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Euclides e o berço de Os Sertões
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As Semanas Euclidianas e São José do Rio Pardo
2009-09-27 08:21:39

 

 

Há no Brasil – coisa surpreendente – uma cidade, que todos os anos, com a pontualidade de um culto, a solenidade de um voto, comemora um livro.”

                                                      Pedro Calmon, 1936.

Uma tradição que se mantém por longos anos, sobrevivendo a toda sorte de intempéries, como é o caso da Semana Euclidiana, não faz parte do passado, mas sim do momento presente. Ela integra o que de mais vivo existe numa sociedade: os valores do seu povo.”

                                                          Regina Abreu, 1998.

 

 

              O CULTO A EUCLIDES DA CUNHA E A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO

O culto a Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo, uma tradição que identifica  a cidade, possui  características das formas culturais chamadas de rito, mito, saga, lenda, fé, valor, crença, ficando num espaço fronteiriço entre o real e o imaginário, entre a realidade e a lenda, entre a história e o mito, entre o tempo histórico e o tempo transcendental.

Roberto DaMatta, antropólogo, autor de obra clássica sobre festas, ritos e mitos, afirma que as coisas culturais, como as normas, as instituições, os ritos e mitos, são respostas humanas às necessidades de um grupo, levando-o à invenção de uma cultura. Suas observações ainda  demonstram  a força e o poder do social, que é quem sente  a necessidade e escolhe a resposta, qualifica um determinado elemento e transforma-o em instrumento que ajuda a dar forma aos valores e à ideologia. O social é, portanto, quem promove e alimenta aquilo que chamamos cultura, estilo ou forma social.

A invenção das comemorações euclidianas foi a forma encontrada pela sociedade para manter viva a memória de Euclides da Cunha. Comprometido afetivamente  com a memória do escritor e com as obras que realizou na cidade – a “ Ponte” e “ Os Sertões”, o povo de São José do Rio Pardo  encontrou uma forma de eternizá-las. Sem essa ligação afetiva e esse comprometimento da sociedade a comemoração não se consolidaria e a memória teria  esmaecido com o tempo.

 O culto a Euclides da Cunha é uma forma cultural profundamente cristalizada em São José do Rio Pardo, fazendo  parte dos ideais e valores considerados “eternos” pelos seus moradores. Não se supõe, entre eles, que esse culto deixe de existir um dia. Ele simplesmente existe e  imagina-se  que sempre existirá. Essa comemoração faz parte do passado e do presente de quem vive ou já viveu algum dia nessa cidade. Como, então, não fará parte do futuro? Quem conhece ou já ouviu falar de São José do Rio Pardo sabe que a comemoração euclidiana  é  sua “ marca registrada”,  o evento cultural que a individualiza, diferenciando-a das demais.

   COMEMORAÇÃO EUCLIDIANA: ENTRE A ALEGRIA DA FESTA E A RITUALIZAÇÃO DO PASSADO       

  Os rituais da comemoração euclidiana demonstram a profundidade desse  enraizamento social. São solenidades que se repetem sistematicamente a cada ano, sempre  com uma dramatização diferente, sem, no entanto, nunca perder o foco, o centro, o culto a Euclides da Cunha, que é o elemento aglutinador dessa coletividade. Durante o desenrolar da festa, no “desfile”, na “romaria”, na “conferência”,  nos “ciclos de estudos”, na “maratona”, em todos os eventos programados,  percebe-se a presença do escritor, das suas obras, das suas mensagens e o  desejo de eternizá-las.

Os participantes dessas solenidades demonstram sempre alegria e espontaneidade, semblantes felizes, emoção contagiante, sinceridade de atitudes, respeito e envolvimento, observáveis nos gestos, nas falas, nas relações estabelecidas. A comemoração é um jogo, uma festa, um lugar de memória e de ritualização da história. Um jogo de imagens e símbolos organizado para lembrar e emocionar. Um trabalho sério de reconstrução, de reinvenção do passado, recontado infinitamente, sob a inspiração da memória imaginativa e dos acontecimentos do momento.

 A comemoração é um espetáculo dinâmico, que não deseja comemorar a morte, nem petrificar o passado. Tem procurado, pelo contrário, imortalizar seu herói e suas obras, por meio de visões e imagens novas, produzidas com os recursos do presente. Freqüentemente, porém, no rumor alegre da festa e sob a emoção de representações  monumentais, a verdade e a autenticidade dos fatos acabam sendo ofuscadas. Namer considera que “ numa comemoração há mais símbolos a decifrar que lembranças a comemorar”.     

