Há 107 anos, no dia 14 de maio de 1902, Euclides da Cunha enviou, de Lorena, uma carta a Francisco Escobar, amigo de São José do Rio Pardo. O objetivo era lembrar o aniversário da ponte sobre o Rio Pardo, que terminara de reconstruir no ano anterior, após grave desastre. Na carta, pedia que alguns amigos, que acompanharam seu trabalho, fossem até a ponte naquele dia para comemorar a data, tendo em vista que não estaria presente como tanto desejava. Recomendou ainda que Escobar não deixasse de mandar notícias sobre os principais episódios da festa. Euclides da Cunha tinha sido o engenheiro responsável pela reconstrução dessa ponte, desmoronada poucos dias após sua primeira inauguração, por motivo de falha técnica do engenheiro anterior. O desabamento da ponte e a sua reconstrução acabaram dando origem a uma história incomum, resultado de uma conjunção seqüencial de fatos extraordinários. Esses acontecimentos, com o tempo, deram notoriedade à cidade e transformaram a ponte em “acontecimento criador” de uma tradição comemorativa, inédita na vida do país. O historiador Christopher Lee fez a seguinte afirmação: “As pessoas fazem a História, mas raramente se dão conta do que estão fazendo”. Certamente, os personagens que participaram dos eventos iniciais dessa surpreendente história, ainda inacabada, não percebiam que eram protagonistas de acontecimentos que marcariam a memória e a história da cidade. Da mesma forma, muito provavelmente, a maioria dos rio-pardenses de hoje não tem consciência da importância dessa história, do que já feito e do que ainda se tem de fazer pela centenária Ponte de Euclides, hoje transformada em símbolo de identidade, presente na bandeira, no brasão, no hino, em lemas e emblemas da cidade. Em maio de 1902, Euclides da Cunha, mesmo não morando mais na cidade, lembrou-se do aniversário da ponte, uma obra em que se empenhara profundamente, procurando reparar um erro, uma empreitada trabalhosa, de execução difícil e que lhe custara e à família três anos de residência na acanhada cidadezinha de São José do Rio Pardo. Ali, enquanto se ocupava com os árduos trabalhos exigidos pela função de engenheiro, ainda encontrou tempo para terminar de escrever “Os Sertões”, projeto prioritário que não precisou adiar, e que, no momento em que se preocupava com o aniversário da ponte, estava em fase adiantada de publicação. O livro só chegaria às mãos do público em dezembro daquele ano, consagrando-o imediatamente como escritor genial, no parecer dos mais conceituados críticos literários da época. Francisco Escobar foi um providencial amigo de Euclides em São José do Rio Pardo. Amizade sedimentada por intensa troca de correspondência entre ambos, considerada peça chave para o entendimento de muitos fatos relacionados à vida do escritor e do seu relacionamento com a cidade. Escobar, homem culto, político atuante, bem relacionado, foi intendente do município no período de 1896 a 1899, que coincidiu com as etapas de construção e reconstrução da ponte. A fase de construção esteve sob a responsabilidade do engenheiro Arthur Pio Dechamps de Montmorency. Este, enquanto administrava os trabalhos de construção da ponte, assumiu também todas as iniciativas necessárias para a construção de uma usina hidrelétrica na cidade, financiada por um grupo de empresários do lugar, do qual o engenheiro era participante majoritário. A ponte de Montmorency e a luz elétrica foram inauguradas solenemente na tarde de 19 de dezembro de 1897, com muita festa, conforme ata da Câmara Municipal. Cinqüenta dias depois a ponte tombou. O ano de 1897 foi difícil também para o engenheiro Euclides da Cunha, funcionário da Superintendência de Obras Públicas de São Paulo. Esteve em São José do Rio Pardo por duas vezes, fiscalizando o andamento dos trabalhos da ponte de Montmorency. Licenciou-se da Superintendência, em maio. Publicou artigos sobre o levante de Canudos, no “O Estado de São Paulo”, comparando-o a um foco rebelde de monarquistas. Em agosto, viajou para Canudos como repórter, convidado por Júlio de Mesquita. Na volta, publicou artigos que indicavam o plano de um livro sobre os acontecimentos que presenciou na Bahia. Abalado, recebeu a notícia do desastre da ponte e decidiu repará-lo. Em