Quando a nossa existência individual se
prolonga, seguimos pela vida a acumular perdas de relações amigas que se vão.
Foi assim, agora, com este velho amigo, mestre e companheiro na mesma paixão
pela história do Sertão e a de Canudos em especial. Às 22h00 do dia 28 de maio,
em sua residência em Salvador, faleceu José
Calasans Brandão da Silva (1915-2001), com 86 anos incompletos e 55 anos de
“canudologia”: perdemos a memória viva da história de Canudos, de sua guerra,
de sua gente e de seu líder, de sua utopia sertaneja e cristã. Estudioso que
alimentou a chama sagrada da busca pela veracidade de uma história de oprimidos
tão vilipendiada pelos discursos sapientes e por uma historiografia
tradicionalista. Seu empenho decidido deu alento a inúmeras gerações de
pesquisadores que, felizmente, têm enriquecido os rumos que ele trilhou,
ampliou e iluminou.
Cineasta e pesquisador baiano, que
dirigiu Paixão e Guerra no Sertão de
Canudos e que mantém na Internet uma das páginas mais ricas de documentação
sobre Canudos, Antônio Olavo foi quem me deu a notícia por essa via. Curta nota
de solidariedade. No meu espanto, escrevi-lhe pedindo pormenores. No dia
seguinte, ele dizia que Calasans vinha mal há tempo, lembrava o derrame que
tivera há uns 8 ou 9 anos e as crises de depressão que o acompanharam desde
então, mal penoso quando vem na juventude e tanto mais duro ainda na vetusta
idade. (Sobre isso, recordo que de duas vezes em que ele se comprometeu a
participar como conferencista em seminários sobre Canudos, promovidos aqui na
Universidade Federal do Ceará, em 1993 e 1997, por ocasião dos centenários da
fundação e da destruição de Belo Monte, ele não compareceu por acometido dessas
crises). A família instalara uma UTI dentro de casa para cuidar dele a toda
hora. Na noite do dia 28, adormecera definitivamente.
No dia 31 de maio, foi lançado em Salvador um livro dedicado a Calasans, Os Intelectuais e Canudos, organizado
por Manoel Neto e Roberto Dantas, e que lhe foi entregue dois dias antes de sua
morte. Sua filha Madalena, psicóloga que mora no Rio, estava presente e
comentou: «foi a última grande emoção que ele teve em vida».
Imediatamente, enviei a notícia para vários colegas, dentre os quais
Eduardo Hoornaert, Ralph Della Cava e Idelette Muzart. Esta, professora da
Universidade de Paris X – Nanterre, coordena uma lista de discussão sobre
Brasil-França na Internet, espalhou a notícia aos quatro ventos e lembrou um
fato curioso que mostra bem o espírito brincalhão de mestre Calasans: em
janeiro de 1986, quando participávamos do Encontro de Laranjeiras – próxima de
Aracaju, esta cidade é promotora desse evento que congrega estudiosos da
cultura popular – cujo homenageado daquele ano era justamente o professor
Calasans. No discurso de abertura, o Prefeito da cidade dirigiu-se a ele com
expressões como «o grande setuagenário!», «o ilustre setuagenário», «o nosso
setuagenário», etc. Calasans, sentado na primeira fila do auditório, ao lado de
Idelette, comentou para ela em voz bem clara: «Se este homem ainda insistir em
me chamar de velho, eu vou xingar a mãe dele!». Por certo as risadas da
primeira fila encurtaram a oratória prefeitoral.
Participei desse Encontro, que durou 3 ou 4 dias. A manhã do sábado foi
livre. Calasans me convidou a acompanhá-lo numa caminhada pelo Mercado Central.
Ele era sergipano e nascera em Aracaju, no dia 14 de Julho, data nacional da
França, em que esta comemora sua Revolução. Mas Calasans, com seu temperamento
afetuoso e convivial, nada tinha de revolucionário, mas antes de missionário
das coisas de nossa história. A despeito do volume de trabalhos que publicara,
Calasans era sobretudo um homem de fala rica e sábia, arrimado em prodigiosa
memória. Recordo ainda de nossa longa conversação em que discutíamos sobre
vários temas em torno de Sílvio Romero, de sua polêmica com Teófilo Braga, etc.
Mas recordo, sobretudo, que Calasans em meio aos corredores do mercado, parava
a toda hora para trocar conversa animada com a gente do povo e, em várias
barracas, ia comprando uns martelinhos de madeira bem torneados – semelhantes a
esses que usa um Juiz – e em seguida os enfiava no enorme bolso de seu paletó.
