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Euclides e o berço de Os Sertões
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Uma Analise do Discurso Euclidiano: Judas Ahsverus
2001-07-26 00:00:00

 

      

            Já é do conhecimento de todos que Euclides da Cunha inovou na Literatura Brasileira; de uma literatura dirigida ao entretenimento, no máximo retratando as fraquezas de alguns tipos ou de classes sociais, passamos à literatura-denúncia, aquela em que o autor verifica “in loco” os acontecimentos e, a partir deles, produz obras grandiosas, como “Os Sertões”.  Muitos críticos, porém, até hoje se negam a reconhecer o valor literário da obra desse grande escritor, portanto queremos salientar que concordamos com a opinião do professor Márcio José Lauria, ¹quando diz que a capacidade de “filtrar e de transfigurar a realidade” faz de seus escritos  obra de ficção. Além disso, o tom épico que apresenta, tanto em “Os Sertões “ como em alguns trechos de “À Margem da História”, provoca a predominância do coletivo sobre o pessoal, imprimindo em suas obras um cunho de atualidade, uma vez que seu grande assunto é o binômio opressor X oprimido.

 

            Gostaríamos de fazer uma abordagem de um dos textos mais famosos de Euclides, que se encontra em “À Margem da História”. Modesto de Abreu conta que, assim que Euclides finalizou o texto que estudaremos aqui, padeceu de uma dúvida terrível: teria ele algum valor ou seria apenas um amontoado de frases de efeito, valorizadas pelo pitoresco? Foi, então, até Coelho Neto e entregou-lhe o manuscrito para que o lesse, pedindo-lhe que, se nada valesse, que fosse um crítico sincero. E o amigo, após a leitura, deu o seu veredicto: era uma das melhores páginas que Euclides já havia escrito2. E, assim, o Judas Ahsverus entrou para “’A Margem da História”.  Os escritos sobre a Amazônia iriam formar um segundo livro-vingador, conforme o próprio Euclides: “Um Paraíso Perdido”, que não pôde ser acabado, devido à morte trágica do escritor.

            Tentaremos compreender o discurso euclidiano, mas através de uma análise simples, uma vez que nosso objetivo é levar os jovens que participarão da Maratona Intelectual Euclidiana a compreender a mensagem social de Euclides. 

            É necessário lembrar que, segundo a linha francesa, toda pesquisa de análise discursiva remete à história e às condições de produção dos enunciados e das enunciações dos sujeitos sociais, razão pela qual todo trabalho  traz em si as marcas lingüísticas do dito e do não dito; ou seja, dos elementos implícitos e explícitos do enunciado.3                Posto isso, passemos a algumas considerações necessárias para o entendimento do texto.

            No Relatório  da Comissão Mista Brasileiro-Peruana, Euclides da Cunha escreveu o seguinte trecho sobre a sua visita àquela região: “O rude seringueiro é duramente explorado, vivendo despeado do pedaço de terra em que pisa longos anos e exigindo, pela situação precária e instável, urgentes providências legislativas que lhe garantam melhores resultados a tão grandes esforços. O afastamento em que jaz,  agravado pela carência de comunicações, reduz-lo, nos pontos mais remotos, a um quase servo, à mercê do império discricionário dos patrões. A justiça é naturalmente serôdia e nula. Mas todos esses males, que fora longo miudear, e que não velamos, provêm, acima de tudo, do fato meramente físico da distância. Desaparecerão, desde que se incorpore a sociedade seqüestrada ao resto do país” – este é o trecho em que Euclides sintetiza, com uma precisão assombrosa para a época, o problema que vira no Amazonas. O trecho pertence ao Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana.

            O escritor permaneceu naquela região tempo suficiente para a observação cuidadosa do meio ambiente, do homem que habita aquelas selvas e de seus problemas sociais, que, infelizmente, até hoje persistem, por motivos vários, mas principalmente por ser aquela uma região ainda isolada do resto do país.

