, voltando ao quietismo que lhes havia sido reservado
pela elite. Ou seja, Canudos, que representava uma reação coletiva dos sem-terra,
foi exterminada, física e ideologicamente
O líder dos jagunços não poderia ficar impune a essa
estratégia do sistema. Antonio Conselheiro foi vítima das mais torpes manipulações
políticas de todos os plnos do poder. Durante a Campanha, o vice-presidente
da República em exercício, Manuel Vitorino, conseguiu dar concretude ao fantasma
da restauração monárquica, manipulando a figura carismática de Conselheiro.
E ao reassumir o seu posto, no mesmo dia em que o coronel Moreira César caía
fulminado no campo de luta (4 de março de 1897), Prudente de Morais valeu-se
do mesmo recurso e convocou todas as forças do país para aniquilar Canudos.
Dessa forma, o medo construído atingiu o auge e a já combalida comunidade sertaneja
foir exterminada para a satisfação de interesses personalistas e imediatos.
Esse medo construído, tão bem percebido e enfocado por
Consuelo Novais Sampaio, terminou por desembocar no grande medo que cobriu de
sngue e cinzas as terras do sertão baiano.
E quais eram os ingredientes desse medo ?
- o fantasma da restauração monárquica;
- o fantasma das fazendas destruídas.
- A idéia propalada de restauração monárquica serviu
aos interesses políticos da esfera federal; a idéia das fazendas destruídas
manifestou-se na região da guerra, no interior da Bahia, mas serviu também de
elemento aglutinador das classes dominantes.
E fica, aí, clara uma outra visão do conflito nas respostas
a uma questão específica : por quê jagunços e classes dominantes se combatiam
?
. Os jagunços combatiam as classes dominantes , antes
de tudo, em defesa de sua própria sobrevivência; e, de uma forma espontânea,
não consciente, contra a secular opressão latifundiária.
As classes dominantes combatiam os jagunços pela manutenção
do statu quo (a República e seus segmentos políticos e ideológicos) e pela preservação
da grande propriedade latifundiária, a maioria imensos latifúndios, maiores
que alguns países europeus.
Em relação a esse jogo de interesses, SAMPAIO (1999 :
77) manifesta sua opinião :
A Guerra de Canudos não foi apenas mais um capítulo da
história do Brasil. Ela revela com precisão a grande distância que, neste país,
sempre separou - e no limiar do século XXI ainda separa - o "povo miúdo" , a
classe pobre e miserável , das classes dominantes. Em todos os níveis de tomada
de decisão, o movimento conselheirista foi manipulado para a satisfação de interesses
pessoais e de grupos políticos em luta pelo poder (...) O medo construído resultara
em uma das mais dramáticas destruições da história do Brasil. A ele se seguiu
um quietismo constrangedor, quase absoluto. No sertão, o medo costumeiro passou
novamente a primeiro plano, com a deterioração das já precárias condições sanitárias,
a incidência crescente de doenças mortais, a seca avassaladora e as costumeiras
perseguições políticas.
Já se disse que quem manipula o poder manipula também
o esquecimento. Sabemos que hoje Canudos são ruínas que jazem no fundo de uma
represa. E é curioso saber que a construção do açude de Cocorobó, que inundaria
irremediavelmente Canudos, tenha ocorrido no ano de 1969, quando o Brasil vivia
o auge da repressão do regime militar, o mesmo regime que aponto na Introdução
desta dissertação.
E o homem do sertão ?
O homem do sertão continua à espera de quem lhe aponte
o caminho da esperança e da redenção.
Pelo exposto neste capítulo, creio em ter ficado clara
a idéia da exclusão social dos conselheiristas e o olhar da classe dominante
sobre esses pobres do campo : OS JAGUNÇOS ERAM SUJEITOS A EXTERMINAR.
Fechemos esta parte com Euclides DA CUNHA (1973:392)
:
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História.
Resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral
do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores,
que todos morreram. Eram quatro apenas : um velho, dois homens feitos e uma
criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA , Euclides da. Os Sertões. São Paulo, Cultrix :
1971.
FACÓ , Rui. Cangaceiros e fanáticos. 2.ed. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira : 1965
GALVÃO , Walnice Nogueira. No calor da hora. 3.ed. São
Paulo, Ática : 1994.
SAMPAIO, Consuelo Novais (org.). Canudos - cartas para
o Barão. São Paulo, Edusp : 1999.
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