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Euclides e o berço de Os Sertões
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Heroi Nacional na Literatura Brasileira em Confronto com o Sertanejo de Euclides da Cunha
2001-07-26 00:00:00

 

   


     Não se pretende com este despretensioso esboço senão o levantamento provisório de um problema que há muito nos preocupa, certamente já solução definitiva para muitos estudiosos: a concepcão do herói nacional, vista através de algumas obras que julgamos da mais absoluta importância no cenário artístico-literário do Brasil.

     O problema aqui proposto é bem mais complexo do que pode parecer, mas a nossa intenção não é senão colocá-lo por  um prisma, sem dar uma dimensão ampla, como não se pretende também chegar a configurar aqui a maioria das posições preconizadas por Wilson Martins em seu “A Literatura Brasileira”vol.VI, O Modernismo, Cultrix, São Paulo, 1965, pág.151 e seguintes: “Cada grande movimento literário cria uma figura de “herói” em que se reconhece: O Classicismo, o “honnête homme”; O Enciclopedismo, o “filósofo”;o Romantismo, o “homem fatal”, a “mulher fatal”; o Realismo e o Simbolismo o “névrosé”; o Futurismo e o Modernismo, movimentos otimistas, proporiam a princípio um tipo renascentista, atlético e forte, sadio e vigoroso, representante da alegria (Graça Aranha) e da vida heróica(Plínio Salgado). Mário de Andrade, como seria de esperar, contesta, desde 1925, a validade nacional desse herói; ... é possível que Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, tenha sido a reposta antitética e um pouco tardia ao “tipão alegre”, esportivo, sadio cheio de “caráter”. É interessante observar que a concepção do “herói” modernista oscila regularmente entre o pessimismo e o otimismo, numa alternância mecânica; logo depois do Jeca Tatu, o símbolo da nacionalidade foi o Juca Mulato.” Parece de todo claro que no Brasil não é possível o levantamento de todos esses tipos apresentados pelo crítico, uma vez que só se pode pensar em herói nacional a partir  do Romantismo. Ainda vale acrescentar o herói fixado pela linha regionalista do nordeste e o que aparece em Afonso Arinos e Guimarães Rosa, intimamente relacionados com o herói euclidiano de “Os Sertões”.

     É lógico que nesta apreciação encontram-se lado a lado obras de ficção e obras que assim não podem ou não devem necessariamente ser caracterizadas (caso de Os Sertões mais especificamente). Também não será menos verdade que os tipos das obras de ficção de Arinos e G. Rosa tenham sua existência facilmente comprovada. O que importa é o ponto comum de partida: o enfoque da realidade brasileira.

     A primeira preocupação com o herói nacional sem dúvida começou com José de Alencar, quando já havia condições no BRASIL de afirmação de caráter nacionalista. É que o nacionalismo romântico de nosso país não poderia enxergar de outra forma nosso herói; forçoso é aceitá-lo apesar de sua fantástica concepção, toda homérica, ciclópica, filtrada pelo espírito da Idade  Média, em que Herculano teve marcada influência como ponto de apoio para a concepção alencariana. O Peri que  José de Alencar concebeu em O Guarani  é o resultado da própria versão romântica da existência. Confluem na sua concepção, como já se  disse, características homéricas e medievais; é a um tempo binômio de força física  e postura moral impecável, capaz de proezas inéditas (como., por exemplo, apanhar uma onça viva  ou reaver um bracelete no fundo de um precipício povoado de répteis) em atenção ao fervoroso culto que devota a Ceci. Acrescente-se a eloqüência com que se expressa à maneira dos heróis épicos de Homero. Visto como produto de nossa afirmação nacionalista do período romântico, é um herói-exaltação, um desabafo antilusista com todos os seus prejuízos de concepção perfeitamente aceitáveis, ainda que naturalmente deformada.

     No trecho abaixo extraído de O Guarani, podemos perfeitamente observar, pelos grifos que fizemos, os traços morais e físicos do herói alencariano: figura escultural, vigor físico, espírito de cavaleiro medieval a serviço exclusivo de sua amada.

    “ Em pé, no meio do  espaço que formava a grande abóbada de árvore, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade .

     Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caia-lhe dos ombros até o meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem. 

        Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor de cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com cantos exteriores erguidos para a fronte: a pupila negra,móbil, cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto um pouco oval a beleza inculta da graça, da força e da inteligência. 

     Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e as flechas com a mão direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo.

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     Em Peri, o sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na qual não entrava  um só pensamento de egoísmo; amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para  dedicar-se inteiramente a ele, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.

