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A EXCLUSÃO SOCIAL DO JAGUNÇO E O OLHAR DA CLASSE DOMINANTE "
2001-11-27 00:00:00

 

O arraial de Canudos foi fundado por Antonio Vicente Mendes Maciel, o Antonio Conselheiro, em 1893, no interior baiano. Passara ele os dez anos anteriores peregrinando pelo sertão do Ceará e da Bahia, pregando, construindo igrejas e cemitérios. Canudos, ou Belo Monte, como também ficou conhecido o local, trazia vestígios de ter sido uma fazenda de criação de gado, localizada à beira do rio Vaza-Barris. Em Canudos, Antonio Conselheiro criou um regime econômico-social igualitarista, com a abolição da propriedade privada, do casamento civil, da moeda republicana e de outras instituições consideradas civilizadas pela sociedade brasileira da época, que vivia a euforia da República recém-instalada e ainda comemorava, embora com menor fragor, o fim do regime escravocrata.

Conselheiro imprimia um governo despido de privilégios; os bens e as riquezas individuais eram entregues ao tesouro comum, que provia a todos, segundo as necessidades do indivíduo ou da família. Mas não cuidava apenas das necessidades materiais de seu povo, que à época da guerra chegava, provavelmente, a 15.600 pessoas. A seu modo, levava-lhes a palavra de um Deus justo, bondoso mas exigente, que abria as portas do céu a quem sofresse as agruras da terra e a quem se penitenciasse. Jogar a vida em luta pelo bem da posse coletiva, notadamente da terra, era o bem individual supremo. O trabalho e o comparecimento às ladainhas, rezas e pregações do "profeta" eram obrigatórios. A maior parte das atividades de interesse comum era praticada coletivamente.

As autoridades políticas, religiosas e militares da época acomodaram-se no exercício de um só olhar sobre Conselheiro e seus jagunços : formariam eles um bando de desordeiros, foras-da-lei, monarquistas, insuflados pelo desejo infrene de queda da República e de retorno do regime monárquico. Faltou-lhes a análise do outro lado da moeda : a percepção do isolamento social, da exclusão social que implicaria inexoravelmente o atraso cultural traduzido no fanatismo religioso, no negar a República que desconheciam, a civilização que lhes era mostrada pelo brilho da baioneta e pelo clarão da artilharia.

Em verdade, os jagunços formavam uma grande concentração de pobres do campo. Quando chegaram a Canudos, havia cinco anos fora abolida a escravatura negra e quatro de proclamada a República. Mas aquelas mudanças na fisionomia política do País, impostas embora por certas modificações na estrutura econômica, em nada melhoraram a sorte dos trabalhadores e muito menos da grande massa do campo submetida pelos senhores latifundiários.

FACÓ (1965 : 78) assim se expressa a respeito :

Mantinha-se intacta a grande propriedade territorial semifeudal. Tanto o escravo de ontem como os agregados, os moradores, os foreiros, os chamados trabalhadores livres, não passavam de semi-servos do latifundiário. Com a derrubada da Monarquia, em 1889, na República partilhavam o poder do Estado os latifundiários e a burguesia, ambos se temendo mutuamente. Os primeiros, depois de perderem a escravaria, receavam perder os feudos; os segundos, sonhando com empreendimentos industriais, ferroviários, modernização da agricultura, necessitavam de braços livres, mas temiam liquidar o regime latifundiário.

O agrupamento, a concentração dos pobres dos campos nordestinos em Canudos, sob a chefia de Antonio Conselheiro, nesse dado momento econômico da história brasileira assustava burgueses e latifundiários. Entre 1891 e 1895, escasseavam os cereais em que os Estados nordestinos tinham baseada sua frágil economia, além do açúcar. A importação do milho estrangeiro crescia assustadoramente. A importação do arroz e do feijão aumentava em igual medida. Enquanto isso, no mesmo período, reduziam-se drasticamente as exportações do açúcar. Em conseqüência da emigração de camponeses pobres do Nordeste para o Sul e para a Amazônia, onde avultava a cultura da borracha, Estados como o Ceará, que sempre havia produzido cereais para a sua subsistência, atravessavam grande escassez. E, para piorar o quadro, em 1896, o principal produto de exportação do Brasil, o café, base de toda a vida econômica nacional, entra pela primeira vez em crise de superprodução. Os preços caem violentamente enquanto se acumulam os estoques invendáveis.