Intrigado, indaguei-lhe sobre o significado daquilo. E ele de pronto explicou:
«Esses martelinhos só existem aqui em Aracaju. Nos sábados, reúno em minha
casa, em Salvador, a turma do Instituto Histórico para tomar cerveja e comer
caranguejo. Vou fazer esse regalo aos colegas!».
Era esse o homem que conheci, bom amigo e desprendido, que distribuía
generosamente seus conhecimentos com todos. E eu poderia narrar inúmeros fatos
pitorescos de manifestações semelhantes do seu gênio bem humorado. Mas prefiro
registrar que participavam também do Encontro dois outros velhos amigos que já
se foram: Cândido Procópio Ferreira de Camargo e Thales de Azevedo.
Todavia, conheci Calasans num outro grande evento, um debate memorável
para os estudiosos da história de nossos movimentos populares. Refiro-me à
Reunião da SBPC, em Recife, no ano de 1974, na mesa-redonda sobre Canudos e
temas correlatos, de que participaram vários amigos: José Calasans, Thales de
Azevedo, Duglas Teixeira Monteiro, Walnice Galvão e Ralph Della Cava. Destes
amigos e companheiros de jornada, só os dois últimos permanecem vivos,
pesquisando e publicando. Por coincidência, acaba de sair, em maio, um ensaio
de Walnice Nogueira Galvão, com dedicatória justamente a José Calasans: O Império do Belo Monte – vida e morte de
Canudos, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.
Do mesmo modo que Idelette Muzart, Eduardo Hoornaert me respondeu de
imediato com este comentário: «Lamento com você a morte do mestre Calasans. Eu
o chamo de ‘o Tucídides de Canudos’, pois como Tucídides superou Heródoto em
separar o rigorosamente histórico (baseado em depoimentos e ´história oral´ avant la lettre) do mítico e lendário,
Calasans começou a trabalhar Canudos além do ´mitológico´ de Euclydes da Cunha.
Isso até agora não está claro entre os estudiosos de Canudos e da história do
Brasil em geral.»
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*
Calasans fizera seu curso secundário no Ateneu Sergipense. Bacharel em
1937, pela Faculdade de Direito da Bahia, volta à sua cidade, ensina no Colégio
Estadual de Sergipe e torna-se catedrático da Escola Normal Rui Barbosa. Fixa,
a partir de 1947, residência definitiva em Salvador. Ensina na Universidade
Católica e na Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia. Pelo velho
regime, em 1951, faz concurso de Livre-Docência de História do Brasil nessa
Faculdade, onde defende a tese: O Ciclo
do Bom Jesus Conselheiro. Conquista depois, nessa mesma Faculdade, a
cátedra de História Moderna e Contemporânea mediante concurso em que é aprovado
na defesa da tese Os Vintistas e a
Regeneração Econômica de Portugal, em 1959. Chefiou por muito tempo o
Departamento de História dessa Faculdade, de que foi Diretor nos anos de 1974 e
1975; e, de 1980 a 1984, ocupou o cargo de Vice-Reitor da UFBA. Foi membro
atuante do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia de Letras da
Bahia, e dirigiu, até recentemente, o Museu Eugênio Teixeira Leal – Memorial do
Banco Econômico.
Como iniciara desde jovem suas pesquisas folclóricas e históricas sobre o
tema de sua predileção, ao casar pilheriou com o nome de sua mulher, Lúcia
Maciel, dizendo ao sogro: «Até que enfim
vou ter alguém na família com o sobrenome do Conselheiro.» Em perfeita
harmonia com esse espírito brincalhão, Calasans era um pesquisador sério e
inovador. Com efeito, bem antes de se tornar um procedimento sistemático da
historiografia moderna, ele superou a versão oficial e tradicional sobre
Canudos, não só vasculhando ampla documentação nos arquivos da Bahia, Sergipe,
Pernambuco e Ceará, bem como nas trilhas e povoados dos sertões que percorreu
longamente, mas sobretudo reconstituindo a sua história oral, colhida de remanescentes e combatentes do Arraial do
Belo Monte. Dava maior valor a esses testemunhos vivos e zombava de dados
pretensamente rigorosos: «Estatísticas de guerra – dizia ele – são iguais a
estatísticas de comício.» Eu próprio troçava com ele, dizendo que na confraria
dos estudiosos de Canudos: da Bahia para o Sul, eles são euclydianos; da Bahia
para o Norte, somos conselheiristas. E ele sempre sublinhava que Euclydes da
Cunha, em sua obra-prima, trancara Canudos numa gaiola de ouro.