            O texto que abordaremos aqui fala de um costume dos seringueiros que lhes servia como desafogo da mágoa guardada no peito por gerações, por causa da escravidão a que se submetiam: a malhação do boneco de pano, feita no sábado de Aleluia. Mas o boneco não era como outro qualquer, era a figura do seringueiro, colocada em uma jangada para seguir rio abaixo e a essa figura Euclides chama de Judas Ahsverus, o Judas condenado a vagar sem destino para toda a eternidade.

            No sábado de Aleluia, os seringueiros do Alto Purus desforram-se de seus dias tristes” – já no início podemos observar que não se trata apenas de um fato narrado,  com a intenção somente de contar os acontecimentos, mas sim de um fato comentado, ou seja, uma versão crítica do autor para aquele costume tão habitual daquelas paragens.

            O seringueiro que ali vivia, viera fugindo das sucessivas secas do nordeste e, ao chegar ali, encontrava um trabalho escravo, ao qual ficava preso para sempre, pois tudo de que necessitava era adquirido no armazém do seringal, que pertencia aos patrões que manipulavam as dívidas como bem lhes conviesse.  Por outro lado, fugir era impossível, aquela imensidão alagada era traiçoeira, a natureza grandiosa, portanto, aliava-se, ali, aos patrões aproveitadores. O sertanejo também não se revoltava, portanto seu único desabafo era o sábado de aleluia: “É um desafogo. Ante a concepção rudimentar da vida – o sertanejo vivia ali em condições precárias, num tipo de vida primitiva, portanto era-lhe natural acreditar que nesse dia todas as maldades eram santificadas” – e aqui o texto se refere, também, aos que crêem ter as maldades perdoadas nesse dia. “Acreditam numa sanção litúrgica dos máximos deslizes” – está reforçada a idéia anterior,  e este recurso de utilizar expressões sinônimas em seqüência é muito utilizado no texto,  para dar mais veemência à argumentação.

            “Nas alturas, o Homem – Deus, sob o encanto da vinda do filho ressurreto e despeado  das insídias humanas sorri, complacentemente, à alegria feroz que arrebenta cá embaixo” . O texto nos mostra que Deus era complacente com o ânimo selvagem que tomava conta daquele povo naquele instante. “E os seringueiros vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes. Não tiveram missas solenes, nem procissões luxuosas, nem lavapés tocantes, nem prédicas comovidas” – e aqui uma crítica: a Igreja esqueceu-se daquele povo. Enquanto nas metrópoles a Semana Santa era uma seqüência de rituais pomposos, ali, na Amazônia, o povo estava esquecido, portanto celebrava como podia, com seus próprios costumes rudimentares.

            “Toda a Semana Santa correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias, os meios-jejuns permanentes, de tristezas e de pesares” – aquela semana era, pois, para eles, igual a todos os outros dias: a mesma rotina exaustiva e ingrata de quem não fazia jus ao descanso ou à diversão, com a alimentação escassa e os sofrimentos de sempre, prisioneiro que era do lugar e do patrão. E esses dias também se assemelhavam a uma “interminável sexta-feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora.” O sofrimento, ali, para o homem, era tão grande que se assemelhava uma eterna Paixão de Cristo.

            “Alguns recordam que nas paragens nativas, durante aquela quadra fúnebre, se retraem todas as atividades – despovoando-se as ruas, paralisando-se os negócios, ermando-se as ruas, e que as luzes agonizam nos círios bruxuleantes e as vozes se amortecem nas rezas e nos retiros, caindo um grande silêncio misterioso sobre as cidades, as vilas e os sertões profundos”.  Aqui o texto apresenta gradações e repetições que reforçam a idéia de tristeza: alguns seringueiros (não todos) ainda traziam na mente recordações de suas cidades, dos locais de onde vieram, de como se comportavam por lá durante a Semana Santa: não se trabalhava, quase nem saíam às ruas – “despovoando-se”, “paralisando-se”, ermando-se os caminhos” – tudo se calava; um misterioso silêncio se instalava entre as pessoas. E o silêncio, segundo Orlandi, significa.4 Nesse silêncio o homem deixa falar a voz de Deus. E esse silêncio é o elo de ligação entre “as gentes entristecidas” e a “mágoa prodigiosa de Deus”.

