Não se pretende com este despretensioso esboço senão o
levantamento provisório de um problema que há muito nos preocupa, certamente já
solução definitiva para muitos estudiosos: a concepcão do herói nacional, vista
através de algumas obras que julgamos da mais absoluta importância no cenário
artístico-literário do Brasil.
O
problema aqui proposto é bem mais complexo do que pode parecer, mas a nossa
intenção não é senão colocá-lo por um
prisma, sem dar uma dimensão ampla, como não se pretende também chegar a
configurar aqui a maioria das posições preconizadas por Wilson Martins em seu
“A Literatura Brasileira”vol.VI, O Modernismo, Cultrix, São Paulo, 1965,
pág.151 e seguintes: “Cada grande movimento literário cria uma figura de
“herói” em que se reconhece: O Classicismo, o “honnête homme”; O
Enciclopedismo, o “filósofo”;o Romantismo, o “homem fatal”, a “mulher fatal”; o
Realismo e o Simbolismo o “névrosé”; o Futurismo e o Modernismo, movimentos
otimistas, proporiam a princípio um tipo renascentista, atlético e forte, sadio
e vigoroso, representante da alegria (Graça Aranha) e da vida heróica(Plínio
Salgado). Mário de Andrade, como seria de esperar, contesta, desde 1925, a
validade nacional desse herói; ... é possível que Macunaíma, o “herói sem
nenhum caráter”, tenha sido a reposta antitética e um pouco tardia ao “tipão
alegre”, esportivo, sadio cheio de “caráter”. É interessante observar que a
concepção do “herói” modernista oscila regularmente entre o pessimismo e o
otimismo, numa alternância mecânica; logo depois do Jeca Tatu, o símbolo da
nacionalidade foi o Juca Mulato.” Parece de todo claro que no Brasil não é
possível o levantamento de todos esses tipos apresentados pelo crítico, uma vez
que só se pode pensar em herói nacional a partir do Romantismo. Ainda vale acrescentar o herói fixado pela linha
regionalista do nordeste e o que aparece em Afonso Arinos e Guimarães Rosa,
intimamente relacionados com o herói euclidiano de “Os Sertões”.
É lógico
que nesta apreciação encontram-se lado a lado obras de ficção e obras que assim
não podem ou não devem necessariamente ser caracterizadas (caso de Os Sertões
mais especificamente). Também não será menos verdade que os tipos das obras de
ficção de Arinos e G. Rosa tenham sua existência facilmente comprovada. O que
importa é o ponto comum de partida: o enfoque da realidade brasileira.
A
primeira preocupação com o herói nacional sem dúvida começou com José de
Alencar, quando já havia condições no BRASIL de afirmação de caráter
nacionalista. É que o nacionalismo romântico de nosso país não poderia enxergar
de outra forma nosso herói; forçoso é aceitá-lo apesar de sua fantástica concepção,
toda homérica, ciclópica, filtrada pelo espírito da Idade Média, em que Herculano teve marcada
influência como ponto de apoio para a concepção alencariana. O Peri que José de Alencar concebeu em O Guarani é o resultado da própria versão romântica da
existência. Confluem na sua concepção, como já se disse, características homéricas e medievais; é a um tempo
binômio de força física e postura moral
impecável, capaz de proezas inéditas (como., por exemplo, apanhar uma onça
viva ou reaver um bracelete no fundo de
um precipício povoado de répteis) em atenção ao fervoroso culto que devota a
Ceci. Acrescente-se a eloqüência com que se expressa à maneira dos heróis
épicos de Homero. Visto como produto de nossa afirmação nacionalista do período
romântico, é um herói-exaltação, um desabafo antilusista com todos os seus
prejuízos de concepção perfeitamente aceitáveis, ainda que naturalmente
deformada.
No
trecho abaixo extraído de O Guarani, podemos perfeitamente observar,
pelos grifos que fizemos, os traços morais e físicos do herói alencariano:
figura escultural, vigor físico, espírito de cavaleiro medieval a serviço
exclusivo de sua amada.
“ Em pé,
no meio do espaço que formava a grande
abóbada de árvore, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio
na flor da idade .