fevereiro de 1898 já estava morando na cidade. Escobar recepcionou o engenheiro que chegava. Pelas afinidades que possuíam, cultivaram uma longa e sincera amizade. Consta que Escobar assessorou Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo em todas as suas necessidades, inclusive com providências ligadas à redação de “Os Sertões”, obra que o consagraria internacionalmente. Pesquisas publicadas por Del Guerra informam que a ponte foi inaugurada no dia 18 de maio de 1901, com festas, presença de autoridades e de populares, fogos, bandeirinhas, banda de música, discursos de agradecimentos, oferta de presente ao engenheiro bem sucedido, manifestações públicas de reconhecimento pela sua dedicação e empenho no bom término daquele trabalho. Laconicamente, no dizer de Del Guerra, Euclides agradeceu e dividiu os méritos da vitória com os operários que o assessoraram. Em seguida, um grupo formado por autoridades e povo, em meio a vivas e aclamações, fogos e banda de música, atravessou a ponte. À noite, houve nova concentração na frente da casa de Euclides da Cunha, com mais discursos e banda de música. Retribuindo, o engenheiro e sua esposa ofereceram aos presentes uma mesa de doces. Poucos dias depois, Euclides, sua esposa e os três filhos, um deles nascido na cidade, deixaram o lugar, aonde ele retornaria mais uma única vez, em agosto daquele ano, preocupado com a possibilidade de uma rachadura num dos pilares da ponte, que não se confirmou. A carta de Euclides da Cunha a Francisco Escobar, lembrando o aniversário da ponte, foi rememorada, em 1970, por Hersílio Ângelo, considerado, ao lado de Oswaldo Galotti, o consolidador das comemorações euclidianas e o criador das Maratonas Intelectuais, em São José do Rio Pardo. Hersílio Ângelo publica naquele ano o artigo “O Culto Euclidiano”, procurando esclarecer a trajetória desse movimento, a pedido do jornal Gazeta do Rio Pardo. Em seu texto de reconstituição da memória da comemoração, Hersílio Ângelo toma como referência a carta de Euclides a Escobar: “ Não conto mais com a fidelidade da memória, nem possuo arquivo. Difícil manusear jornais antigos. Conformemo-nos, nesta evocação, com as fatais omissões involuntárias. De outiva, todos sabem que as primeiras homenagens à memória de Euclides da Cunha foram uma pequena romaria à cabana de Euclides. Meia dúzia de admiradores, num 15 de agosto de 1912.” Em seguida, mencionando a carta, chama a atenção para o fato de Euclides ter desejado uma festa no aniversário da ponte e que esse fato pode ter sido a origem das futuras comemorações. Como o desejo de Euclides vingou e teve continuidade, considerou Euclides um “profeta”: “ Mas como Euclides era um poeta e um profeta de nossos eventos, (...) o embrião das nossas comemorações euclidianas pode estar numa carta a Escobar, escrita em Lorena, a 14/ 5/1902 (...), uma semente lançada em boa terra. Uma semente que germinou na lembrança da cidadezinha, que não permitiu o esquecimento da figura de um engenheiro (...), sempre ocupado com a reconstrução da ponte metálica, convivendo com um pequeno grupo – o escol da região.” Transcreve a seguir a carta de Euclides: “ Sempre planeei estar aí ( S. José do Rio Pardo), no dia 18, 1º aniversário da ponte. Mas estarão você, o Álvaro, o João Moreira, o Jovino. Encaminhem-se para lá naquele dia, paguem uma cerveja ( barbante) ao velho Mateus e recordem-se por um minuto do amigo agradecido ausente. Será uma bela comemoração. Neste país de esnobismos reles não desejo outras. Manda-me dizer depois os episódios principais da festa.” A esperada comemoração não aconteceu. Os amigos convocados não compareceram. Em junho, novamente em carta a Escobar, Euclides manifesta sua decepção e descontentamento pela não realização da festa e pela fraca adesão dos amigos ao seu pedido: “ Magnífico! A comemoração do aniversário da minha ponte ( ah! não estar ela num dos trechos deste incomparável Paraíba) não poderia ser melhor. Convirás em que eu nunca imaginei que lá aparecessem algumas centenas de indivíduos, que, com foguetes, as bandeirolas velhas, o assovio dos moleques e os tabuleiros de doces, são a matéria-prima do que nesta costa d’África da América se chamam manifestações! ... Não! Sempre desejei aquilo: