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Euclides e o berço de Os Sertões
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O Cambaio: Um Baluarte de Titãs
2001-07-26 00:00:00

 

Narra Euclides da Cunha em Os Sertões que o major Febrônio de Brito, à frente de 500 e poucos homens, avançava contra Canudos pela estrada do Cambaio, a mais curta porém a mais acidentada. A duas léguas do arraial, acamparam para passar a noite, talvez divisando ao longe algumas luzes a demarcarem posições inimigas.

Ao amanhecer, desdobrava-se diante deles, imponente, a serra do Cambaio. Suas massas dispunham-se de modo extravagante: ora fundamente recortadas de gargantas longas e circulantes como fossos, ora elevando-se em patamares sucessivos. Desta forma, o conjunto lembrava uma fortaleza de titãs

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Nessa região são comuns esses aspectos bizarros do relevo, que realmente impressionam. Para isto, não carecem do auxílio da imaginação fantasiosa e supersticiosa dos matutos,  mas impõem-se por si mesmos. É o que se pode depreender do testemunho de “frios observadores” que atravessaram a região ainda deserta e não esconderam estas estranhezas em seus relatórios. É o caso do tenente-coronel Durval de Aguiar que assim relatou: "...serras de pedra naturalmente sobrepostas formando fortalezas e redutos inexpugnáveis com tal perfeição que parecem obras de arte".

Tais ilusões não ocorrem apenas no Cambaio. Outras paragens adjacentes lembram "cidades mortas", ante as quais o sertanejo passa em disparada, temendo almas do outro mundo. Essas bizarrias do relevo conferem um quê de mistério à região.

Não se busquem, entretanto, excessivas semelhanças entre o Cambaio e as linhas geométricas de uma fortaleza: os “redutos” da montanha “eram rudes e bárbaros como aqueles que os guarneciam”, sinaliza misteriosamente Euclides. Mas à distância, continua Euclides, o conjunto da serra incute no observador a impressão de topar com os muros de velhíssimos castelos reduzidos a ruína por sucessivos assaltos.

Ainda assim, adverte o positivista Euclides, o Cambaio não passa de uma montanha arruinada, fruto da ação das intempéries e soalheiras. (1) Com esta assertiva, e  ironizando os “homens estudiosos da Bahia”, que haviam ido à região em busca de “cidades fantasmas”, afasta quaisquer sugestões pouco ou nada sustentáveis.

Entretanto, figuradamente acolhe e acentua a fugaz semelhança com "redutos bárbaros". Nesta clave, vê-os erigidos "à têmpera dos que os guarneciam". Neles se emboscavam os sertanejos-titãs: "As massas do Cambaio (...) lembravam desmedidas bermas de algum baluarte derruído, de titãs"

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          Na Mitologia grega, os Titãs constituem a primeira geração de 12 filhos da união de Urano (o Céu) com Géia (a Terra). Eram seis irmãos e seis irmãs, dos quais os mais importantes foram chamados Cronos e Réia. Numa segunda geração, dos mesmos pais nasceram os três Hecatonquiros, monstros de 100 mãos que presidiam os terremotos, e os três Ciclopes de um olho só, forjadores de relâmpagos.

Urano não se agradou dos filhos da 2ª geração; por isso os mergulhava de novo na Terra à medida que nasciam. Irritada com isto, Réia instigou contra o pai Urano os irmãos da 1ª geração, os Titãs, os quais venceram o pai e libertaram os irmãos da 2ª geração. Cronos então fere gravemente o pai Urano e ocupa seu lugar.

Estando Cronos no poder, prendeu novamente os Ciclopes e os Hecatonquiros no Tártaro e esposou sua irmã Réia. Tendo recebido o aviso de que um de seus próprios filhos o destronaria, Cronos engole-os todos ao nascerem: Héstia, Deméter, Hera, Plutão e Posídon. Grávida, trazendo Zeus no ventre, Réia vai a Creta, onde consegue salvar seu novo filho.

Tornando-se Zeus adulto, faz Cronos beber uma poção que o força a vomitar os filhos engolidos, e, juntamente com eles, inicia a luta contra os Titãs, seus meio-irmãos. A luta entre Zeus os Titãs e foi travada entre dois montes: Zeus se estabeleceu no Monte Olimpo, e os Titãs no Monte Ótris.

Depois de dez anos indecisos, Géia promete a vitória a Zeus, com a condição de que libertasse os Ciclopes e os Hecatonquiros. Assim procede ele, e com a ajuda agradecida dos Ciclopes que lhe dão o raio, armam a Plutão com um capacete que o tornava invisível e a Posídon com um tridente – Zeus  vence os Titãs e atira-os ao Tártaro. Também colaboraram com Zeus os Hecatonquiros, que atiravam cada qual cem pedras ao mesmo tempo.