No último decênio do século XIX, com essa crise do café, os trabalhadores que abandonavam as fazendas arruinadas do Nordeste já não podiam mais livremente demandar os cafezais de São Paulo e Estado do Rio. No mesmo ano de 1896, ano em que se inicia a luta armada nos sertões da Bahia, as classes dominantes já demonstravam incerteza diante do futuro e em face da própria realidade. Falava-se em calamidade pública, não havendo como ocultar que a situação no campo se agravava constantemente.

Se por um lado a situação era notadamente grave, atingindo o setor mais numeroso da população, as massas campesinas pobres eram ignoradas e silenciadas. A elas não havia caminho de ida. E à classe dominante não havia acolhê-los. Este é um fator que não pode ser ignorado quando o assunto volta-se à questão da exclusão e isolamento social do jagunço.

Voltemos a FACÓ (1965 : 81) que dá sua visão sobre o problema :

O trabalhador do campo no Brasil fora sempre considerado pelos grandes fazendeiros e seus porta-vozes como simples escravo ou servo, geralmente equiparado aos animais de carga, como o fazia ainda em 1887 um agrônomo baiano, Cristóvão Campos defendendo tese em Salvador, intitulada Capital rodante da propriedade agrícola, apresentada à Imperial Escola de Agronomia da Bahia. Opinava ele que a moléstia dos operários trabalhadores rurais e dos animais eram obstáculo de pouca importância para uma propriedade bem dirigida. E não só as moléstias, também a fome e a penúria de tudo na vida do trabalhador do campo eram em geral consideradas coisa normal, tanto pelos grandes fazendeiros como por seus representantes no Governo, no Parlamento, na imprensa, nas escolas. Discutia-se tudo a respeito da terra : questões ligadas aos métodos de cultivo, se os melhores animais de tração eram os bois ou os cavalos, a conveniência da pequena ou da grande propriedade territorial, adubos. Só não se via a mola mestra de toda a vida econômica do País então : o trabalhador rural, o camponês sem terra. Era como se se tratasse de um elemento tão "natural" como a própria terra, fazendo parte dela como o humo. O que importava era manter o latifúndio, os privilégios odiosos do latifundiário

Daí surge a questão-fulcro deste capítulo; se para as classes dominantes o trabalhador pobre do campo, sem-terra, representava simplesmente uma força bruta como o boi ou o cavalo, um elemento natural como a terra, uma energia orgânica como o adubo, como essas mesmas classes dominantes haveriam de entender um grupo organizado de campesinos, armados, chefiados por um líder religioso, dotados de um mínimo senso critico capaz de levá-los a defender sua vida, seu pedaço de terra, suas crenças ? .

Seria óbvio supor que causasse horror às classes dominantes qualquer tentativa de quebrar o sagrado monopólio da terra. Afinal, a agricultura era o latifúndio, a exploração semifeudal, a opressão sem limites da massa campesina despossuída. Tinha-se a propriedade territorial como a grande propriedade, cuja ordem só estaria garantida enquanto houvesse o monopólio da terra por uma minoria. A ordem no campo, em última análise, consistia no predomínio absoluto dos latifundiários, e sua sobrevivência como classe estava condicionada à existência da grande massa dos sem-terra.

A partir desses pressupostos, há de se entender que os jagunços, ao longo da Campanha de Canudos, não estavam combatendo a República. Aqueles milhares de sem-terra armados estavam em defesa (e não em ataque) pela própria sobrevivência, em luta, ainda que espontânea , não consciente, contra a monstruosa e secular opressão latifundiária. Equivale a dizer que estavam violando abertamente o mais sagrado de todos os privilégios secularmente estabelecidos desde os começos da colonização européia no Brasil - o monopólio da terra nas mãos de uma minoria a explorar a imensa maioria.