dois ou três amigos que ali chegassem e se lembrassem, durante algum tempo, de mim. Iludi-me apenas num ponto: os numerosos quatro amigos de que lhe falei antes, reduziram-se a dois: você e o Lafayette. Mas estes... Estou satisfeitíssimo.” O decepcionado engenheiro não podia imaginar o que ainda estava por acontecer. Naquele momento, não tinha condições de prever o sucesso que o seu livro, ainda no prelo, muito em breve alcançaria. Nem podia imaginar tampouco que a ponte e o livro, considerados por ele como irmãos gêmeos, seriam um dia símbolos da cidade, comemorados e reverenciados anualmente em grandiosa festa. Uma observação atenta das duas cartas mencionadas demonstra o que os fatos posteriores comprovaram: Euclides da Cunha não pensava e não enxergava como as pessoas comuns. Como as demais pessoas do seu contexto social e afetivo, viveu em São José do Rio Pardo uma experiência única, participou de situações e acontecimentos extraordinários, singulares, mas que só ele percebia. Afinal, o desmoronamento da ponte e a sua reconstrução, no contexto e da forma que aconteceram, não eram fatos comuns. Euclides percebia as repercussões futuras desses acontecimentos para a cidade, se não caíssem na vala dos esquecimentos, como era comum em toda sociedade. O apelo aos amigos, o desejo de um ato de lembrança, a decepção por nenhuma comemoração ter acontecido refletem um desejo de Euclides: o de que nada do que aconteceu poderia ser esquecido. Apelou aos amigos, fez sugestões, decepcionou-se, criticou o descaso, a falta de entendimento, da mesma forma que em “Os Sertões” procurou mostrar à nação o que de fato havia acontecido, narrando os fatos de um outro ponto de vista, pela perspectiva do oprimido. Euclides tinha opiniões diferentes e divergia das interpretações próprias do seu tempo. Valorizava os grandes e os pequenos acontecimentos, a história dos ignorados, das massas populares, procurava dar visibilidade aos pobres, às tradições populares. Quem, além dele, teria se lembrado do “velho Mateus”, naquele momento? Quem, além dele, se lembraria de criticar os “esnobismos reles” de uma sociedade de pretensos aristocratas e de como eram interpretadas as festas do povo por essa sociedade? Euclides já demonstrava uma tendência interpretativa, que só ganharia expressão, nos estudos de História, a partir de 1965, com os trabalhos do historiador inglês Edward Thompson, com a valorização da chamada micro-história e da “história vista de baixo”. Hersílio Ângelo, providencialmente, resgatou o sentido da carta. Ele também não era um cidadão comum. Possuía discernimento, senso crítico, responsabilidade intelectual e social. Assim como Oswaldo Galotti e tantos outros lúcidos moradores da cidade, fazia parte de um “grupo de memória”, os euclidianos, comprometidos com o resgate e a preservação desses acontecimentos. Professor Hersílio, ao ligar o desejo de Euclides a um futuro vislumbrado e impressionantemente realizado, abriu caminho para novas reflexões e novas interpretações sobre os sentimentos de Euclides em relação aos acontecimentos que viveu em São José do Rio Pardo. Tema que requer a colaboração da psicologia histórica e da psicologia social, disciplinas indispensáveis para auxiliar na interpretação das motivações conscientes e inconscientes que movem as escolhas individuais e coletivas. No caso presente, as motivações de Euclides e as da coletividade de São José do Rio Pardo. “As pessoas fazem a História, mas raramente se dão conta do que estão fazendo”. Euclides e alguns raros homens se deram conta da importância dos fatos acontecidos em São José do Rio Pardo. Seria providencial se no presente outros tantos e não tão raros homens se apercebessem da importância dos fatos que surpreendentemente aconteceram em São José do Rio Pardo, a partir do desabamento e da reconstrução da ponte. Homens com o mesmo discernimento dos homens de outrora que, munidos de vontade e de liberdade de escolha, decidiram perpetuar essa memória e essa história. Se assim for, provavelmente, daqui a cem anos, a cidade não terá que comemorar compungida a memória de Euclides, reunida em torno das ruínas do que foi um dia a famosa Ponte de Euclides.
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