Cada  geração de  rio-pardenses  criou um modelo próprio de festa , uma forma especial de comemoração, com rituais cívicos e sociais, organizados de acordo com os costumes, valores e recursos do seu tempo e, ainda, com o que ficou retido na sua memória e na do seu grupo. Por outro lado, constata-se que todo indivíduo, de qualquer geração, em algum momento, teve a oportunidade de aprender algo sobre  Euclides da Cunha, de tomá-lo como inspiração, motivação,  tema de estudo, base  de  reflexões e de posicionamentos diante das coisas da vida, o que acabou  por influenciar seu modo de ser como pessoa. Ou, no mínimo, teve a oportunidade de fazer amigos e de aprender regras de convivência social, durante a festa.

 Inegavelmente, durante esses quase 100 anos, um imensurável número de cidadãos, participantes ou  espectadores da festa, puderam  aprender sobre Euclides com a “literatura dos desfiles”, com os “discursos da romaria”, com o  teatro dos “ janeleiros”, com os professores dos “ciclos de estudos”, com as falas eruditas dos “conferencistas” e “ euclidianos”, com as provas das “maratonas”, com os espetáculos  artísticos, e, até mesmo, com o jogo complicado das legitimações e com a dialética da comemoração.

 Acima de tudo, a comemoração euclidiana tem sido um momento privilegiado em que a sociedade se destaca e se percebe como um todo, desenvolvendo a noção de coletividade, de pertencimento a uma comunidade que tem passado e terá continuidade. Passado e continuidade que  são percebidos de modo muito marcante pela repetição anual dessa festa.

  A semana euclidiana sempre foi considerada uma festa. Uma festa muito esperada principalmente pelos jovens, mas que os adultos nunca querem perder. Seja qual for o resultado e avaliação dessa festa, é certo que, no próximo ano, ela acontecerá de novo, como todos esperam. Isso acontece porque o clima de festa congrega, une, alegra, renova, traz esperança, paz, sensação de plenitude, permissão de excessos, sensações agradáveis, que  adormecem na memória e acordam no próximo agosto, ao som das vozes  do coração.

                       DESFILE DE ABERTURA: UM RITO INAUGURAL DE ANUNCIAÇÃO

 No dia 9 de agosto, todos esperam que, logo ao  amanhecer, com a alvorada do “desfile” e o rufar dos tambores, a juventude estudantil, enfeitada e colorida, se apresente garbosamente  pelas ruas centrais da cidade, anunciando o início da festa. O desfile, um rito inaugural  de anunciação, faz a abertura da festa em ritmo de marcha triunfal. Vitrine que expõe a juventude e o potencial educacional da cidade, o desfile apresenta ao público o futuro das famílias, da sociedade e a promessa de renovação e de continuidade da festa.

 Os primeiros desfiles, iniciados em 1940, espelhavam-se na sociedade da ordem e da hierarquia. Hoje, têm sido como um teatro móvel, uma performance  cultural, com representações sobre Euclides da Cunha e Os Sertões. Refletem a sociedade do espetáculo, da liberdade de imagens, dos símbolos, das representações, sem relegar a ordem e a hierarquia – seja dos que desfilam, seja dos que apreciam. Em cada época, esse desfile produziu um discurso diferente, com gramática própria. Interpretá-lo significa compreender não apenas seu sentido e sua ideologia, mas a mensagem  da própria  sociedade.

             ROMARIA CÍVICA:  CAMINHAR E CHEGAR “AO LUGAR SAGRADO DE EUCLIDES”  

 No dia 15, ao entardecer, a festa termina com a solenidade da romaria. Dia “ vazio”, feriado municipal, preparado especialmente para que todos participem do ritual que lembra o aniversário de morte de Euclides.  Na jornada da romaria,  o básico é caminhar e chegar a um lugar. Nesse ritual, romeiros devotos reúnem-se na casa que foi do homenageado. Irmanados pela admiração ao escritor, caminham unidos em direção ao rio, até o “Recanto de Euclides”,  “lugar sagrado” , onde foram conservadas  as relíquias  do “dono da festa”.

 Preparado e preservado pelos poderes municipais, esse lugar, que primordialmente motivou o início das comemorações, conserva, até hoje, com carinho, as memórias do engenheiro e do escritor:  o Casebre onde escreveu Os Sertões, a Ponte que reconstruiu, a Herma que marca a sua presença, o Mausoléu onde repousa ao lado do filho.