Era, sem dúvida, o mais nefando dos crimes contra a ordem dominante. Entendamos por ordem dominante aquela formada pelos republicanos, o Exército a serviço da República, os latifundiários e seus representantes no Parlamento e na imprensa. Imagine-se o seu espanto, a sua perplexidade ante um movimento armado no campo. Admitir que se batiam os pobres do campo contra a opressão feudal era admitir que tinham o direito de fazê-lo. Era admitir o feudo e a miséria dos trabalhadores. Assim, sentiram a necessidade de ocultar aquelas que, em sua concepção, seriam as verdadeiras causas das lutas que surgiam no interior da Bahia, esconder seus reais objetivos.

Diz FACÓ (1965 : 82, 83 ) :

Procuraram sempre, através de toda a história do Brasil, desvirtuar essas lutas no nascedouro, apresentando-as como simples atos de banditismo. Esmagavam-nas de um golpe ou tratavam de desalojar os combatentes, dispersá-los, para deformar o sentido inicial da luta e o motivo determinante, e transformar os insurgentes em reles bandoleiros, condenando-os ao papel de salteadores, sem apoio firme entre as populações rurais às quais estavam ligados mais diretamente e onde constituíam uma ameaça à grande propriedade territorial. Mas, enfrentar um baluarte fixo em pleno sertão, cercado pela simpatia e o apoio das populações rurais como foi Canudos, era uma situação nova para as classes dominantes. Por isso, quando rebentou a luta armada dos habitantes de Canudos, fazendeiros, Governo, toda a imprensa das classes dominantes, republicana ou restauradora, mostraram-se mais que surpresos - alarmados. Para tirar-lhe a importância social, caracterizaram-na desde logo como um surto de banditismo ou fanatismo religioso, e nada mais. Para melhor combatê-la e obter neste combate o apoio do povo, faziam crer também que era um movimento anti-republicano pela restauração da monarquia. Porque monarquia representava escravidão, atraso, obscurecimento, o que devia ser degradante para o povo, contra aspirações populares de liberdade e progresso.

Com efeito, analisando os jornais da época, os relatórios militares e as correspondências havidas e recolhidas então, constata-se esse estado de animosidade da classe dominante contra os jagunços. Pelo menos, dois livros reúnem notável número desses escritos: um é a tese de livre-docência de Walnice Nogueira Galvão, submetida em julgamento no ano de 1972, e logo após publicada pela Atica, SP, sob o título No calor da hora ; o outro é a recente publicação da Editora da Universidade de São Paulo - EDUSP, dada em 1999, organizado por Consuelo Novais Sampaio, intitulado Canudos - cartas para o barão.

Analisemos alguns textos.

Sabia-se que Antonio Conselheiro era um homem razoavelmente letrado e que escrevia com certa correção, como se pode verificar nos autógrafos, inclusive carta que o Instituto Histórico e Geográfico da Bahia possui. Os trechos em seguida fazem parte de um texto que é evidentemente uma paródia e faz, ademais, uma série de comentários jocosos sobre a Guerra de Canudos e sobre meandros da política central que nem poderiam ser do conhecimento do líder sertanejo. Trata-se do Manifesto do Antonio Conselheiro, publicado no jornal A Notícia, do Rio de Janeiro, na seção Caleidoscópio, em 1897, coletado por Walnice Galvão em No calor da hora. Lendo-o, percebe-se hoje que a intenção do autor era clara : ridicularizar Conselheiro, colocando-o sob a ótica da subversão e do atraso, da barbárie que não mais poderiam coexistir com o clima progressista da República recém-instaurada e com os anseios da classe dominante. Observemos alguns trechos e a grosseira tentativa de minimizar o chefe dos jagunços, no plano das idéias e na ortografia :

"Meus jagunçu queridu da minha arma. - Arresolvido cumo estou a butá abaixo esta república que é a mandinga desta terra das mata virge, venhu chamá ocês tudo as arma promode enchê us claro qu´as força do governo abriu na minha gente. Ocês são testimunha que eu estava aqui bem sucegado cumprindo a missão que Deus me deu de sarvá as arma dos fié da verdadeira religião de Jesus e fazendo o pussuvi promode enchê de benefiçu esta terra amardiçoada, mas os republicanu intendeu que o Brasi é só dos eregi ( ...) "