            E consideravam, refletindo sobre o assunto, que esses sete dias tão diferentes dos outros dias do ano, estabelecidos de forma proposital, dias de tristeza, diferentes dos dias felizes, ali, naqueles seringais malditos deixavam  de constituir a exceção, para se tornar regra comum. Eram eles toda a sua existência “monótona, obscura, dolorosíssima e anônima”, a girar acabrunhadoramente na via dolorosa inalterável, sem princípio e sem fim, do “círculo fechado das estradas”.  Então, pelas almas simples, entra-lhes, obscurecendo as miragens mais deslumbrantes da fé, a  sombra espessa de um conceito singularmente pessimista da vida”. – o enunciador, neste trecho, mescla a escuridão da floresta, sem futuro, sem saída, à escuridão total do mundo interior do seringueiro: sem esperança, sem outro destino, sem perspectivas de melhoria e sem fé.

            Impossível acreditar, mesmo com as “miragens mais deslumbrantes da fé”, pois com certeza Cristo os esquecera; ali era o inferno, a Redenção Universal não levava em conta aquele pedaço de mundo, um lugar tão miserável que nem o rio que o alimenta se deixava ficar ali. Deus “esqueceu-os para sempre, ou não os viu talvez, tão religados se acham à borda do rio solitário, que no próprio volver das suas águas é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles tristes e desfreqüentados rincões”.

            Se a  análise nos permitisse inferências maiores, teríamos aqui um questionamento: seria a identificação com a própria vida solitária e esquecida do autor? Mas essas suposições iriam muito além do que nos diz o enunciado, portanto é mais prudente que fiquemos restritos ao que temos: o texto e o discurso possível de ser analisado.

            O texto continua, introduzindo com uma antítese, uma crítica: “O seringueiro  rude, ao revés do italiano artista, não abusa da bondade de seu deus desmandando-se em convícios” – A princípio, a dúvida: a que italiano artista o texto se refere? Seguindo adiante, ele nos revela, sutilmente: “É mais forte. É mais digno. Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza . As preces ansiosas sobem por vezes ao céu, levando disfarçadamente o travo de um ressentimento contra a divindade, e ele não se queixa”, ou seja, o italiano, como tem o dom artístico, inventou as preces, as ladainhas que, segundo o texto de Euclides, nada mais são do que murmúrios de lamentação, “levando disfarçadamente o travo de um ressentimento contra a divindade.”

            O homem ali, na Amazônia, junto à natureza, tem a noção instintiva, “prática, tangível, sem raciocínios, sem diluições metafísicas, maciça e inexorável”  - que não se move a rogos – “da fatalidade”, da determinação do destino e “ submete-se a ela sem subterfugir”, sem nenhuma tentativa de evasão, de cair na tentação covarde de um pedido a Deus, “com os joelhos dobrados”. Rezar seria, portanto, acovardar-se; orar, segundo o texto, suplicando uma saída ou um consolo, seria um mecanismo de fuga. Pior: “seria um esforço inútil”. Antes, possuía o seringueiro um princípio ainda primitivo de distinguir o que era bom do que era ruim para ele; uma crença talvez objetiva demais para o homem civilizado, ou talvez “ingênua”, mas tinha a consciência da distância que o afastava dos homens e, além do mais, Deus não poderia dirigir seu olhar “àqueles brejais”,  correndo o risco de se macular. Chega, então, à conclusão de que não valia a pena arrepender-se, o que seria um modo cuidadoso de se revoltar, protestando por uma “promoção na escala indefinida’ – não muito precisa – “da bem-aventurança”. Seu destino era dos piores, não seria ouvido, pois nas capelas, nas igrejas, nas catedrais e nas cidades ricas havia, certamente, “concorrentes mais felizes, mais bem-protegidos, mais vistos” – e com esta gradação faz uma referência à grande injustiça social deste mundo, onde “se estadeia o fausto do sofrimento uniformizado de preto” – e esta é uma crítica ao clero instituído como classe social, cujos representantes, segundo o enunciado,  não viviam o que pregavam, o que podemos ver nesta antítese: “o fausto do sofrimento”.

