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Prefácio ao livro "A tradição euclidiana - Uma ponte entre a história e a memória"
2002-07-03 00:00:00

 

Prefácio ao livro "A tradição euclidiana - Uma ponte entre a história e a memória" de autoria da professora Cármen Trovatto que será lançado oficialmente dia 9 de agosto, em Sessão Solene na Câmara Municipal.

 

NOTA INTRODUTÓRIA
MÁRCIO JOSÉ LAURIA


Este é um livro de adesão à teoria. A autora, aparentemente para cumprir obrigações acadêmicas, toma um evento de caráter popular efetuado sem indícios de regulação interna, e o submete à dura prova de que nada do que se fez em São José do Rio Pardo no decorrer de oitenta anos, fugiu a normas codificáveis nas categorias memória, mito e rito, antropologicamente considerados.

Sabendo-se como é impossível dominar-se a teoria, porque a simples aproximação dela implica um compromisso aberto - o de deixar o teorizador na triste certeza de que haverá sempre coisas importantes que ele não sabe nem saberá --, entende-se a aventura intelectual que foi para Cármen Cecília Trovatto Maschietto desprender-se do real, do vivido, para, ao termo de caminho raramente palmilhado, vislumbrar a face ideal, abstrata, das coisas que deveria tratar.

Se a proposta - a construção da identidade euclidiana em São José do Rio Pardo - parecia de árdua execução, na verdade estava bem de acordo com a complexidade de seu provocador Euclides da Cunha, personalidade das mais polêmicas do mundo cultural brasileiro.

Seria preciso que alguém, depois de vivenciar diferentes estágios de participação nas Semanas Euclidianas, com metodologia científica e com o possível abandono da perspectiva localista e por vezes distorcida, explicitasse como surgiu, como cresceu, como se formalizou e como se transformou o Movimento Euclidiano Rio-Pardense. Primeiro como estudante de todos os graus, depois como professora, em seguida como organizadora, dirigente e responsável e por fim como pesquisadora bem apetrechada, a autora lança-se na tarefa singular de tornar legível a simbologia de cada ato, a individualização de cada fato, a personalização de cada agente do ritual por vezes tão estranho, tão despropositado, tão inatual que aqui se observa entre 9 e 15 de agosto. Ritual que pode e deve reivindicar para si e para seu cenário a titulação de patrimônio imaterial da humanidade.

Num falso resumo, pode-se dizer que a autora teve por objetivo teorizar a respeito das homenagens na aparência tão desconexas que nossa pequena cidade presta a um engenheiro e escritor que aqui viveu não mais que três anos, no período mais produtivo de sua vida profissional e intelectual e que, morto anos depois, dele não se esqueceram uns poucos e devotados amigos aqui residentes. Esse raro não-esquecimento contagiou, por circunstâncias muito particulares, dezenas, centenas, milhares de outras pessoas, venceu as idades e os percalços e se transformou num ônus de pagamento coletivo.

Ora, pensarão muitos, sem dúvida desavisados: essas Semanas Euclidianas devem ter nascido da justa admiração que as obras do engenheiro-escritor suscitaram nos seus muitos leitores, empolgados pelo seu estilo e fascinados pelos temas universais defendidos. Nada menos verdadeiro. Euclides da Cunha não chegou nem chegará ao domínio do grande público, sabedor, se tanto, de algumas de suas frases de efeito. Nem mesmo todos os seus poucos amigos próximos estavam aptos à leitura e compreensão de seus escritos e preocupações.

É de se conjecturar que se Euclides da Cunha não tivesse morrido tão cedo (aos 43 anos) e de morte tão violenta (assassinado a tiros), à exceção de um Francisco Escobar e dos amigos rio-pardenses que se contam nos dedos de uma só mão, ninguém mais se lembraria dele nesta cidade onze anos após o término da reconstrução da ponte metálica. Foi o drama passional e o seu trágico fim - quem sabe já antevisto por alguém aqui da terra - que levaram algumas bondosas pessoas a um encontro de rememoração junto à cabana tosca, à margem do rio Pardo, no 15 de agosto de 1912. Foi ainda a estranha percepção da incoercível força da fatalidade que condoeu a gente simples desta cidade, não se esquecendo, ano após ano, do simbolismo do 15 de agosto e lhe acrescentando, ano após ano, uma nova forma de perenização. Daí o caráter espontâneo, de recíprocas condolências, que marcou as primeiras comemorações euclidianas, abrigadas pela senha por protesto e adoração, posta em circulação por Alberto Rangel. Era o ecoar longínquo de um clamor coletivo contra as traições pessoais e contra as falhas da justiça humana, impotentes em face do adultério e das lacunas processuais. Lamentava-se nas romarias o homem morto na legítima defesa da honra, e nem por isso exemplarmente castigada a infiel ou exemplarmente condenado o traidor ingrato. O resto, o tempo, as escolas, as entidades culturais, a imprensa foram construindo, exatamente porque duas ou três pessoas de superior descortino deram àqueles rituais um sentido cada vez mais intelectualizado e menos passional. Foram piedosamente retirando de cena o homem assassinado e deitando luzes sobre seus escritos, sobre suas estocadas contra os poderosos e prepotentes de todas as categorias, sobre suas preocupações pelo Brasil.

Esta lenta e gradual mudança de foco é que acabou proporcionando às Semanas Euclidianas a exibição de suas faces atualizáveis a cada ano, sem perda do essencial, do substancial.

Tudo isso está esmiuçado neste livro: por que nasceu a Semana Euclidiana, por que tem vencido tantos óbices.
Uma vez teorizado, o tema do euclidianismo rio-pardense é a bem dizer inesgotável, tantas as suas perspectivas e aprofundamentos. Recaem também sobre ele as conseqüências da teoria, que jamais se restringe. À semelhança de uma escavação apenas iniciada, quanto mais se extrai dela, maior ela fica. Afinal, qualquer teoria digna do nome é interdisciplinar - um discurso com efeitos fora de sua disciplina original; é analítica e especulativa - são infinitas as tentativas de entender o que nela está envolvido; é uma crítica do senso comum - questiona conceitos tidos antes como intocáveis; é reflexiva - ou pior: é reflexão sobre reflexão.

Parabéns, pois, à bem-sucedida teorizante Cármen Cecília Trovatto Maschietto.
Longa vida e novos caminhos aos que se aproximarem deste texto muito rico em novas sugestões de discussão e pesquisa.
São José do Rio Pardo, 14 de junho de 2002.

 
Márcio José Lauria
 
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