" Jagunçada minha, vamu recebê a tiru essa cambada di eregi mandada plu diabo si mascarandi-se de republicanu pra inganá us tolo e pençandu que os outro são burro. Iche ! Si o Bom Jesus, figurado e incarnado em eu vencê essa bataia tudo quanto é jagunço das arredondeza Qui tivé pegado nas arma santa com fé vai direitinho pru céu nu momentu fatá da morte (...) "

" As arma! Purtanto. Corra tudo pra defendê a santa missão de Deus contra esses sugeitos que botaru o cambiu numa pindaiba dus diabo desdi que o imperadô foi inxotadu da sua terra natá onde canta us sabiá (...) Os republicanus queren é si inchê bem pra gozá o mundo com as muié. Pur isso é que eu digu pra trazê as muié cá pru arraia onde mais antis cuzinhá e trabaiá pra nois du que sê agarrada plus eregi, cujos tem o diabo no corpo. Aqui ellas não ganha dinhero mas ganha a graça de Deus si trabaia tudo bem trabaiadinho i sem pedi ordenado coisa que por aqui não há. Louvado seja Nosso Sinhô que paga mió que quarquê capitalista das cidades (...)"

Ainda em No calor da hora, Walnice Galvão fala de textos apócrifos ou possivelmente apócrifos. Um exemplo é o que aparece no jornal Diário de Notícias, da Bahia, edição de 22 de setembro de 1897, na primeira página. É o Credo de Antonio Conselheiro, texto elaborado, novamente, com a explícita intenção de jogar Conselheiro contra a República. Notemos :

" Creio no Sr. D. Pedro segundo, ex-imperador e defensor perpétuo do Brasil, criador da constituição monárquica do Império, do Exército e da Armada que o depuseram; creio na Princesa D. Isabel que é a sua filha e legítima herdeira da coroa, que casou-se com o Sr. Conde D´Eu, que nasceu no Rio de Janeiro e foi dali banida com seu velho pai, padecendo este e todos seus sob o poder da malvada República, representada pelo governo provisório de Deodoro da Fonseca; que o velho monarca morreu apaixonado na Europa, onde foi sepultado, por ser obrigado a abandonar o Brasil e seus caros filhos, descendo o país ao pântano da miséria, donde ressurgirá em breve com a restauração da Monarquia, subindo ao trono a aludida princesa, onde permanecerá assentada à mão direita de seu marido, que se tornará poderoso e donde há de vir a julgar todas as obras daqueles hereges e conspiradores republicanos que tanto concorreram para a perdição do país; creio na coragem e fidelidade dos meus jagunços, na sua ressurreição, na vitória alcançada por João Abade e Macambira, na restauração da Monarquia e na vida eterna dos meus sonhos. Amém."

A defesa da propriedade fundiária estava no grito de luta que uniu todos os setores das classes dominantes na guerra contra Canudos. A campanha de formação de opinião pública era implacável, mesmo após o final da guerra. GALVÃO (1994 : 95) diz a respeito :

Se, para o General Artur Oscar, em carta que enviou ao República e que saiu na edição de 9 de setembro de 1897, os rebeldes de Canudos eram "estes miseráveis e sórdidos jagunços"; se, para o autor do soneto comemorativo da vitória, dedicado ao soldado brasileiro, intitulado Anônimo sublime, que saiu n´O República de 13 de outubro de 1897, Antonio Conselheiro era um "mísero embusteiro" e seus homens uma "cáfila assassina"; se o telegrama que a deputação federal baiana enviou ao governador da Bahia, e que foi estampado na primeira página da Segunda edição d´A Notícia em 7/8 de outubro, congratula-se pela "completa destruição de Canudos, baluarte de bandidos e fanáticos, atentado à ordem legal e instituições"; e se, em discurso comemorativo publicado na mesma página, o Presidente da República fala "desses fanáticos aglomerados junto a um velho mentecapto talvez" e declara biblicamente que "em Canudos não ficará pedra sobre pedra", não é dos intelectuais que devemos esperar uma linguagem diferente.

Com efeito, os intelectuais, representados em grande parte pelos acadêmicos baianos, terminariam um manifesto publicado em Gazeta de Notícias, meses antes do fim da guerra, precisamente no dia 1º de abril de 1897, da seguinte forma : "O fanatismo rebelado em Canudos é uma nódoa, uma vergonha que cumpre extinguir de pronto e por completo (...)"