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O sertanejo é um titã "acobreado", "bronzeado", de "arcabouço titânico"; os vaqueiros, "titãs enrijados pelos climas duros". Por outro lado, os militares feridos também são "titãs resignados e estóicos"; o campeador Carlos Telles tem "envergadura titânica"; o herói Wanderley cai como "um titã fulminado":

Portanto, vendo como titãs os heróis de ambos os lados, Euclides nos leva a pensar que usa esta figura não apenas para caracterizar o aspecto audaz, belicoso e tenaz de sertanejos e militares, mas que tem em vista algo mais: a luta mítica que fez desaparecer os titãs autênticos, menos preparados para a luta.

De fato, a guerra de Canudos, antes de tudo foi fratricida como a dos titãs, pois sertanejos e exército são irmãos, filhos da mesma terra (como Zeus e os titãs); foi também o estúpido esmagamento dos mais fracos pelos mais fortes, na luta pelo poder (tal como Cronos envelheceu e foi cruelmente substituído por Júpiter, a Monarquia ficou velha e foi suplantada pela República, e tanto pior para quem está ou parece estar do lado mais fraco).

Zeus e seus aliados contavam com muito mais recursos bélicos do que os Titãs; de fato, os Hecatonquiros atiravam, juntos, 300 pedras de cada vez; sem esquecer os raios, o capacete e o tridente, fornecidos pelos Ciclopes. Os soldados da República estão muito mais bem armados do que os sertanejos, contando com comboios de monição e alimentos, canhões, metralhadoras e fuzis.

Mesmo em inferioridade de recursos, os Titãs resistem surpreendentemente por dez anos; a resistência dos sertanejos foi mais surpreendente ainda. “O sertanejo é, antes de tudo, um forte...”

Os Titãs, vencidos apesar da resistência incrível,  são atirados ao Tártaro; os sertanejos, lutando até caírem os quatro últimos defensores, são postos fora da História, não podem alcançar a civilização.

As batalhas a partir de montanhas (Olimpo e Ótris) aparecem também na luta sertaneja. Os jagunços se defendem encastelados nas montanhas, como o Cambaio; os soldados canhoneiam Canudos do alto da Favela.

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            Dois parágrafos conclusivos:

Esta estrutura mítica, subjacente a Os Sertões, não comparece no primeiro nível organizacional da obra, que repousa no tríptico positivista: Terra, Homem, Luta. Como explicação dos fatos, seria valorizar demais aspectos de culturas atrasadas. Mas Euclides não a descarta. Ela contribui poderosamente para a tragicidade da luta.

Escrevendo à distância, Euclides não consegue rever a paisagem de modo neutro, mas contaminada pelo sangue que ela recolheu. Contemplar o Cambaio, para ele, é ter presente a luta, como num memorial E, na perspectiva do desenlace trágico, esculpe nela um monumento à “loucura da nacionalidade”: a paisagem atormentada de um Brasil - não só físico mas sobretudo humano - disforme e disjungido, rachando e estalando, num desmoronamento secular e lento... Transfigurado, o Cambaio torna-se um memorial da luta.

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Passagens de Os Sertões em que Euclides se refere a Titãs:

Primeira vez: página 180, linhas 39 a 42: "...e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias."

Segunda vez: página 261, linhas 70 a 72: "Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, a vibratibilidade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço."

Terceira vez: página 281, linhas 261 a 263: "A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Anteu [gigante, filho de Netuno e da Terra. Hércules, lutando com ele, apercebeu-se de que Anteu recuperava forças cada vez que tocava no solo; ergueu-o então, estreitando-o nos braços, e conseguiu desta forma sufocá-lo.], indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos."

Quarta vez: página 291, linhas 153 a 155: "E aqueles titãs enrijados do pelos climas duros, estremeciam dentro das armaduras de couro considerando as armas portentosa da civilização."

Quinta vez: página 299, linha 1 a 6: "As massas do Cambaio amontoavam-se na frente, dispostas de modo caprichoso, fundamente recortadas de gargantas longas e circulantes como fossos, ou alteando-se em patamares sucessivos, lembrando desmedidas bermas de algum baluarte derruído, de titãs."

            Sexta vez: página 408, linha 49 a 51: "A campanha federalista do Sul dera-lhe invejável auréola. A sua figura de campeador - porte dominador e alto, envergadura titânica, olhar desassombrado e leal - culminara-lhe o episódio mais heróico, o cerco de Bajé."