Uma
simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará, apertada à
cintura por uma faixa de penas escarlates, caia-lhe dos ombros até o meio da
perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem.
Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor de cobre, brilhava
com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos
grandes com cantos exteriores erguidos para a fronte: a pupila negra,móbil,
cintilante; a boca forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam
ao rosto um pouco oval a beleza inculta da graça, da força e da
inteligência.
Era de alta
estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa,
ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas
firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e as flechas com a mão
direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo
forcado de pau enegrecido pelo fogo.
...............................................................................
Em Peri,
o sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na qual não
entrava um só pensamento de egoísmo; amava
Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ele, para cumprir
o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que
não fosse imediatamente uma realidade.
.................................................................................
(Alencar, O Guarani, A Luta, IV Cap. e Amor, IX Cap., Melhoramentos,
S.P., s/D, págs, 28 a 70).
Por
volta de 1898, uma outra obra continua a visão alencariana: Pelo Sertão de Afonso Arinos. Despida das preocupações
de exaltação patriótica, é a fixação do sertão e do sertanejo brasileiro
definidos por suas características agrestes e primitivas, envolvido em razoável
camada de sobrenatural, com linguagem típica, precursores do sertão e do
jagunço de Guimarães Rosa. Os tipos humanos fixados por Arinos em geral são atléticos
(como Pedro Barqueiro no conto de mesmo nome), impõem-se pela força física,
capazes como Peri de realizar feitos
extraordinários. Apenas parecem mais reais, esvaziados da contextura
imaginativa de Alencar; são rudes e primitivos como o meio; pensam e agem de
acordo com essa estrutura ecológica. Vejamos como Afonso Arinos traça a figura
de Pedro Barqueiro no trecho abaixo. Observe-se o seu vigor físico assustador e
a densa atmosfera de sobrenatural que o envolve (Pedro tinha oração e muito boa
oração contra armas de fogo).
“Eu
tinha ouvido falar sempre no Pedro Barqueiro, que um dia aparecera na cidade
sem se saber quem era, nem donde vinha.
Cheguei
uma vez a conhecê-lo e falamo-nos. Que boa peça, patrãozinho! Crioulo
retinto, alto, troncudo, pouco falante e desempenado. Cada tronco de
braço que nem um pedaço de aroeira.
Estou
com ele diante dos olhos, com aquela roupa azuleja, tingida no Barro Preto;
atravessado à cinta um ferro comprido,
afiado, aluminando sempre, maior que um facão e menorzinho do que uma espada.
Esse
negro metia medo de se ver, mas era bonito. Olhava a gente assim com ar
de soberbo, de cima para baixo. Parecia ter certeza de que, em chegando a
encostar a mão num cabra, o cabra era defunto. Ninguém bulia com ele, mas ele,
não mexia com os outros. Vivia seu quieto, em seu canto.
.................................................................................
Quando
cercaram a casinha e lhe deram voz de prisão, o negro fechou a cara e ficou
feito jacaré de papo amarelo. Deu frente à porta da rua e encostou-se a uma
parede. Maria Nova estava perto e me disse que cochichou uma oração,
apertando nos dedos um bentinho, que branquejava na pele negra de sua
peitaria lustrosa.
Chegaram
a entrar na casa três homens da escolta, e todos três ficaram estendidos. Pedro
tinha oração, e muito boa oração contra armas de fogo, porque José Pequeno,
caboclinho atarracado, ao entrar, escancarou no negro o pinguelo de um
clavinote e fez fogo. Pedro Barqueiro caminhou sobre ele na fumaça da pólvora
e, quando clareou a sala, José Pequeno estava escornado no chão como um boi
sangrado.
Dois
rapazinhos quiseram chegar ainda assim, mas Pedro Barqueiro descadeirou um e
pôs as tripas de fora a outro, que escaparam, é verdade, mas ficaram lá no
chão gemendo por muito tempo.