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     (Alencar, O Guarani, A Luta, IV Cap. e Amor, IX Cap., Melhoramentos, S.P., s/D, págs, 28 a 70).

     Por volta de 1898, uma outra obra continua a visão alencariana: Pelo Sertão  de Afonso Arinos. Despida das preocupações de exaltação patriótica, é a fixação do sertão e do sertanejo brasileiro definidos por suas características agrestes e primitivas, envolvido em razoável camada de sobrenatural, com linguagem típica, precursores do sertão e do jagunço de Guimarães Rosa. Os tipos humanos fixados por Arinos em geral são atléticos (como Pedro Barqueiro no conto de mesmo nome), impõem-se pela força física, capazes como Peri de  realizar feitos extraordinários. Apenas parecem mais reais, esvaziados da contextura imaginativa de Alencar; são rudes e primitivos como o meio; pensam e agem de acordo com essa estrutura ecológica. Vejamos como Afonso Arinos traça a figura de Pedro Barqueiro no trecho abaixo. Observe-se o seu vigor físico assustador e a densa atmosfera de sobrenatural que o envolve (Pedro tinha oração e muito boa oração contra armas de fogo).

     “Eu tinha ouvido falar sempre no Pedro Barqueiro, que um dia aparecera na cidade sem se saber quem era, nem donde vinha.

     Cheguei uma vez a conhecê-lo e falamo-nos. Que boa peça, patrãozinho! Crioulo retinto, alto, troncudo, pouco falante e desempenado. Cada tronco de braço que nem um pedaço de aroeira.

     Estou com ele diante dos olhos, com aquela roupa azuleja, tingida no Barro Preto; atravessado à cinta um  ferro comprido, afiado, aluminando sempre, maior que um facão e menorzinho do  que uma espada.

     Esse negro metia medo de se ver, mas era bonito. Olhava a gente assim com ar de soberbo, de cima para baixo. Parecia ter certeza de que, em chegando a encostar a mão num cabra, o cabra era defunto. Ninguém bulia com ele, mas ele, não mexia com os outros. Vivia seu quieto, em seu canto.

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     Quando cercaram a casinha e lhe deram voz de prisão, o negro fechou a cara e ficou feito jacaré de papo amarelo. Deu frente à porta da rua e encostou-se a uma parede. Maria Nova estava perto e me disse que cochichou uma oração, apertando nos dedos um bentinho, que branquejava na pele negra de sua peitaria lustrosa.

     Chegaram a entrar na casa três homens da escolta, e todos três ficaram estendidos. Pedro tinha oração, e muito boa oração contra armas de fogo, porque José Pequeno, caboclinho atarracado, ao entrar, escancarou no negro o pinguelo de um clavinote e fez fogo. Pedro Barqueiro caminhou sobre ele na fumaça da pólvora e, quando clareou a sala, José Pequeno estava escornado no chão como um boi sangrado.

     Dois rapazinhos quiseram chegar ainda assim, mas Pedro Barqueiro descadeirou um e pôs as tripas de fora a outro, que escaparam, é verdade, mas ficaram lá no chão gemendo por muito tempo. 

     Daí para cá, Pedro evitava andar pela cidade, onde só aparecia  de longe, e à noite. Mas todo o mundo tinha medo dele e vivia adulando-o

     (Afonso Arinos, Pelo Sertão, Pedro Barqueiro, Edições de Ouro, Rio s/d, págs.199 a 216).