E durante a guerra, a campanha movida pelas classes dominantes mostrava-se acirrada. Era necessário que, a todo custo, a opinião pública nacional da época e o juízo crítico futuro da História tivessem uma única leitura quanto à rebelião armada em Canudos : Conselheiro e sua gente formavam uma horda posicionada na contramão da modernidade, indo de encontro aos anseios da República, esta, sim, manifestação do progresso, do avanço, da linha de frente do concerto nacional de suas unidades federativas.

A classe dominante brasileira de então asseverava que os conselheiristas não cogitavam apenas em restaurar a Monarquia. Nutriam, também, a pretensão de se conservarem independentes, livres de toda a ação governamental. Não pensavam em destruir sistematicamente a República, regime que não compreendiam. As autoridades supunham que os jagunços teriam da República uma limitadíssima idéia, e que se conhecessem alguma coisa de socialmente útil, essa coisa não ultrapassaria a dimensão da estreita região agreste, quase bárbara, onde assentavam seus arraiais. Julgavam mais : que o fanatismo rebelado em Canudos conservava-se no interior da Bahia, de forma obstinada, à espera de uma inevitável destruição - o aniquilamento inexorável de um povo fraco por um povo forte, conforme nos diz Euclides da Cunha - que iria, mais cedo ou mais tarde, realizar-se para desagravo da civilização brasileira e da honra de seu Exército, gravemente ofendida pelas desastrosas conseqüências das mortes infelizes de seus soldados e de seus mais ilustres oficiais.

"O fanatismo rebelado em Canudos é uma nódoa, uma vergonha, que cumpre extinguir de pronto e por completo." Tal era o espírito que movia a classe dominante.

Um outro livro que nos leva a entender melhor esse medo e reação da classe dominante diante do episódio dos conselheiristas intitula-se Canudos - cartas para o barão, organizado por Consuelo Novais Sampaio, publicado pela Editora da Universidade de São Paulo -EDUSP, primeira edição em 1999. Este livro reúne 70 cartas que compõem uma pequena parte do arquivo privado do barão de Jeremoabo.

Este ilustre político, de nome Cícero Dantas Martins, foi um dos mais ativos e combativos homens públicos da Bahia. Durante a campanha de Canudos, era ele dono de 61 fazendas (59 na Bahia e 2 em Sergipe), tendo sido, possivelmente, o maior proprietário rural dos sertões. Exercia o hábito de a todos ouvir e atender, procurando conciliar divergências e coordenar interesses pessoais. As cartas e documentos que constituem o seu arquivo testemunham suas múltiplas atividades e sua insofismável liderança política.

Mantinha correspondência ativa com todos os amigos. E esses amigos eram, em sua grande maioria, proprietários rurais e homens públicos. Daí, a leitura e a análise do teor dessa correspondência havida na época do conflito podem proporcionar uma avaliação mais precisa do pensamento da classe dirigente local e da sociedade sertaneja em geral. Selecionei trechos significativos de 10 cartas. O conjunto desses trechos leva à compreensão do sentimento dessa parcela da classe dominante em relação aos conselheiristas. Notemos :

" (...) Seguiu daqui e destas imediações esta semana para o Conselheiro umas 16 a 20 famílias, é um horror !! ... (...)" Carta do tenente-coronel Marcelino Pereira Miranda, 12 de janeiro de 1894.

"(...) O Antônio Conselheiro continua a ser o motivo da saída de muita gente daqui, e outros pontos, que ameaça ficarão despovoados. O êxodo agora de nossa gente é grande e o Governador não pode agora tomar providências, que são urgentes. Compreendo que, quando a miséria, que já começa a manifestar-se em Canudos, tomar proporções maiores, os roubos e assassinatos serão a conseqüência do pouco caso com que se olha para os primeiros atos daqueles monomaníacos. Quem for fazendeiro nas proximidades de Belo Monte (assim se chamam hoje os Canudos) há de pagar o descuido e a negligência dos que nos governam (...)" Carta do coronel Aristides da Costa Borges, deputado estadual, 9 de fevereiro de 1894.