Daí para
cá, Pedro evitava andar pela cidade, onde só aparecia de longe, e à noite. Mas todo o mundo tinha medo dele e vivia
adulando-o
(Afonso
Arinos, Pelo Sertão, Pedro Barqueiro, Edições de Ouro, Rio s/d, págs.199 a
216).
O herói
escultural e cheio de mesuras cavalheirescas de Alencar e o herói de Arinos,
ciclópico e agreste, cedem lugar, já nos fins da época realista e começos do
Simbolismo, ao sertanejo de Os Sertões de Euclides da Cunha. De 1857 (ano da
publicação de O Guarani) até 1902 (ano da publicação de Os Sertões),
passando por 1898 (data da obra de Afonso Arinos), corre um período de quase
cinco décadas , em que o pensamento humano e a vida brasileira sofreram
profundas transformações. Com o desenvolvimento científico operado o mundo
ganha novas medidas, o homem avança e conquista novos horizontes. É dentro
desse clima mental que Euclides concebe sua grande obra. Não pretendia ele a
exaltação de valores erigidos pela imaginação, mas o levantamento de uma realidade nacional merecedora de
observação e cuidados especiais. A leitura de Os Sertões, além de ser
relevante como elemento básico na fixação dos valores intrínsecos que a obra
oferece, suscita campo propício para o equacionamento e a conceituação do herói
nacional, visto como retrato da realidade brasileira e, portanto, estrato
social nacional, não se esquecendo de que
se trata de ser humano em
conflito dramático diante do fenômeno vital, a ganhar incontestável projeção e
sentido universalista. O hiato geográfico, sociológico, histórico, político,
econômico, cultural e psicológico entre o interior e o litoral ali se acham
configurados. Com a firme intenção de
“denunciar”um fato de extrema importância
para os destinos da nação, sua visão crítica do problema contudo rende
tributo a seu temperamento de homem
profundamente sensível e emocional. A visão de Euclides, sobre ser de
caráter e convicção científicos, é de
manifesta eclosão emotiva, até mesmo apaixonada. Há, porém, que se reconhecer
nela, apesar desse prurido afetivo, sopro artístico positivo do Autor, uma
honestidade incontestável. Vale dizer que seu grande mérito está exatamente em
fixar um sertanejo “hércules-quasímodo” , incoerente em sua postura e
comportamento, ora dinâmico e ativo, ora inerte e passivo, mas reconhecidamente
autêntico, como autêntico foi o espírito de Euclides. Seu sertanejo é o que é,
o autor não lhe acrescenta nem suprime a autenticidade; fá-lo real e vivo como
se encontrava diante de seus perspicazes olhos de observador atento. Na pena de
outro escritor ou na transcrição de um historiador ou sociólogo, com certeza
sairia um sertanejo comum; na de Euclides ganha o sopro especialíssimo da
criação e surge como um herói digno de admiração e compaixão ao mesmo tempo.
Facilmente seduz, não só pelo trecho que vamos destacar com vários grifos, como
no decorrer de toda obra, que a colocação euclidiana adquire sentido
universalista na medida em que intensifica e dramatiza o conflito do homem do
sertão de Canudos na luta pela sobrevivência. Hostilizado de um lado por meio
inóspito ao qual procura adaptar-se (viver é adaptar-se), incompreendido de
outro, sua luta torna-se árdua e mais
valorizada. E o Autor consegue exatamente causar esse impacto no leitor.
Euclides sofre pelo sertanejo, comunga suas inquietações, advoga suas causas,
embora não sacrifique a verdade dos fatos. Esta sim valoriza e acentua no
sertanejo a condição dramática de protagonista de um gigantesco conflito. O
binômio Hércules-Quasímodo
explica o comportamento psico-fisiológico do sertanejo. Nessa antítese
resolve-se sua caracterização. Apresentando uma incapacidade física
transitória, pela postura desarticulada (Quasímodo), é capaz de sofrer ‘transmutações
completas”... “e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta,
inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num
desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”. (Hércules).
Vejamos o antológico trecho de Euclides:
“O
sertanejo é antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos
mestiços neurastênicos do litoral.
A sua
aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário.
Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno a estrutura corretíssima das
organizações atléticas.