     O herói escultural e cheio de mesuras cavalheirescas de Alencar e o herói de Arinos, ciclópico e agreste, cedem lugar, já nos fins da época realista e começos do Simbolismo, ao sertanejo de Os Sertões de Euclides da Cunha. De 1857 (ano da publicação de O Guarani) até 1902 (ano da publicação de Os Sertões), passando por 1898 (data da obra de Afonso Arinos), corre um período de quase cinco décadas , em que o pensamento humano e a vida brasileira sofreram profundas transformações. Com o desenvolvimento científico operado o mundo ganha novas medidas, o homem avança e conquista novos horizontes. É dentro desse clima mental que Euclides concebe sua grande obra. Não pretendia ele a exaltação de valores erigidos pela imaginação, mas o levantamento  de uma realidade nacional merecedora de observação e cuidados especiais. A leitura de Os Sertões, além de ser relevante como elemento básico na fixação dos valores intrínsecos que a obra oferece, suscita campo propício para o equacionamento e a conceituação do herói nacional, visto como retrato da realidade brasileira e, portanto, estrato social nacional, não se esquecendo de que  se trata  de ser humano em conflito dramático diante do fenômeno vital, a ganhar incontestável projeção e sentido universalista. O hiato geográfico, sociológico, histórico, político, econômico, cultural e psicológico entre o interior e o litoral ali se acham configurados. Com a firme intenção  de “denunciar”um fato de extrema importância  para os destinos da nação, sua visão crítica do problema contudo rende tributo a seu temperamento de homem  profundamente sensível e emocional. A visão de Euclides, sobre ser de caráter e convicção  científicos, é de manifesta eclosão emotiva, até mesmo apaixonada. Há, porém, que se reconhecer nela, apesar desse prurido afetivo, sopro artístico positivo do Autor, uma honestidade incontestável. Vale dizer que seu grande mérito está exatamente em fixar um sertanejo “hércules-quasímodo” , incoerente em sua postura e comportamento, ora dinâmico e ativo, ora inerte e passivo, mas reconhecidamente autêntico, como autêntico foi o espírito de Euclides. Seu sertanejo é o que é, o autor não lhe acrescenta nem suprime a autenticidade; fá-lo real e vivo como se encontrava diante de seus perspicazes olhos de observador atento. Na pena de outro escritor ou na transcrição de um historiador ou sociólogo, com certeza sairia um sertanejo comum; na de Euclides ganha o sopro especialíssimo da criação e surge como um herói digno de admiração e compaixão ao mesmo tempo. Facilmente seduz, não só pelo trecho que vamos destacar com vários grifos, como no decorrer de toda obra, que a colocação euclidiana adquire sentido universalista na medida em que intensifica e dramatiza o conflito do homem do sertão de Canudos na luta pela sobrevivência. Hostilizado de um lado por meio inóspito ao qual procura adaptar-se (viver é adaptar-se), incompreendido de outro, sua luta torna-se árdua  e mais valorizada. E o Autor consegue exatamente causar esse impacto no leitor. Euclides sofre pelo sertanejo, comunga suas inquietações, advoga suas causas, embora não sacrifique a verdade dos fatos. Esta sim valoriza e acentua no sertanejo a condição dramática de protagonista de um gigantesco conflito. O binômio Hércules-Quasímodo  explica o comportamento psico-fisiológico do sertanejo. Nessa antítese resolve-se sua caracterização. Apresentando uma incapacidade física transitória, pela postura desarticulada (Quasímodo), é capaz de sofrer ‘transmutações completas”... “e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”. (Hércules). Vejamos o antológico trecho de Euclides:

     “O sertanejo é antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

     A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

     É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules Quasímodo, reflete no aspecto a fealddae típica  dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membro desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente”.

.................................................................................     E se na marcha estaca  pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar  ligeira conversa com um amigo cai logo- cai é o termo – de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

 

     É o homem permanentemente fatigado.

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    Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

     Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso.Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas.

     Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estacando novos relevos, novas linhas na estrutura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

    Êste contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja – caracterizado sempre pela intercadência impressionadora  entre extremos impulsos e apatias longas.

     É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente , a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o campeão que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência.

     Mas se uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta, ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.

     Vimo-lo neste steeple-chase bárbaro.

     Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moutas de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote desgarrado, porque por onde passa o boi passa o vaqueiro com seu cavalo...             

     Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas; saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, a toda a brida, no  largo dos tabuleiros...

     A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda plenitude. Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequeno e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira – estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colocado no arção – escanchado no rastro do novilho esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob um ramalho, que lhe roça quase pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois, num pulo, o selim; - e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoada em couro, que por si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia...

     Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada, ei-lo de novo caído sobre o lombilho retovado, outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta, com a aparência triste de um inválido esmorecido.”

       (Euclides da Cunha, “Os Sertões”, Seleção, introdução, e vocabulário de Olímpio de Souza Andrade, Edição Escolar, Edições de Ouro, Rio, 1970, págs.70 a 83).   

 Nosso herói, visto a princípio como necessidade de exaltação patriótica em Alencar, concebido depois como elemento típico de nosso regionalismo em Arinos, enfocado como incompreendido e marginalizado no contexto histórico-cultural brasileiro em Euclides, passa a ser analisado com certa irreverência pelo espírito iônico de Monteiro Lobato, a partir de 1918 com o livro Urupês.