            Sétima vez: a página 454, linhas 557 a 565: "Alferes e tenentes haviam, com desassombro incrível, malbaratado a vida em toda a linha. De alguns citavam-se, depois, os arrojados lances [...] Wanderley, que precipitando-se a galope pela encosta aspérrima da última colina, fora abatido ao mesmo tempo que o cavalo, no topo da escarpa, rolando por ela abaixo em queda prodigiosa, de titã fulminado."

            Oitava vez: página 458, linhas 695 a 702. "Toda a expedição iria despender três meses para a travessia de cem metros, que a separavam do abside da igreja nova. E no último dia de sua resistência inconcebível, como bem poucas idênticas na História, seus últimos defensores, três ou quatro anônimos, três ou quatro magros titãs famintos e andrajosos, iriam queimar os últimos cartuchos em cima de seis mil homens!"

Nona vez: página 471, linhas 385 a 387: "Abaladas pelo cataclismo da guerra, as camadas superficiais de uma nacionalidade cindiam-se, pondo à luz os seus elementos profundos naqueles titãs resignados e estóicos."

            Décima vez: página 527, linha 3: "Titãs contra moribundos. Em torno das cacimbas. Sobre os muradais da igreja nova." [Subtítulos do próprio Euclides]

Décima primeira vez: página 536, linhas 64 a 90: "Não transpôs couceira da tenda./ Era um animal. Não valia a pena interrogá-lo./ O general-de-brigada João da Silva Barbosa, da rede em que convalescia de ferimento recente, fez um gesto. Um cabo-de-esquadra, empregado na comissão de engenharia e famoso naquelas façanhas, adivinhou-lhe o intento. Achegou-se com o baraço. Diminuto na altura, entretanto, custou a enleá-lo ao pescoço do condenado. Este, porém, auxiliou-o tranqüilamente; desdeu o nó embaralhado; enfiou-o pelas próprias mãos, jugulando-se.../ Perto, um tenente do estado-maior de primeira classe e um quintanista de medicina, contemplavam aquela cena./ E viram transmudar-se o infeliz, apenas dados os primeiros passos para o suplício. Daquele arcabouço denegrido e repugnante, mal soerguido nas longas pernas murchas, despontaram, repentinamente, linhas admiráveis - terrivelmente esculturais - de uma plástica estupenda./ Um primor de estatuária modelado em lama./ Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude singularmente altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram dilatando o peito, alçada num gesto desafiador de sobranceria fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte. Seguiu impassível e firme; mudo, a face e imóvel, a musculatura gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impecável, feito uma estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria de Canudos. Era uma inversão de papéis. Uma antinomia vergonhosa..."

Décima segunda vez: página 545, linhas 224 a 230: "A igreja sinistra bojava, em relevo, sobre o casario em ruínas; e impávidos ante as balas que sobre ela convergiam, viam-se, no resplendor fugaz das fuzilarias, deslizando-lhes pelas paredes e entulhos, subindo-lhes pelas torres deslocadas ou caindo por elas abaixo, de borco, presos aos bloco disjungidos, como titãs fulminados, vistos de relance num coruscar de raios, aqueles rudes patrícios indomáveis..



Faço aqui um resumo da passagem que me serve de ponto de partida: os nove primeiros parágrafos do cap. III da Travessia do Cambaio, 2ª parte de A luta,  em Os Sertões de Euclides da Cunha. Está mais que na hora de se adotar um modo expedito e simples de citar esta obra...
Primeiro parágrafo do texto citado em 1.
Sigo basicamente a Enciclopédia Barsa para este rápido apanhado do mito. Sua base está em Hesíodo.
Os Titãs, como substantivo ou adjetivo (titânico), são referidos doze vezes em Os Sertões: uma vez em O homem e onze vezes em A luta (duas vezes em preliminares da luta, duas vezes em Travessia do Cambaio, quatro vezes na Quarta expedição, três vezes em Últimos dias). Como se vê, não se trata de referência localizada mas esparsa na obra. Oito vezes Euclides emprega titã ou titânico referindo-se aos sertanejos ou vaqueiros; três vezes a militares (uma vez ao coronel Carlos Teles, outra ao alferes Wanderley, outra genericamente) e uma vez aos Titãs do mito grego (“baluartes de titãs”). Vejam-se estas doze citações que organizei e coloquei logo após este artigo.

Citadas da Ed. Crítica feita por Walnice Nogueira Galvão, Brasiliense, 1985.

 
Manuel Roberto Fernandes da Silva ( Area III)
 
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