É
desgracioso, desengonçado, torto. Hércules Quasímodo, reflete no aspecto a
fealddae típica dos fracos. O andar sem
firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membro
desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de
displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente”.
................................................................................. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um
cigarro, bater o isqueiro, ou travar
ligeira conversa com um amigo cai logo- cai é o termo – de cócoras,
atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu
corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares,
com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o
homem permanentemente fatigado.
.................................................................................
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é
mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso.Naquela organização
combalida operam-se, em segundos, transmutações completas.
Basta o
aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias
adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estacando novos relevos,
novas linhas na estrutura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os
ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe,
prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento
habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta
inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num
desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
Êste
contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os
pormenores da vida sertaneja – caracterizado sempre pela intercadência
impressionadora entre extremos impulsos
e apatias longas.
É
impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas
coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição
da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados,
resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando
morosamente , a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro
preguiçoso quase transforma o campeão que cavalga na rede amolecedora em
que atravessa dois terços da existência.
Mas se
uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta,
ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos
transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e
partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das
juremas.
Vimo-lo
neste steeple-chase bárbaro.
Não há
contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras,
coivaras, moutas de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede
encalçar o garrote desgarrado, porque por onde passa o boi passa o
vaqueiro com seu cavalo...
Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à
pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco:
emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas; saltando
valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos
espinheirais mordentes; precipitando-se, a toda a brida, no largo dos tabuleiros...
A sua
compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda plenitude. Como que é o
cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequeno e frágil, sustendo-o nas
rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na
carreira – estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente,
torso colocado no arção – escanchado no rastro do novilho esquivo: aqui
curvando-se agilíssimo, sob um ramalho, que lhe roça quase pela sela; além
desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para
fugir ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois,
num pulo, o selim; - e galopando sempre, através de todos os obstáculos,
sopesando à destra sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos
cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoada em couro, que por si só
constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia...
Mas
terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada, ei-lo de novo caído
sobre o lombilho retovado, outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição
da andadura lenta, com a aparência triste de um inválido esmorecido.”
(Euclides da Cunha, “Os Sertões”, Seleção, introdução, e vocabulário de
Olímpio de Souza Andrade, Edição Escolar, Edições de Ouro, Rio, 1970, págs.70 a
83).
Nosso herói,
visto a princípio como necessidade de exaltação patriótica em Alencar,
concebido depois como elemento típico de nosso regionalismo em Arinos, enfocado
como incompreendido e marginalizado no contexto histórico-cultural brasileiro
em Euclides, passa a ser analisado com certa irreverência pelo espírito iônico
de Monteiro Lobato, a partir de 1918 com o livro Urupês.
Desaparece a fantasia alencariana, combatida e ridicularizada pelo
criador do famoso Jeca Tatu; extingue-se a emoção e simpatia por um herói
injustiçado em Os Sertões; surge a crítica mordaz, cáustica, às vezes
até impiedosa de Lobato. O Jeca Tatu sobrepõe-se a Peri, Pedro Barqueiro, aos
sertanejos de Euclides; é um homem incapaz de lutar, totalmente vencido pelo negativismo congênito.
Acomodado, vive de cócoras, mas não transitoriamente como o sertanejo
euclidiano e sim eternamente; não ocorre nele a fantástica metamorfose, eterno
quasímodo a modorrar sobre os calcanhares. É bem verdade que o piraquara de
Lobato é um tipo mais regional (o cabloco que vive às margens do Paraíba), mas
não se pode contestar que contém ele ingredientes típicos do espírito nacional.
Para o Jeca Tatu de Lobato caberiam bem as palavras de Mário de Andrade em
“Elegia de Abril”, transcrita aqui através de Wilson Martins, obra citada,
página 157:
“... em nossa literatura de ficção, romance ou conto, o
que está aparecendo com abundância não é este fracasso derivado de duas forças
em luta, mas a descrição do ser sem força nenhuma, do indivíduo desfibrado,
incompetente para viver, e que não consegue opor elemento pessoal nenhum, nenhum
traço de caráter, nenhum músculo como nenhum ideal, contra a vida ambiente.