            Continua, adiante,  a crítica contra a hipocrisia dessa classe social (segundo o texto): “ou fulgindo na irradiação das lágrimas, e galhardeando tristezas”,  ou seja, alegrando-se com as desgraças. Mas “ali – é seguir”, sem emoções e sem queixas, impassível diante da adversidade, “no grande isolamento da sua desventura”. Fazendo uma digressão também não permitida pela análise rigorosa do texto, encontraríamos aqui mais um trecho em que Euclides poderia estar falando de sua vida pessoal.

            Voltando ao sertanejo, ali ele não só tinha que se resignar , como só lhe era permitido “punir-se da ambição maldita” que o levara até aquele local, na ânsia de sobreviver, e que o havia tornado escravo, manipulado, “manietado”,  aos ‘traficantes impunes”, livres do jugo das leis, homens que o enganaram – e o fato de se ter deixado levar por essa ilusão é, ao mesmo tempo, seu grande pecado e seu grande castigo, transformando sua vida numa interminável penitência”. Só lhe resta, então, mostrar à “humanidade longínqua” como é essa vida, sem demagogia, na sua forma mais assustadora. Aliás, como Euclides fizera com o sertanejo de Canudos.

            E, para essa missão, a Igreja lhe dava um “emissário sinistro”, funesto: Judas. E lhe fornecia um “único dia feliz”: o sábado fixado anteriormente às mais santas tentações,  às confusões, à desordem confessável, à agitação da fé intensa dos escolhidos e à vingança sublime, sobrenatural. Através do recurso de nominalização, “atentados”, “balbúrdias”, “turbulência”, “divinização”, o texto figurativiza a ressurreição de Cristo como o resultado de momentos de rebeldia.

            Mas àquele “monstrengo de palha” tão comum  não bastava à missão escatológica do seringueiro, tão “complexa e grave”: o boneco já vinha, ao longo dos tempos, “batido demais, tão pisoado, tão decaído e tão apedrejado’, que se tornara vulgar na sua infinita miséria, juntando nele o ódio do universo todo e tornando-se pequeno demais, ínfimo demais para tão grande vingança. É preciso, ao menos, “acentuar-lhe as linhas mais vivas e cruéis e mascarar-lhe o rosto de pano a traços de carvão”, fazendo-o mais semelhante à realidade do seringueiro, para que aquele condenado para sempre pareça renascer ao mesmo tempo que Cristo, sua “divina vítima”, fazendo-o, assim, “desafiar uma repulsa mais espontânea  e uma resposta mais compreensível, que satisfizesse  “à saciedade”  as almas sofridas dos que acreditavam, com “ a imagem tanto possível perfeita sua miséria e das suas agonias terríveis”.  A ambigüidade dos possessivos nos remetem, neste trecho, à própria vida dos seringueiros, que só ficarão satisfeitos quando aquela desgraçada figura espelhar exatamente o infortúnio a que foram entregues. Só assim terá sentido a malhação do Judas: expurgando a própria desdita daqueles sertanejos.