"(...) Ontem fomos surpreendidos com a aparição de dezessete sicários do Antonio Conselheiro, armados até os dentes; demoraram pouco e seguiram para os lados daí; a notícia que correu foi que iam em busca de um portador que foi levar uma musica no Riacho e não voltou mais, tendo trazido alguns animais. Principiam as correrias, em breve os roubos e desrespeito às autoridades, e como repelir-se!!! " Com uma só praça que tem no Pombal (...)" Carta do tenente-coronel Antonio Ferreira de Brito, 10 de fevereiro de 1894.

"(...) O Conselheiro está agora percorrendo as Vilas deste sertão e planta-nos sua lei, que ele é o Governo desta terra sem lei, pior governo. Ontem subiu com um pessoal imenso, e tendo raspado esta terra aos vinténs que tinha e tudo mais, o povo dando e pedindo esmola. Pessoas que nunca julguei acompanhá-lo seguiram com ele. O Conselheiro tornou a voltar pelo Monte Santo, Tucano, Pombal e fazer sua volta por aqui carregando madeira, carregando o povo, e os últimos recursos e plantando sua lei, sem Ter embaraço, pois não houve, não há, e nem haverá governo!!! Estamos derrotados neste sertão, Sr. Barão, não me retiro porque estou feito defunto, é quanto basta dizer-lhe (...)" Carta do coronel José Américo Camelo de Sousa Velho, proprietário rural, 2 de janeiro de 1896.

"(...) Estamos ameaçados agora da visita do Conselheiro, e era o que nos estava faltando por aqui !... Ontem chegou ao Juazeiro uma força de 100 prças do 9º, requisitada pelo juiz de direito e comércio. A população está alarmada, e algumas pessoas já se mudando. Consta que vem a pretexto de levar um taboado para uma igreja que está fazendo. Além da carestia dos gêneros que já é excessiva, ainda mais esta (...)" Carta do coronel Francisco Martins Duarte, 8 de novembro de 1896.

"(...) A expedição dos Canudos oferece séria dificuldade por causa das distâncias, e só terá bom êxito se a força for numerosa e bem comandada. A loucura de mandar cem homens já deu os resultados conhecidos, retornando aqui setenta soldados em mísero estado. Consta que já tem havido nos Canudos crimes bárbaros. Avalie o que se sucederá se a força conseguir bater os adeptos do Conselheiro. Dispersos em grupos começarão em larga escala as mortes, roubos etc. Tudo isto por não se ter operado em tempo. Deus nos dê tranqüilidade." Carta do bacharel Benigno Dantas, proprietário rural, 5 de dezembro de 1896.

"(...) Como vai o célebre Conselheiro? Daqui tem seguido para desbaratar este fanático e seu povo muita tropa e munições. Já foram uns quatrocentos soldados, que vão ser comandados pelo capitão Salvador. Eles contam, depois de algumas escaramuças, assediar aqueles pobres-diabos nos Canudos para arrasá-los com a artilharia. É possível que desta vez liquidem a questão, embora com grandes sacrifícios e dispêndios, quando de há muito já poderiam tê-lo feito sem maiores dificuldades. O que sei é que eu serei o mais prejudicado, pois com certeza na nossa fazenda não deixarão pedra sobre pedra(...)" Carta do juiz federal Paulo Martins Fontes, proprietário rural, 12 de dezembro de 1896.

"(...) Escrevi-lhe por seu pai e não tenho carta sua a que devo resposta. Meu irmão, portador da presente, é carta viva e lhe dirá os dias amargurados e aflitivos por que temos passado, receando, a todo momento, ser esta vila invadida e saqueada pelos sicários de Antonio Conselheiro e seus habitantes trucidados. O sobressalto é geral e estamos de sobreaviso para retirarmo-nos logo que chegue qualquer notícia desagradável. Quem pensaria que este maníaco ou perverso fosse tão funesto? Quanto sangue derramado somente pela incúria do governo que, apesar de avisado, não preveniu em tempo o mal. Que complicação não trará ainda este negócio, que cada vez vai mais se complicando. Deus se compadeça de nós(...)" Carta do Dr. Reginaldo Alves de Melo, proprietário rural, 18 de março de 1897.