 Realizada num “ lugar de memória”, a romaria é um ritual que enfatiza que foi naquele lugar, em São José do Rio Pardo, naquele Casebre de Zinco, que Euclides da Cunha escreveu Os Sertões enquanto reconstruía a Ponte sobre o Rio Pardo. Ali ele descansa no Mausoléu, preparado pela cidade, que novamente o acolheu.  

                                    CONFERÊNCIA OFICIAL : O OLIMPO EUCLIDIANO 

 Dia 14 de agosto é a data da “Conferência Oficial”. Cerimônia noturna, em ambiente fechado, com público e local especiais. O conferencista deve ser um intelectual com reconhecidos conhecimentos sobre a obra do homenageado. Para os euclidianos, “ guardiães da memória do escritor e da tradição” e “ sacerdotes” do euclidianismo, esse discurso deve conter palavras iluminadoras, que apontem  qualidades do escritor ainda não reveladas. Deve ser um  modelo de oratória  que envolva arte, ciência e poesia, um meio termo entre verdades objetivas  e alguma  imaginação, qualidades próprias de um “ discurso remitificante”.

 Sempre aguardada como uma homilia doutrinal máxima, preparada com todo o esmero para ser a “epifania” da comemoração, essa conferência tornou-se famosa em todo o território nacional.  Monteiro Lobato declarou formalmente temer essa solenidade: “ São José do Rio Pardo é a única cidade deste país que me mete medo. Por causa do Euclides da Cunha, Rio Pardo se alcandorou tanto, se aprimorou tanto em altas cavalarias estilísticas, tem ouvido tantos condores importados de fora que aí abrem as majestosas asas do discurso e conferências, que um tipo insignificante como eu nem sabe como tratar um riopardano:  Sua Excelência, Sua Truculência, Sua Euclidência...(...)”.

 Professor Lauria, respeitado euclidiano, tem opinião formada sobre as conferências e os conferencistas: “ (...) A situação exigiria, creio eu, orador de idéias a um tempo claras e profundas; ostentando conhecimento apreciável da vida e da obra euclidiana; com capacidade, porém, de expô-lo com singelezas de iniciante e firmeza que só a longa experiência da tribuna acaba proporcionando .Um orador com arroubos capazes de prender com a força evocativa do verbo os menos cultos, com um senso de medida, contudo, que não escandalizasse os doutos. Que falasse verdades agudas sobre o Brasil, sem que as mais duras palavras afrontassem a tradição local ou ferissem as disparidades de opiniões dos que aqui comparecem, irmanados apenas pelo euclidianismo. E que – importantíssima consideração ao público – não caísse na tentação de abstrair os minutos e os quartos de horas.”

 EPISÓDIO REPUBLICANO: A CERIMÔNIA DA JANELA DO HOTEL

A comemoração do “ Episódio Republicano” foi a forma que os rio-pardenses  encontraram para destacar  um dos acontecimentos mais importantes na história da cidade. Não foi difícil aos organizadores da comemoração  encontrar uma forma de relacionar o idealismo republicano de Euclides da Cunha à histórica devoção republicana da cidade. Um tumulto político, envolvendo  republicanos e monarquistas, acabou  antecipando a República na cidade. Por essa demonstração de fervor republicano, São José do Rio Pardo recebeu o título de “Cidade Livre do Rio Pardo”, após a proclamação da República.

 Esse fato marcante, simbolizado no brasão da cidade, onde figuram também a ponte de Euclides e os lírios de São José, originou uma solenidade  encenada na frente do hotel, palco daquele episódio. O ritual inventado foi assim  descrito por Amélia Trevisan : “ Uma cena rara em comemorações: a banda de música a postos, a platéia no meio da rua e oradores se revezando na pequena janela do aposento do Hotel Brasil, ocupado por republicanos em 11 de agosto de 1889. Dentre os primeiros “ janeleiros” na inusitada tribuna, lembramos Adelino Brandão, Márcio José Lauria e os saudosos Benedito de Andrade, Élcio Rodrigues e Moisés Gicovate.”

 Hoje, a fila dos janeleiros  está bem mais comprida.

       MARATONAS EUCLIDIANAS: DISPUTA PELA SUPERIORIDADE DO SABER

As “maratonas” euclidianas foram criadas com duplo objetivo: promover jovens intelectualmente promissores e incentivar o estudo das obras de Euclides da Cunha. Estudantes locais e de vários pontos do país se reúnem na cidade, aprofundando conhecimentos sobre o escritor, orientados por professores especializados. No dia 15 de agosto, os maratonistas  se submetem a uma prova, a“ Maratona Intelectual Euclidiana”. Conquistar o primeiro lugar nessa disputa e ser considerado o estudante que melhor conhece as obras de Euclides da Cunha  é a característica e o elemento dramático desse ritual.