            E o seringueiro determina a massa do corpo do boneco – e aqui podemos, também, comprovar a busca pelo vocabulário preciso no texto: “abalança-se” , dá forma ao corpo dessa maravilha que representa a figura toda de um homem”, (...)  auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram”,  exaltam-se, barulhentos, mas sem risos, “a correr por toda a banda, em busca das palhas esparsas” e da mistura recusada de velhas roupas que já não se prestavam ao uso... E estavam “encantados com a tarefa funambulesca”, ou seja, ridícula, que de alguma maneira lhes quebrava aquela monotonia triste de uma vida silenciosa e sem graça.

            Fizeram o Judas como de hábito: “um par de calças e uma camisa velha, grosseiramente cosidos, cheios de palhiças e mulambos; braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem juntas, sem relevos, sem dobras, aprumando-se espantadamente, empalado, no centro do terreiro”. A escolha do vocábulo “empalado” reforça a idéia de vítima do seringueiro, figurativizado no Judas.  A cabeça do “monstrengo” era uma bola desgraciosa, ainda não havia adquirido a redentora identidade.

            Torna-se, então, o “manequim vulgar”, que “surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes”.  Só que ainda não basta ao seringueiro, não se dá por satisfeito: “ É-lhe  apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que é a sua obra-prima, a criação espantosa” daquele talento bruto, longamente trabalhado pelas contrariedades, onde “outros talvez distingam traços admiráveis de uma ironia sutilíssima, mas que é para ele apenas a expressão concreta de uma realidade dolorosa.”

            E o seringueiro começa a dar feição àquela bola disforme, o que o texto descreve com uma enumeração verbal: “salienta-lhe e afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda-lhe as órbitas; esbate-lhe a fronte; acentua-lhe os zigomas; e aguça-lhe  o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta, pinta-lhe as sobrancelhas, e abre-lhe os dois riscos demorados, pacientemente, os olhos em geral tristes e cheios de um olhar misterioso” – aqui, novamente, o trecho espelha na imagem do Judas as características do seringueiro – “desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode ralo de guias decaídas aos cantos. Verte-lhe, depois, umas calças e uma camisa de algodão, ainda servíveis, calça-lhe umas botas velhas”, trocadas.

            E  enquanto o escultor se afasta para contemplar a obra, a filharada o rodeia, em silêncio, cheia de expectativa, maravilhada com a criação.

            O homem ainda cuida dos detalhes: retoca uma pálpebra, melhora um traço de expressão na arqueadura do lábio, “sombreia-lhe um pouco mais o rosto, cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça, arqueia-lhe os braços, repuxa e reifica-lhe as vestes...”

            E o artista é cuidadoso: “Novo receio, compassado, lento, remirando-o, para apanhar de um lance, numa vista de conjunto, a impressão exata, a síntese de todas aquelas linhas” e renovar o trabalho com uma persistência  e com  tormento de artista que não se contenta. E o enunciador descreve exaustivamente o trabalho do escultor: “Novos retoques, mais delicados, mais cuidadosos, mais sérios” – utilizando a gradação e a adjetivação, mostra a paciência daquele rude artista. “Um tenuíssimo esbatido de sombra, um traço quase imperceptível na boca refegada, uma torção insignificante no pescoço engravatado de trapos...”

            E o “monstro” vai, vagarosamente, transformando-se, sem que o percebam, e começa a tomar “vida”. Agora é um homem. Foi realizada a transmutação do indivíduo para a classe que representa. Ali está o próprio seringueiro, pronto para enfrentar aquela cerimônia que poderá redimi-lo de sua ganância. É um exemplo perfeito de autopunição. Na sua simplicidade, a evasão não acontece pela reza, mas pelo suplício.

            E o momento dessa fusão entre o particular e o coletivo está em uma comparação inusitada: o “Parla!”, de Miguel Ângelo, naquele instante mágico da obra concluída e no desejo de perfeição de seu autor: “arranca o seu próprio sombreiro; atira-o à cabeça do Judas, e os filhinhos todos recuam, num grito, vendo retratar-se na figura desengonçada e sinistra o vulto de seu próprio pai.” Além do desejo da perfeição, a vontade louca de evadir-se , seguir rio afora, como o boneco estranho.