"(...) Não acredito no extermínio completo dos bandidos que não oferecem combate, limitam-se a guerrilhar, o que torna quase impossível uma ação completa. Entretanto, parece que há desânimo entre eles, que têm emigrado em grande número. Deus proteja a nossa causa. Tenho lido com cuidado o que há sobre política, e quer me parecer que os governantes naufragam na luta(...)" Carta do coronel Aristides Costa Borges, 20 de julho de 1897.

"(...) Peço-lhe e dou minhas alvíssaras pela morte do monstro horroroso do Brasil, Antônio Maciel; assim como dos seus maiores confidentes, Macambira, Norberto, Manuel Franco, que levaram com o monstro três dias esperando sua ressuscitação, desenganados deram sepultura em uma rasa cova. Os jagunços estão se reunindo nas caatingas e dizendo que o infeliz tem de ressuscitar para vir mostrar que é Deus. Já vi portanto que o fanatismo ainda não se acabou destes malvados, e ficam sem serem perseguidos nestes pontos onde estão muito pior (...) Este fim deveria deixar tudo liquidado e findo (...)" Carta do coronel José Américo Camelo Sousa Velho, 15 de outubro de 1897.

Os trechos aqui selecionados foram extraídos de cartas que abrangeram, basicamente, o período de 1894 e 1897 e estão dispostos em ordem cronológica. São contemporâneas da guerra de Canudos. Seus remetentes pertenciam à elite política, militar e mesmo ruralista. Nota-se, por sua leitura - e há de se dizer que as outras sessenta cartas publicadas no citado livro apresentam o mesmo teor - um medo coletivo que tomou conta daqueles ilustres membros da classe dominante.

O exame dessas cartas sugere que a questão de Canudos se agravou em relação direta ao acirramento da disputa pelo poder entre grupos oligárquicos, tanto no plano nacional, como no estadual e municipal.

Fica claro que essa parcela da classe dominante não ajudou a construir ou proteger Canudos, mas a destruir, expugnar , exterminar Canudos, de modo a não restar "pedra sobre pedra".

Eles sentiam medo, mas não um medo costumeiro. Quando as populações sertanejas vivem o medo das secas prolongadas, das doenças de toda espécie, das arbitrariedades da força policial, das punições da Igreja Católica, das devastações do banditismo etc., eles estão, em verdade, exercitando mecanismos que desenvolveram para administrar esses diversos medos. É o medo cotidiano, é o medo costumeiro.

Analisando o medo das classes dominantes em face de Canudos, pode-se inferir que este medo foi um medo construído, com um determinado fim.

A hipótese não é nossa. É de Consuelo Novais Sampaio, que organizou o livro Canudos - cartas para o barão.

Diz SAMPAIO (1999 : 32) :

O medo que destruiu Canudos foi um medo diferente. Em contraste com esses medos, foi um medo construído, não só pelas facções políticas em luta mas, principalmente, pela Igreja Católica e pelo Exército. A imprensa (grande e pequena) encarregou-se de recriar e de espalhar esse medo que, de boca em boca, foi impregnando os brasileiros, até atingir o paroxismo da perversidade, após a fragorosa derrota da terceira expedição militar (...) Ao contrário do que ocorreu nas revoluções e rebeliões estudadas por aqueles renomados historiadores franceses, as quais promoveram mudanças estruturais e imprimiram avanços no processo histórico, o medo que destruiu Canudos não surgiu das camadas populares nem impeliu o progresso. O medo de Canudos foi um medo construído pelos de cima, com o propósito de enfraquecer e mesmo aniquilar forças adversárias, numa cruenta disputa pelo poder político no interior de uma mesma classe social.