     Desaparece a fantasia alencariana, combatida e ridicularizada pelo criador do famoso Jeca Tatu; extingue-se a emoção e simpatia por um herói injustiçado em Os Sertões; surge a crítica mordaz, cáustica, às vezes até impiedosa de Lobato. O Jeca Tatu sobrepõe-se a Peri, Pedro Barqueiro, aos sertanejos de Euclides; é um homem incapaz de lutar, totalmente  vencido pelo negativismo congênito. Acomodado, vive de cócoras, mas não transitoriamente como o sertanejo euclidiano e sim eternamente; não ocorre nele a fantástica metamorfose, eterno quasímodo a modorrar sobre os calcanhares. É bem verdade que o piraquara de Lobato é um tipo mais regional (o cabloco que vive às margens do Paraíba), mas não se pode contestar que contém ele ingredientes típicos do espírito nacional. Para o Jeca Tatu de Lobato caberiam bem as palavras de Mário de Andrade em “Elegia de Abril”, transcrita aqui através de Wilson Martins, obra citada, página 157:

“... em nossa literatura de ficção, romance ou conto, o que está aparecendo com abundância não é este fracasso derivado de duas forças em luta, mas a descrição do ser sem força nenhuma, do indivíduo desfibrado, incompetente para viver, e que não consegue opor elemento pessoal nenhum, nenhum traço de caráter, nenhum músculo como nenhum ideal, contra a vida ambiente.

     Antes, se entrega à sua conformada insolubilidade”

     Eis o Jeca na pena de Lobato:

 

     “Ei-lo que vem falar ao patrão. Entrou, saudou. Seu primeiro movimento após prender entre os lábios a palha de milho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada d’esguicho, é sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares. Só então destrava a língua e a inteligência.     

     De pé ou sentado as idéias se lhe entramam, a língua emperra e não há de dizer coisa com coisa.

     De noite, na choça de palha, acocora-se em frente ao fogo para “aquentá-lo”, imitado da mulher a da prole.

     Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostar um cabo de foice, fazê-lo noutra posição será desastre infalível. Há de ser de cócoras.

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     As vezes se dá o luxo de um banquinho de três pernas para os hóspedes. Três pernas permitem equilíbrio: inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão. Para que assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados calcanhares sobre os quais se sentam?

     Nenhum talher. Não é a munheca um talher completo – colher, garfo e faca a um tempo?

     No mais, uma cuias, gamelinhas, um pote esbeiçado, a pichorra e a panela de feijão.

     Nada de armários ou baús. A roupa, guarda-a no corpo. Só tem dois parelhos; um traz no uso e outro na lavagem.

     Os mantimentos apaiola nos cantos da casa. 

     Inventou um cipó preso à cumeeira, de  gancho na ponta e um disco de lata no alto: ali pendura o toucinho, a salvo dos gatos e ratos.

     Da parede pende a espingarda picapau, o polvarinho de chifre, o S. Benedito defumado, o rabo de tatu a as palmas bentas de queimar durante as fortes trovoadas. Servem de gaveta os buracos da parede.

     Seus remotos avós não gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso.

     Se pelotas de barro caem, abrindo seteiras na parede, Jeca não se move a repô-las. Ficam pelo resto da vida os buracos abertos,a entremostrarem nesgas de céu.

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     Jeca, interpelado, olha para o morro coberto da moirões, olha para o terreiro nu, coça a cabeça e cuspilha.

-          Não paga a pena”.

(Monteiro Lobato, Urupês, 16.ª Ed., Brasiliense, S.P., 1971, págs.144 e 155)

 

     Com Sagarana (1946) e Grande Sertão: Veredas (1956), Guimarães Rosa continua a linha aberta por Afonso Arinos, criando tipos inesquecíveis como Nhô Augusto, Riobaldo e Pedro Osório. Ressurge o herói de Arinos, agora também evidenciando discutível comportamento moral, passível de retratação futura ao longo das estórias de G. Rosa. Destacamos dois momentos dos contos A Hora e a Vez de Augusto Matraga e Recado do Morro:

     “E aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião:

-          Cinqüenta mil-réis...

 

E ficou de mãos na cintura, sem dar rosto ao povo, mas posando para os aplausos.

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     Ela conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato..

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     O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe – o mais forte e mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça – era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí `a beira do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio: o arranca-toco, o  treme-terra, o come-brasa, o Pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: seu Joãozinho Bem-Bem.”

     (Guimarães Rosa, a Hora e Vez de Augusto Matraga, Antologia Escolar de Contos Brasileiros, Edições de Ouro, Rio, s/d., págs.139 a 198).          