Antes,
se entrega à sua conformada insolubilidade”
Eis o
Jeca na pena de Lobato:
“Ei-lo
que vem falar ao patrão. Entrou, saudou. Seu primeiro movimento após prender
entre os lábios a palha de milho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada
d’esguicho, é sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares. Só então
destrava a língua e a inteligência.
De pé
ou sentado as idéias se lhe entramam, a língua emperra e não há de dizer coisa
com coisa.
De
noite, na choça de palha, acocora-se em frente ao fogo para “aquentá-lo”,
imitado da mulher a da prole.
Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostar um
cabo de foice, fazê-lo noutra posição será desastre infalível. Há de ser de
cócoras.
.................................................................................
As vezes
se dá o luxo de um banquinho de três pernas para os hóspedes. Três pernas
permitem equilíbrio: inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o
obrigaria a nivelar o chão. Para que assentos, se a natureza os dotou de
sólidos, rachados calcanhares sobre os quais se sentam?
Nenhum
talher. Não é a munheca um talher completo – colher, garfo e faca a um
tempo?
No mais, uma cuias, gamelinhas, um pote
esbeiçado, a pichorra e a panela de feijão.
Nada de
armários ou baús. A roupa, guarda-a no corpo. Só tem dois parelhos; um traz no
uso e outro na lavagem.
Os
mantimentos apaiola nos cantos da casa.
Inventou um cipó preso à cumeeira, de gancho na ponta e um disco de lata no alto:
ali pendura o toucinho, a salvo dos gatos e ratos.
Da
parede pende a espingarda picapau, o polvarinho de chifre, o S. Benedito
defumado, o rabo de tatu a as palmas bentas de queimar durante as fortes
trovoadas. Servem de gaveta os buracos da parede.
Seus remotos avós não gozaram maiores comodidades. Seus netos
não meterão quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso.
Se
pelotas de barro caem, abrindo seteiras na parede, Jeca não se move a repô-las.
Ficam pelo resto da vida os buracos abertos,a entremostrarem nesgas de céu.
.................................................................................
Jeca,
interpelado, olha para o morro coberto da moirões, olha para o terreiro nu,
coça a cabeça e cuspilha.
-
Não
paga a pena”.
(Monteiro Lobato, Urupês,
16.ª Ed., Brasiliense, S.P., 1971, págs.144 e 155)
Com
Sagarana (1946) e Grande Sertão: Veredas (1956), Guimarães Rosa continua a
linha aberta por Afonso Arinos, criando tipos inesquecíveis como Nhô Augusto,
Riobaldo e Pedro Osório. Ressurge o herói de Arinos, agora também evidenciando
discutível comportamento moral, passível de retratação futura ao longo das
estórias de G. Rosa. Destacamos dois momentos dos contos A Hora e a Vez
de Augusto Matraga e Recado do Morro:
“E aí,
de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito
largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços em tenso,
angulando os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema,
e pôs-lhe o dedo no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o
leiloeiro Tião:
-
Cinqüenta
mil-réis...
E ficou de mãos na cintura,
sem dar rosto ao povo, mas posando para os aplausos.
.........................................................................
Ela conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro,
doido e sem detença, como um bicho grande do mato..
.........................................................................
O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o
chefe – o mais forte e mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu
de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse
rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça – era o homem mais afamado dos
dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do
Jequitaí `a beira do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de
Carinhanha até Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio: o arranca-toco,
o treme-terra, o come-brasa, o
Pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o
rompe-e-arrasa: seu Joãozinho Bem-Bem.”
(Guimarães Rosa, a Hora e Vez de Augusto Matraga, Antologia
Escolar de Contos Brasileiros, Edições de Ouro, Rio, s/d., págs.139 a
198).