            “É um doloroso triunfo”, pois ao mesmo tempo em que o homem contempla o seu poder criador, toma consciência de seus limites, da sua pequenez diante do esquema traiçoeiro que o aprisionava e de sua impotência contra aquelas imensidões alagadas, daquele rio que, às vezes, parecia “se divertir em malfazer a gente obstinada do vale”.5            E “o sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem”. Aqui também o adjetivo “maldito” assume duplo sentido: maldito é o Judas, mas, como é a própria figura do sertanejo, conclui-se que este também se sente “maldito”.

            “Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia” – o sertanejo possui, também, a consciência de que se acovarda diante da luta monstruosa que seria a tentativa de se rebelar contra os que o mantêm escravizado, “recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu escravo” – o adjetivo “infantil” reforça a argumentação de Euclides em favor do seringueiro: era um ingênuo, por isso fora manipulado.

            E ficava cada vez mais aprisionado àquela terra pantanosa, servindo aos que o haviam ludibriado. Mas nem assim se satisfaz. Aquela imagem de sua desgraça materializada não poderia ficar ali, na inutilidade, longe de outros olhos, “afogado na espessura impenetrável, que furta o quadro de suas mágoas, perpetuamente anônimas aos próprios olhos de Deus”. Deus não se importava nunca com o sofrimento daquele sertanejo sem nome, desconhecido, sem importância nenhuma - é o que podemos inferir deste enunciado. O rio é a saída, a porta para o mundo que ele não tem coragem de ultrapassar, mas a sua desdita consegue fazê-lo. É necessário que o mundo todo saiba do seu sofrimento, estampado no Judas. E a gradação nominativa reforça a noção de grandiosidade dessa dor: seu “infortúnio”, a sua “desvalia”, o seu “aniquilamento iníquo , exteriorizados golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo pregoeiro”. Novamente o silêncio que significa pelo sertanejo. O seu Judas silencioso “dizia” o necessário a todos que o viam passar: era o sertanejo vingando-se de si próprio.

            E o homem vai até a jangada construída na véspera, que “aguarda o viajante macabro” . Leva o boneco, arrastando-o, por vezes, “pelo viés dos barrancos avergoados de enxurros. Ainda mais uma vez lhe arruma as vestes; coloca-lhe às costas um saco com pedregulhos, põe-lhe à algibeira uma pistola inútil, enferrujada, sem fechos” ou uma faca velha , “fazendo-lhe curiosas recomendações, ou dando-lhe os mais singulares conselhos” – na verdade, era consigo mesmo que falava – “impele, ao cabo, a jangada fantástica para o fio da corrente”.

            E o judas, feito errante, vai avançando vagarosamente para o meio do rio. No alto dos barrancos, os vizinhos curiosos já esperam com “repetidas descargas de rifles aquele botafora”. Seus tiros acertam a água, a jangada e “atingem o tripulante espantoso; trespassam-no”. E ele oscila no seu “pedestal flutuante, pela força dos tiros, sem saber que rumo tomar, até que alcança a correnteza. E lá se vai aquela figura desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca, com seus gestos desmanchados, de demônio e de truão, desafiando maldições e risadas.”  - o boneco adquire a força que o sertanejo gostaria de possuir. “Lá se vai na lúgubre viagem sem destino e sem fim, a descer, a descer sempre, desequilibradamente, aos rodopios, tonteando em todas as voltas, à mercê das correntezas” – exatamente como vive aquele povo esquecido – “de bubuia” sobre as grandes águas.