Calasans era um investigador infatigável. E foi divulgando os resultados
de seu labor em artigos e ensaios, que espalhou por inúmeros periódicos no
Brasil e no exterior. Desde os anos 50, saiam seus primeiros livros e opúsculos
sobre essa temática: em 1950, o mencionado O
Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro – contribuição ao estudo da Campanha
de Canudos (Salvador: Tipografia Beneditina); em 1952, A Guerra de Canudos na Poesia Popular (Salvador: Centro de Estudos
Baianos) – sobre o assunto, ele dará depois um estudo mais amplo, Canudos na Literatura de Cordel (São
Paulo: Ática, 1984); em 1957, saiu Euclydes
da Cunha e Siqueira Menezes (Aracaju: Movimento Cultural de Sergipe);
enfim, em 1959, enfeixando alguns dos ensaios anteriores e contendo outros
novos, como o curioso estudo «As Mulheres de Os Sertões», publicou o livro No
Tempo de Antônio Conselheiro – figuras e fatos da Campanha de Canudos
(Publicações da Universidade da Bahia). Nesta obra, apresenta de forma
sistemática a primeira bibliografia comentada dos estudos sobre Canudos e dá,
em germe, um «vocabulário de Canudos», que constituiria mais tarde seu grande
livro de pesquisador do tema, o Dicionário
de Canudos, com mais de 600 verbetes, cuja publicação prometera para 1997,
centenário da destruição de Belo Monte, mas que deixou inédito.
Além de outros trabalhos seus, tais como o precioso Quase Biografias de Jagunços – o séqüito de Antônio Conselheiro
(Centro de Estudos Baianos da UFBA, 1986) ou o seu livro Cartografia de Canudos (Salvador, Conselho Estadual de Cultura,
1997) em que compedia vários artigos e ensaios, ou ainda merece mencionado seu
bom ensaio «Canudos não-Euclidiano: fase anterior ao início da Guerra do
Conselheiro», publicado no livro organizado por José Augusto Vaz Sampaio Neto e
colaboradores, que constitui a bibliografia mais completa sobre a temática, Canudos – Subsídios para a sua reavaliação
história (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986), além desses
trabalhos, repito, Calasans batalhou também pela reedição de algumas obras
raras sobre o tema, livros que ele prefaciou, como por exemplo: Odorico
Tavares, Canudos, Cinqüenta Anos Depois –
1947 (Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 1993); e Alvim Martins
Horcades, Descrição de Uma Viagem a
Canudos (Salvador; EdUFBA, 1996).
Com o imenso saber que acumulara sobre o assunto, tornou-se uma
referência internacional e obrigatória de todos quantos se debruçam sobre a
matéria. Amigo fiel, jamais negou ajuda sempre que dele precisei para alguma
informação ou o mais freqüentemente para obter cópia de algum documento.
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Em 1983, doou à Biblioteca Central da UFBA tudo quanto, nos seus anos de
estudo e pesquisa, garimpou de documentação sobre Canudos, sobre Antônio
Vicente Mendes Maciel – o Conselheiro, e até sobre Euclydes da Cunha: livros,
revistas, jornais da época, documentos particulares como cartas e bilhetes
escritos durante o conflito, depoimentos de sobrevivente e seus descendentes,
etc.. Um acervo de 4 mil volumes com que funda assim o Núcleo do Sertão, que se acha hoje localizado no Centro de Estudos
Baianos, e onde há coisas preciosas e raras como o manuscrito encadernado das
anotações evangélicas e sermões do Conselheiro, que tive a alegria e a emoção
de examinar aí.
Mas uma das maiores contribuições de Calasans foi sem dúvida ter
recomposto pacientemente e dignificado, com seu trabalho de pesquisador, a
imagem e o valor de Antônio Vicente Mendes Maciel, esse seguidor do Padre
Ibiapina, imagem e valor degradados pelas elites brasileiras: políticos,
Igreja, a tradição letrada e o Exército nacional. Calasans confirma em
pormenor, com sua obra, a denúncia que Euclydes pôs na Nota Preliminar com que
abre seu Os Sertões:
«Aquela
campanha [contra Canudos]... foi, na significação integral da palavra, um
crime.»
Idéia semelhante
àquela que vem expressa nos versos candentes do belo Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles:
«Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem não presta, fica vivo:
quem é bom, mandam matar.»
Fortaleza, 21 de junho
de 2001.
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*Professor Titular da UFC e da UECE, membro do
Instituto Histórico do Ceará e da Academia Cearense de Letras. ediatahy@ibeuce.com.br
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