Euclides da Cunha e São José do Rio Pardo
08/09
Cármen Cecília Trovatto Maschietto
“Mas, foi aqui, em São José do Rio Pardo, que Euclides encontrou o ambiente propício para a reconciliação consigo mesmo. A cidade, generosa, abrigou sua esposa, abrigou seus filhos, abrigou seu corpo fatigado e descrente. A cidade, generosa, lhe trouxe Francisco Escobar e muitos outros amigos. Foi aqui, e em nenhum outro lugar do planeta, que Euclides pode, novamente, acreditar num sonho que o guiava por toda a vida, mas que andava meio estremecido. O sonho da humanidade, da universalidade, da ciência posta a serviço do homem, da paz, do progresso, da civilização e da diversidade cultural. Porque só um homem reconciliado consigo mesmo poderia escrever Os Sertões”.
(Regina Abreu, 1998)
Cármen Cecília Trovatto Maschietto
UMA PONTE NO CAMINHO DE EUCLIDES DA CUNHA
No início de 1898, o engenheiro Euclides da Cunha, funcionário da Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo, foi morar em São José do Rio Pardo, com a esposa Ana e os filhos Euclides e Sólon. Ali nasceria seu terceiro filho, Manoel Afonso. Não estava nos planos do engenheiro e nem nos do jovem casal essa mudança de cidade. Euclides acabava de completar 32 anos e Ana tinha 26. Estavam casados há 8 anos e a vida da família, naquele começo de governo republicano, tinha sido bastante conturbada. Sendo engenheiro militar e exercendo atividades jornalísticas, esteve sempre envolvido com convocações, construções militares, com revoltas e publicações polêmicas, que lhe causaram punições e transtornos à família.
Euclides havia começado, em 1896, promissora carreira de engenheiro civil, após desligar-se do Exército. Decidira morar em São Paulo, que despontava como próspero centro econômico e político da República, onde desfrutava de bons relacionamentos junto a setores influentes da burguesia. Tinha planos de conciliar e consolidar as profissões de engenheiro e de jornalista e, finalmente, acomodar a família e conquistar estabilidade financeira.
Nesse momento decisivo, quando iniciava vida nova, teve que se mudar com a família para São José do Rio Pardo, por causa do desabamento de uma ponte, construída sob a responsabilidade do governo do Estado.
Como fiscal dessa obra, Euclides já estivera na cidade duas vezes, antes do desabamento. Em agosto de 1897, porém, afastou-se da Superintendência para atender a um convite do jornal “O Estado de S. Paulo”, no qual escrevia com regularidade em espaço privilegiado. Seguiu, então, para a Bahia com a missão de observar de perto a rebelião de Canudos. O jornal precisava de um observador com visão crítica. Escolheu-o por sua formação militar, intelectual e científica e pelo interesse que demonstrara por aquele acontecimento ao publicar dois artigos sobre o tema. Euclides possuía credenciais adequadas para conseguir informações fiéis e completas sobre o conflito, que repercutia enormemente no país, e preparo para analisá-lo e interpretá-lo com lucidez. Um “correspondente de guerra” era uma novidade e representou uma evolução nos padrões jornalísticos da época. Para Euclides, representou um grande desafio e uma oportunidade de projetar-se e firmar-se junto ao mais poderoso grupo político do país, observando e analisando o assunto que mais interesse despertava naquele momento.
Euclides da Cunha era, portanto, pessoa renomada quando chegou a São José do Rio Pardo. Adepto e defensor intransigente da República, destacara-se desde os tempos de cadete na Escola Militar, de onde foi expulso, em 1888, por rebeldia contra a Monarquia. A cidade que o recebia possuía também fama de rebelde. Tinha sido palco de um tumulto, envolvendo grupos políticos rivais, em agosto de 1889, que culminou com a proclamação da República naquele lugar. Por esse ato de lealdade à causa republicana, recebeu do governo do Estado o honroso título de “Cidade Livre do Rio Pardo”. Os rio-pardenses sempre fizeram questão de associar a sua histórica rebeldia aos ideais de republicanismo do seu mais ilustre morador.