Na cultura grega, a Maratona, episódio das guerras médicas, uma batalha vencida pelos hoplitas atenienses sobre os persas, foi transformada em símbolo nacional, exemplo de bravura e heroísmo às novas gerações. Os gregos consideravam que essa foi uma vitória de uma elite campeã, que se destacou pelo patriotismo solitário, uma vitória da sabedoria e da concórdia, da competência e da determinação, contra a autocracia, o absolutismo, o obscurantismo e a guerra de dominação.

 Platão afirmou que a vitória de Maratona tornou os gregos melhores.

Tendo por fundamento esses sentidos, o termo “maratona” é bem apropriado para designar uma competição organizada para reconhecer a superioridade do saber e do conhecimento, entre um grupo de jovens escolarizados, com pretensões intelectuais, a partir de um modelo de vida paradigmático e exemplar, que é Euclides da Cunha. A Maratona Intelectual Euclidiana, considerada um dos eixos centrais da comemoração, está alicerçada num princípio educacional, moral e cívico, que procura destacar um exemplo de vida para servir de inspiração aos jovens. A maratona é um torneio de puro prestígio intelectual, com o objetivo de destacar o valor e o mérito da inteligência, da perseverança, do patriotismo, da determinação e da moralidade, a partir do exemplo de Euclides da Cunha.  

Sob qualquer ponto de vista, o que as Semanas Euclidianas apresentaram de mais valioso e significativo, nesse quase um século de existência, foi a competência demonstrada  para preservar a memória do escritor e a inspirada e perseverante  vontade de direcionar esse exemplo de vida como modelo para as novas gerações. 

A vitória dos gregos sobre os persas foi uma façanha assombrosa e encheu os gregos de orgulho.

Transformar a comemoração em missão educativa, voltada para a juventude, e “ salvar do esquecimento para todos os brasileiros o momento de criação de Os Sertões”, são também  façanhas  assombrosas que enchem os rio-pardenses de orgulho.

 Ésquilo procurou honrar e imortalizar a vitória dos gregos com esplêndida poesia:

“ Contemplai esta vingança, e lembrai-vos da Grécia,

Lembrai-vos de Atenas; (...)

Mas vós, cuja idade exige pensamentos mais moderados,

Ensinai com palavras de acertados conselhos à juventude

A dobrar esse orgulho, que conjura das mãos dos deuses

A destruição sobre suas cabeças.”

Há muito tempo, Afrânio Peixoto comparou  São José do Rio Pardo a uma “ Atenas Sertaneja”:

“ Que exemplo dá São José do Rio Pardo ao Brasil, e que conforto cívico empresta ao talento e à cultura.”

Alberto Rangel  comparou-a  à “Cidade do Sol”, de Campanella, e a “ Tebas das cem portas”, lugares que lembram  liberdade,  sabedoria,  paz, conhecimento, desenvolvimento,  informação e esperança.

 Visitantes e observadores, ao longo dos anos, têm se surpreendido com a comemoração euclidiana . Talvez percebam que algo diferente ocorre em São José do Rio Pardo.

 Provavelmente, as Semanas Euclidianas tornaram os rio-pardenses melhores.

 

 

BIBLIOGRAFIA:

Abreu, Regina. “ O Enigma de Os Sertões”.Rio de Janeiro: Rocco,1998.

DaMatta, Roberto. “ Carnavais, Malandros e Heróis”. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Del Guerra, Rodolpho José. “ Conhecendo Euclides da Cunha”. Coleção Municipal, v. II, 1998.

Namer, Gerard. “ Mémoire et Société”. Paris: Méridiens Klincksieck, 1987.

Trovatto, Cármen. “ A Tradição Euclidiana: Uma Ponte Entre a História e a Memória”. São Paulo: Arte&Ciência, 2002.

 

*Cármen Cecília Trovatto Maschietto. Mestre em Memória Social e Documento, pela UNIRIO, Universidade do Rio de Janeiro. Licenciada em História e Pedagogia, pela FFCL de São José do Rio Pardo. Diretora da UNIP, Universidade Paulista, Campus São José do Rio Pardo. Membro do Conselho Euclidiano de São José do Rio Pardo.   

 
CÁRMEN CECÍLIA TROVATTO MASCHIETTO
 
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