“Debaixo de ordem. De guiador – a pé, descalço – Pedro
Orósio: moço, a nuca bem feita, graúda membradura; e marcadamente erguido; nem
lhe faltavam cinco centímetros para ter um talhe de gigante, capaz de cravar de
engolpe em qualquer terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em cruz os
ossos da cabeça, e de um marruás, com um
soco em sua cabeloura, e de levantar
do chão um jumento arreado, carregando-o nos braços por meio quilômetro,
esquivando-se de seus coices e mordidas, e sem nem por isso afrouxar do fôlego
de ar que Deus empresta a todos.
.........................................................................
E frei
Sinfrão mesmo sabia, já respondia, jocoso, linguajando.
Que o
Pedro era ainda teimoso solteiro, e o maior bandoleiro namorador: as moças
todas mais gostavam dele do que de qualquer outro; por abuso disso, vivia
tirando as namoradas, atravessava e tomava a quem bem quisesse, só por
divertimento de indecisão. Tal modo que muitos homens e rapazes lhe tinham
ódio, queriam o fim dele, se não se atreviam a pegá-lo era por sensatez de
medo, por ele ser turuna e primão em força, feito um touro ou uma montanha.
............................................................................ O céu não
tinha fim, e as serras se estiravam, sob o esbaldado azul e enormes nuvens
oceanosas. Ora os cavaleiros passavam por um socalco, entre uma quadra de
pedreira avançante, pedra peluda, e o despenhadeiro, uma frã altíssima. Eles seguiam Pedro Orósio; era
vaqueiro, nele se fiavam. Ia bem na dianteira. Aquele elevado moço, sem
paletó, a camisa furada, um ombro saindo por um buraco; terminado, de velho,
seu chapéu-de-palha: copa e circulo, com o rego côncavo; e à cintura, a
garrucha na capa, e um facão, ia, ao longo.
-
Sansão... – disse seo Alquiste. Fazia
agrado ver sua boa coragem de pisar, seu decidido arranque.
E Pedro Orósio não podia
parar quieto. O estatuto de seu corpo requeria sempre movimentos: tinha de
estar trabalhando, ou caminhando, ou caçando como se divertir.
(Guimarães Rosa, No Urubuquaquá, No
Pinhém, corpo de Baile, 4.ª Ed., José Olympio Ed., Rio, 1969, págs. 5 a 70).
Com Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1938), de certa forma ressurge
o herói euclidiano oprimido pelas mesmas circunstâncias adversas, claro que em
obra de ficção, uma vez que Os Sertões, obra até hoje sem rótulo
definitivo, não possa ser enquadrada no gênero.
Concepção mais avançada e complexa do herói nacional
encontramos em Macunaíma de Mário de Andrade (1928), onde o Autor cria o
anti-heói nacional, o “herói sem nenhum caráter”, soma das características
nacionais dentro de uma visão a um tempo lírica e crítica.
É natural que aqui faltam textos de autores de nossa
literatura também capazes de enriquecer os propósitos desta despretensiosa
pesquisa. Entretanto, por estes aqui transcritos não parece difícil configurar
os dois tipos predominantes de herói nacional, aos quais se refere Wilson
Martins na já citada obra: o tipo alegrão, descontraído, cordial, saudável (em
Alencar, Arinos e Guimarães Rosa); o tipo fracassado, contraído, tenso,
pessimista, vítima das contingências (em Euclides, na linha regionalista do
nordeste e em Lobato).
Por último, recomendamos aos maratonistas a releitura em profundidade
do capítulo III de O Homem, onde Euclides esmiúça os componentes físicos
e morais do sertanejo, herói que não se destaca pela capacidade de matar (jagunço),
mas pelo heroísmo na resistência aos fatores totalmente adversos (vaqueiro
e jagunço): “Perfeita tradução moral dos agentes físicos de sua terra, o sertanejo
do Norte teve árdua aprendizagem de reveses”. ( Euclides, Os Sertões, Cultrix,
S.P, 1973, pág.103). “O heroísmo tem nos sertões, para todo sempre perdidas,
tragédias espantosas. Não há revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta
contra o homem .(Idem, ibidem, pág,112)”. “Atravessou a mocidade numa intercadência
de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o logo,
intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das
secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um
condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas exigindo-lhe
imperiosamente a convergência de todas as energias.”(Idem, Ibidem,pág.102)..