A rebeldia do jovem cadete rendeu-lhe também dividendos. Proporcionou-lhe projeção junto aos setores republicanos, entre os quais estava a dinâmica burguesia cafeeira paulista. Mudou-se para São Paulo, onde passou, a convite de Júlio de Mesquita, a escrever artigos no jornal “Província de São Paulo”. Começaram aí suas ligações com os paulistas, conquistando, a partir de então, visibilidade intelectual e reconhecimento por sua personalidade combativa também nesse Estado, onde seu pai residia, numa fazenda no município de Descalvado.
Com a proclamação da República foi reintegrado ao Exército, dando continuidade aos estudos. Em 1890, casou-se com Ana, filha do Major Sólon Ribeiro, militar que tivera atuação importante nos eventos da implantação da República. Formou-se engenheiro militar, profissão valorizada e fundamental naquele momento, em que o desenvolvimento e a modernização do país faziam parte do projeto republicano, um ideal ao qual Euclides da Cunha iria se dedicar por toda sua vida.
Desligando-se do Exército, voltou para São Paulo e trabalhou, desde 1895, como engenheiro civil na Superintendência de Obras Públicas do Estado, mantendo também seu espaço no jornal “O Estado de São Paulo”. Dedicando-se com total envolvimento à engenharia e ao jornalismo, colaborava tanto para a construção de obras indispensáveis ao desenvolvimento da infra-estrutura do país quanto para a difusão de idéias que ajudavam a mudar a mentalidade da população.
Foi nesse momento importante de sua carreira que acabou envolvido pelos acontecimentos inesperados do desabamento de uma ponte em São José do Rio Pardo. Descansava na casa do pai, restabelecendo-se do estresse sofrido em Canudos e já determinado a escrever um livro sobre o crime que presenciara, quando recebeu a notícia sobre a ponte.
Ao verificar de perto as dimensões do desastre e sentindo-se responsável, tomou a decisão de repará-lo.
TRÊS ANOS RECONSTRUINDO UMA PONTE E ESCREVENDO “OS SERTÕES”
Em meados de março de 1898, Euclides da Cunha e família já estavam instalados em São José do Rio Pardo, residindo num sobradinho de esquina bem no centro da cidade, hoje transformado em museu. A ponte havia desmoronado na madrugada de 23 de janeiro daquele ano, cinqüenta dias após sua inauguração. Jornais de São Paulo e do país noticiaram o desastre, criticando duramente a Superintendência, os engenheiros, o empreiteiro, cobrando os prejuízos materiais que “rodaram” com a ponte.
Essa inesperada mudança de planos na vida de Euclides, contudo, não o impediu de dar continuidade ao projeto do livro, tarefa que para ele era prioritária. Noticiários da cidade, na época, afirmaram que, desde os primeiros momentos da sua chegada, aplicou-se intensamente à difícil e complicada tarefa das obras da ponte.
Euclides, portanto, tinha naquele momento duas tarefas igualmente importantes e urgentes a cumprir. Uma, ele mesmo se impusera – o livro. A outra, fora-lhe imposta pelo destino – a ponte. Tarefas de tal magnitude consumiram o tempo e as energias daquele homem, durante os três anos em que residiu em São José do Rio Pardo. O tempo confirmou que Euclides da Cunha desincumbiu-se das duas tarefas com perfeição. A ponte continua firme e ainda útil após 100 anos. O livro é um clássico da literatura nacional, figurando no panteão das grandes obras da humanidade.
Na cidade, Euclides contou com o apoio incondicional do intendente municipal, Francisco Escobar, que se tornaria um amigo especial e dos mais queridos, durante toda sua vida. Esse apoio e amizade foram reconhecidos como decisivos para que as “obras gêmeas”, a ponte e o livro, chegassem a bom termo.
O jornal “O Rio Pardo” registrou todas as etapas e eventos da construção dessa ponte, bem como os vários acontecimentos que marcaram a vida de Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo: reuniões com amigos em sua casa para a leitura de trechos do livro que escrevia; sua participação nas festas do Quarto Centenário do Brasil, o discurso que proferiu e o artigo que escreveu sobre essa data; as festas na virada do século XIX para o XX e o artigo publicado no “O Estado de São Paulo”; as visitas de parentes vindos de lugares distantes e de pessoas do seu círculo profissional e científico; as soluções encontradas para cada etapa das obras da ponte, bem como referências sobre detalhes dessa construção; notícias sobre a redação do livro; os projetos de engenharia que elaborou ou acompanhou; as festas de inauguração da ponte em 18 de maio de 1901.