      “Debaixo de ordem. De guiador – a pé, descalço – Pedro Orósio: moço, a nuca bem feita, graúda membradura; e marcadamente erguido; nem lhe faltavam cinco centímetros para ter um talhe de gigante, capaz de cravar de engolpe em qualquer terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em cruz os ossos da cabeça, e de um marruás, com um  soco em sua cabeloura, e de levantar  do chão um jumento arreado, carregando-o nos braços por meio quilômetro, esquivando-se de seus coices e mordidas, e sem nem por isso afrouxar do fôlego de ar que Deus empresta a todos.

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     E frei Sinfrão mesmo sabia, já respondia, jocoso, linguajando.

     Que o Pedro era ainda teimoso solteiro, e o maior bandoleiro namorador: as moças todas mais gostavam dele do que de qualquer outro; por abuso disso, vivia tirando as namoradas, atravessava e tomava a quem bem quisesse, só por divertimento de indecisão. Tal modo que muitos homens e rapazes lhe tinham ódio, queriam o fim dele, se não se atreviam a pegá-lo era por sensatez de medo, por ele ser turuna e primão em força, feito um touro ou uma montanha.

     ............................................................................                                O céu não tinha fim, e as serras se estiravam, sob o esbaldado azul e enormes nuvens oceanosas. Ora os cavaleiros passavam por um socalco, entre uma quadra de pedreira avançante, pedra peluda, e o despenhadeiro, uma frã  altíssima. Eles seguiam Pedro Orósio; era vaqueiro, nele se fiavam. Ia bem na dianteira. Aquele elevado moço, sem paletó, a camisa furada, um ombro saindo por um buraco; terminado, de velho, seu chapéu-de-palha: copa e circulo, com o rego côncavo; e à cintura, a garrucha na capa, e um facão, ia, ao longo.

-           Sansão... – disse seo Alquiste. Fazia agrado ver sua boa coragem de pisar, seu decidido arranque.

E Pedro Orósio não podia parar quieto. O estatuto de seu corpo requeria sempre movimentos: tinha de estar trabalhando, ou caminhando, ou caçando como se divertir.

     (Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, No Pinhém, corpo de Baile, 4.ª Ed., José Olympio Ed., Rio, 1969, págs. 5 a 70).

     Com Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1938), de certa forma ressurge o herói euclidiano oprimido pelas mesmas circunstâncias adversas, claro que em obra de ficção, uma vez que Os Sertões, obra até hoje sem rótulo definitivo, não possa ser enquadrada no gênero.

     Concepção mais avançada e complexa do herói nacional encontramos em Macunaíma de Mário de Andrade (1928), onde o Autor cria o anti-heói nacional, o “herói sem nenhum caráter”, soma das características nacionais dentro de uma visão a um tempo lírica e crítica.

     É natural que aqui faltam textos de autores de nossa literatura também capazes de enriquecer os propósitos desta despretensiosa pesquisa. Entretanto, por estes aqui transcritos não parece difícil configurar os dois tipos predominantes de herói nacional, aos quais se refere Wilson Martins na já citada obra: o tipo alegrão, descontraído, cordial, saudável (em Alencar, Arinos e Guimarães Rosa); o tipo fracassado, contraído, tenso, pessimista, vítima das contingências (em Euclides, na linha regionalista do nordeste e em Lobato).

     Por último, recomendamos aos maratonistas a releitura em profundidade do capítulo III de O Homem, onde Euclides esmiúça os componentes físicos e morais do sertanejo, herói que não se destaca pela capacidade de matar (jagunço), mas pelo heroísmo na resistência aos fatores totalmente adversos (vaqueiro e jagunço): “Perfeita tradução moral dos agentes físicos de sua terra, o sertanejo do Norte teve árdua aprendizagem de reveses”. ( Euclides, Os Sertões, Cultrix, S.P, 1973, pág.103). “O heroísmo tem nos sertões, para todo sempre perdidas, tragédias espantosas. Não há revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta contra o homem .(Idem, ibidem, pág,112)”. “Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas exigindo-lhe imperiosamente a  convergência de todas as energias.”(Idem, Ibidem,pág.102)..


     Através da meditação demorada do texto euclidiano durante todo o transcorrer da grande obra, podemos chegar a sentir e compreender a intensidade do impacto de que somos tomados, já no final do livro, diante da apoteótica resistência sertaneja, afinal exaurida ao longo de uma campanha inglória:  

   “Canudos (isto é, o sertanejo) não se rendeu. Exemplo único em toda História, resistiu até ao esgotamento completo.”  (Idem, Ibidem, pág.392).

 
Lando Lofrano ( Area III )
 
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