É interessante notar que após a guerra, aquele medo construído provocou esturpor, impôs uma trégua na disputa entre as facções políticas rivais e no confronto entre o militarismo, dominante nos primeiros anos da República, e o civilismo, que procurava se impor. Quando se dissipou, teve um efeito paralisante e mesmo retrógrado. O statu quo das classes dominantes foi preservado e os campesinos sem posse foram contidos, voltando ao quietismo que lhes havia sido reservado pela elite. Ou seja, Canudos, que representava uma reação coletiva dos sem-terra, foi exterminada, física e ideologicamente

O líder dos jagunços não poderia ficar impune a essa estratégia do sistema. Antonio Conselheiro foi vítima das mais torpes manipulações políticas de todos os plnos do poder. Durante a Campanha, o vice-presidente da República em exercício, Manuel Vitorino, conseguiu dar concretude ao fantasma da restauração monárquica, manipulando a figura carismática de Conselheiro. E ao reassumir o seu posto, no mesmo dia em que o coronel Moreira César caía fulminado no campo de luta (4 de março de 1897), Prudente de Morais valeu-se do mesmo recurso e convocou todas as forças do país para aniquilar Canudos. Dessa forma, o medo construído atingiu o auge e a já combalida comunidade sertaneja foir exterminada para a satisfação de interesses personalistas e imediatos.

Esse medo construído, tão bem percebido e enfocado por Consuelo Novais Sampaio, terminou por desembocar no grande medo que cobriu de sngue e cinzas as terras do sertão baiano.

E quais eram os ingredientes desse medo ?

- o fantasma da restauração monárquica;

- o fantasma das fazendas destruídas.

- A idéia propalada de restauração monárquica serviu aos interesses políticos da esfera federal; a idéia das fazendas destruídas manifestou-se na região da guerra, no interior da Bahia, mas serviu também de elemento aglutinador das classes dominantes.

E fica, aí, clara uma outra visão do conflito nas respostas a uma questão específica : por quê jagunços e classes dominantes se combatiam ?

. Os jagunços combatiam as classes dominantes , antes de tudo, em defesa de sua própria sobrevivência; e, de uma forma espontânea, não consciente, contra a secular opressão latifundiária.

As classes dominantes combatiam os jagunços pela manutenção do statu quo (a República e seus segmentos políticos e ideológicos) e pela preservação da grande propriedade latifundiária, a maioria imensos latifúndios, maiores que alguns países europeus.

Em relação a esse jogo de interesses, SAMPAIO (1999 : 77) manifesta sua opinião :

A Guerra de Canudos não foi apenas mais um capítulo da história do Brasil. Ela revela com precisão a grande distância que, neste país, sempre separou - e no limiar do século XXI ainda separa - o "povo miúdo" , a classe pobre e miserável , das classes dominantes. Em todos os níveis de tomada de decisão, o movimento conselheirista foi manipulado para a satisfação de interesses pessoais e de grupos políticos em luta pelo poder (...) O medo construído resultara em uma das mais dramáticas destruições da história do Brasil. A ele se seguiu um quietismo constrangedor, quase absoluto. No sertão, o medo costumeiro passou novamente a primeiro plano, com a deterioração das já precárias condições sanitárias, a incidência crescente de doenças mortais, a seca avassaladora e as costumeiras perseguições políticas.

Já se disse que quem manipula o poder manipula também o esquecimento. Sabemos que hoje Canudos são ruínas que jazem no fundo de uma represa. E é curioso saber que a construção do açude de Cocorobó, que inundaria irremediavelmente Canudos, tenha ocorrido no ano de 1969, quando o Brasil vivia o auge da repressão do regime militar, o mesmo regime que aponto na Introdução desta dissertação.

E o homem do sertão ?

O homem do sertão continua à espera de quem lhe aponte o caminho da esperança e da redenção.

Pelo exposto neste capítulo, creio em ter ficado clara a idéia da exclusão social dos conselheiristas e o olhar da classe dominante sobre esses pobres do campo : OS JAGUNÇOS ERAM SUJEITOS A EXTERMINAR.

Fechemos esta parte com Euclides DA CUNHA (1973:392) :

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História. Resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas : um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA , Euclides da. Os Sertões. São Paulo, Cultrix : 1971.

FACÓ , Rui. Cangaceiros e fanáticos. 2.ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira : 1965

GALVÃO , Walnice Nogueira. No calor da hora. 3.ed. São Paulo, Ática : 1994.

SAMPAIO, Consuelo Novais (org.). Canudos - cartas para o Barão. São Paulo, Edusp : 1999.

 

 

 
Everton de Paula
 
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