Esse período, historicamente muito valorizado, representou o momento fundador que marcaria, no futuro, o caráter cultural de São José do Rio Pardo. A Ponte de Euclides e o livro “Os Sertões” são símbolos que identificam e individualizam essa cidade, diferenciando-a das demais.
Euclides da Cunha, com 36 anos, mudou-se de São José do Rio Pardo quando os preparativos para a publicação de “Os Sertões” já estavam adiantados. O livro, que se tornaria obra prima da literatura nacional e universal, chegou ao público em dezembro de 1902, com estrondoso sucesso, transformando o escritor num gênio literário da noite para o dia. Em carta a Escobar, assim externou sua emoção: “Tu não calculas como me senti bem, ali, no meio daquela gente, que não distribui empregos; e como avaliei bem o vigor dessa minha belíssima alma sonhadora, tão desprendida das infinitas esquírolas e da poeirada de coisinhas interesseiras que deslumbram tanta gente”.
Amigos e pessoas que desfrutaram um pouco mais do seu convívio na cidade compartilharam dessa alegria e vibraram com esse sucesso. Tudo indica que continuaram acompanhando sua nova trajetória, assim como, ainda hoje, tudo o que diz respeito à memória do escritor e às suas obras mexe com os sentimentos dos moradores de São José do Rio Pardo.
CONSAGRAÇÃO E TRAGÉDIA APÓS SÃO JOSÉ DO RIO PARDO
O sucesso do livro e a consagração do escritor abriram-lhe as portas do Instituto Histórico e da Academia de Letras, elevando-o aos píncaros da glória literária, destacando-o como paladino das populações esquecidas do interior e como defensor da urgente necessidade de se conhecer e valorizar o interior do país. Imbuído dessa missão patriótica, decidiu participar de difícil e demorada expedição ao Acre, um sonho que acalentava há muitos anos.
O projeto de acomodar a família e de conquistar a tão necessária estabilidade financeira foi protelado mais uma vez, agravado, dessa feita, pela sua ausência do lar durante um ano, período em que viveu embrenhado nas selvas do Alto Purus, trabalhando na delimitação das fronteiras do Brasil e conhecendo aquela região ainda misteriosa. Ao regressar, deparou-se com sério problema conjugal, que em vão procurou remediar. Morreu em 15 de agosto de 1909, vítima de um duelo com o amante de sua mulher.
Estava com apenas 43 anos. Passou os últimos da sua vida tentando desesperadamente estabilizar-se profissionalmente, preservar sua família, reconstruir seu lar desmoronado e recobrar o que na época se chamava “honra”. Por essa causa chegou a sacrificar até mesmo o amor-próprio. Acabou sacrificando a própria vida.
Euclides não teve uma “boa morte”. Não demorou muito para que uma lenda se formasse sobre sua vida. De imediato, a notícia dessa morte trágica abalou a nação, movimentando a imprensa e a opinião pública por um bom tempo. Lentamente, ao longo dos anos, um grupo de amigos e intelectuais de renome, movidos pelo respeito, pela admiração e pela indignação, levaram adiante um trabalho bem sucedido de resgate da sua memória e de divulgação das suas obras. O “movimento euclidiano” conseguiu atingir o seu objetivo. Euclides da Cunha passou a ser reconhecido como um intelectual excepcional, o primeiro a enxergar as potencialidades do interior do país e a denunciar o estado de abandono em que vivia a população do campo. A divulgação da sua biografia conferiu-lhe a dimensão de herói, de mártir, de exemplo de vida, de gênio que não foi compreendido em vida.