            Porém, ao contrário do sertanejo, o Judas é firme: “Não pára mais”. “Vai espalhando em roda a desolação e o terror: as aves, retransidas de medo, acolhem-se, mudas, ao recesso das frondes, os pesados anfíbios mergulham cantos, nas profunduras, espavoridos por aquela sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desaba estirando-se lutuosamente” – como um sinal de tristeza profunda – “pela superfície do rio; os homens correm às armas e numa fúria recortada de espantos, fazendo o “pelo sinal” e aperrando os gatilhos , alvejam-nos desapiedadamente”, pois  o desejo de vingança daquele destino cruel precisa ser saciado.

            Não há lugar por que passe despercebidamente. A cada saraivada ele agita os braços, como a “agradecer em canhestras mesuras as manifestações rancorosas em que tempesteiam tiros, e gritos, sarcasmos pungentes e sobretudo maldições”.  E, “na palavra descansada dos matutos”, ecoa há vinte anos uma excomunhão: “Caminha!” É o sertanejo gritando consigo mesmo: “Caminha! “.

            Mas o Judas se livra dos perseguidores e continua, em silêncio, por algum trecho  sem curvas e longo. Segue o contorno de uma praia deserta e, de repente, encontra outras mulheres e crianças em “prantos e clamores”. E mais tiros vindo do alto, mais afrontas e zombarias. Mas continua fugindo, e descendo... Encontra, “na estrada dolorosa outros sócios de infortúnio, outros aleijões apavorantes sobre as mesmas jangadas diminutas”, que vão surgindo e juntando-se a ele. E não são todos iguais: “vários no aspecto e nos gestos”, como os sertanejos, há os mais rijos e os mais fracos, que oscilam ao menor balanço da jangada, como bêbados, há os “fatídicos, braços alçados, ameaçadores”, como o seu criador gostaria de ter sido – “amaldiçoando” os que dele riem; outros mais humildes, curvados em tristeza profunda e os mais “deploráveis”: os enforcados, balançando,  presos ao mastro. Estes desistiram da luta. Às vezes esses “fantasmas vagabundos” se aproximam em um redemoinho formado pelo rio, e param por momentos, “cruzam então pela primeira vez os olhares imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitação revolta os gestos paralisados e as estaturas rígidas. Há a ilusão de um estupendo tumulto sem ruídos e de um estranho conciliábulo, agitadíssimo, travando-se em segredos, num abafamento de vozes inaudíveis.”  - o texto sugere que às vezes há uma tentativa de rebeldia, por parte dos sertanejos, mas que logo se desmancha.

“Depois, a pouco e pouco, debandam. Afastam-se; dispersam-se. E acompanhando a correnteza, que se retifica na última espiral dos remansos – lá se vão, em filas, um a um, vagarosamente, processionalmente, rio abaixo, descendo...”

            E o seringueiro continua ali, naquela sina ingrata, sem que ninguém o defenda. Houve um Chico Mendes, mas foi  assassinado.

 E a mensagem de Euclides ainda hoje – infelizmente -  continua atual : “Todos esses males provêm, acima de tudo, do fato meramente físico da distância. Desaparecerão, desde que se incorpore a sociedade seqüestrada ao resto do país”

BIBLIOGRAFIA:

1.      TOCANTINS, Leandro. EUCLIDES DA CUNHA E O PARAÍSO PERDIDO. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978;

2.      TOCANTINS, Leandro. O RIO COMANDA A VIDA.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961;

3.      LAURIA, Márcio José. ENSAIOS EUCLIDIANOS. Rio de Janeiro: Presença, 1987;

4.      CUNHA, Euclides da. À MARGEM DA HISTÓRIA. Porto , Portugal: Livraria Chardron, 1926;

5.      ORLANDI, Eni P.. AS FORMAS DO SILÊNCIO E A MOVIMENTAÇÃO DOS SENTIDOS. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997;

6.      ORLANDI, Eni P..ANÁLISE DE DISCURSO – PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS. Campinas: Pontes, 2000.

 
Maria Olivia Garcia ( Area II )
 
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