Com os desdobramentos posteriores da tragédia por ele sofrida – a absolvição do assassino e o assassinato do filho, perpassou pela nação e entre os que lhe foram mais próximos uma sensação velada de culpa. Sentimento incômodo que gerava uma persistente necessidade de ações que os redimissem da culpa de não tê-lo compreendido a tempo e de não terem proporcionado a esse gênio os meios que precisava para colocar em prática seus ideais republicanos. Com o passar do tempo, essas ações deram lugar a um culto, como nenhum outro escritor mereceu igual.
O CULTO A EUCLIDES DA CUNHA EM SÃO JOSÉ DO RIO PARDO O culto a Euclides chegou a São José do Rio Pardo. Em 1912, aconteceu a primeira manifestação, no dia 15 de agosto, terceiro aniversário da morte do escritor. Solenemente, algumas pessoas que com ele haviam convivido dirigiram-se em romaria até a ponte que ele havia reconstruído. Uma casinha de zinco, que servira de abrigo ao engenheiro durante as obras, tinha sido preservada. A ponte, o casebre e o entorno logo se transformariam em documentos da memória de Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo.
Ao lado da ponte, um jardim bem planejado, aos poucos, foi envolvendo os monumentos construídos para preservar essa memória: uma Herma de pedra, o Casebre protegido por uma redoma de vidro, o Mausoléu com os restos mortais do escritor e seu filho. A “Herma de Euclides”, um “lugar de memória”, tornou-se o centro aglutinador do culto e das festas anuais com que a cidade homenageia o escritor há quase um século. Nesse “lugar sagrado”, os rio-pardenses procuraram reconstituir com a autenticidade possível o clima que cercou a criação de “Os Sertões”, desejando preservar a “aura” que iluminou e inspirou o escritor.
Com o tempo, a cidade encontrou muitas formas de lembrá-lo, de homenageá-lo. A princípio, foi a “romaria cívica”, a cada 15 de agosto, “dia de Euclides”, feriado municipal. Depois, as “semanas euclidianas” se encarregaram de criar rituais solenemente dramatizados: a “conferência”, a “maratona”, os “ciclos de estudos”, o “desfile”, o “episódio republicano”, as “olimpíadas”, os convidados, as homenagens, os espetáculos. Todos com platéias, participantes, organizadores e interesses específicos. Imperceptivelmente, a festa euclidiana foi se transformando em espelho social da cidade. Com o objetivo de manter o foco original da festa, sempre houve, entre os que dela participam, discordâncias, enfrentamentos, dilemas, disputas de poder, vaidades feridas, egos inflados. A festa sempre ficou dividida entre mudar ou permanecer.
Vicente de Carvalho, em 1918, durante a romaria, chamou a cidade de “Meca do Euclidianismo”. O conceito se firmou: em busca da “terra santa de Euclides”, todos os anos, romeiros devotos dirigem-se a São José do Rio Pardo para participar das festas euclidianas. Guilherme de Almeida, em 1946, lembrou poeticamente esse rótulo honorífico: “Peregrino de primeira romagem, com a natural timidez do novato, (...) venho trazer o meu “ex-voto” singelo, mas convicto, a esta Meca espiritual”.
As histórias da Ponte, de “Os Sertões” e de Euclides da Cunha representam para São José do Rio Pardo símbolos e referenciais poderosos que todos devem conhecer, respeitar e transmitir. Identificada por esse culto, São José do Rio Pardo destaca-se no cenário nacional como a terra de “Os Sertões” e de Euclides da Cunha, do grande livro e do grande escritor do Brasil.
Fontes consultadas: Abreu, Regina. “O Enígma de Os Sertões”. Rio de Janeiro: Funarte: Rocco, 1998. Del Guerra, Rodolpho José. “Conhecendo Euclides da Cunha. Ano 100 (1898 – 1998)”. Coleção Municipal – Vol. II – São José do Rio Pardo. Trovatto, Cármen. “A Tradição Euclidiana: uma ponte entre a história e a memória”. São Paulo: Arte & Ciência Editora, 2002.
Cármen Cecília Trovatto Maschietto. Mestre em Memória Social e Documento, pela Universidade do Rio de Janeiro, UNIRIO; Membro do Conselho Euclidiano de São José do Rio Pardo; Diretora do Campus São José do Rio Pardo da UNIP, Universidade Paulista.
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