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Euclides e o berço de Os Sertões
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“A TERRA” – PRIMEIRA PARTE DO LIVRO “OS SERTÕES” – A GEOGRAFIA E
2003-05-15 09:00:22

 

“A TERRA” – PRIMEIRA PARTE DO LIVRO“OS SERTÕES” – A GEOGRAFIA EXPLÍCITA DE EUCLIDES DA CUNHA

Prof. Dr. Fadel David Antonio Filho

               IGCE- UNESP - Campus de Rio Claro - SP

 

 

A primeiraparte de ´Os Sertões´, considerada por muitos como a mais insípida,mas que para o geógrafo é muito estimulante - é de caráter eminentementegeográfico, mais precisamente de geografia física - é também a menor das trêspartes que compõe a obra “Os Sertões” (na edição analisada compunha-sede apenas 44 páginas).

Euclides daCunha inicia sua descrição da terra brasileira dando um amplo panorama dosaspectos geográficos e geológicos do Brasil. Descreve as formações orológicase geológicas a partir das grandes linhas mestras do relevo brasileiro, comdetalhes, salientando os aspectos mais importantes, como a Serra do Mar, daMantiqueira, o Planalto Ocidental Paulista, o Planalto Central. E sua descriçãovai se deslocando para o sertão da Bahia, quando então começa a estabeleceras particularidades do relevo e da geologia da área sertaneja, em especial aregião de Monte Santo e o sertão de Canudos - que destaca num subtítulochamando-o de ´Terra Ignota´ - abrangendo e balizando seuspontos limites, que corresponde a partir de Monte Santo, ao sul, até as margensdo São Francisco, ao norte.

Nestetrecho, podemos medir a percepção do autor, ao narrar a sensação sentidapelo viajante dessas paragens, o que comprovamos in loco. Escreve Euclides(p.19):

 

´(...)o viajante mais rápido tem a sensação da imobilidade. Patenteiam-se-lhe,uniformes, os mesmos quadros, num horizonte invariável que se afasta à medidaque ele avança.´

 

A descriçãoda paisagem de Monte Santo e o deslocamento das observações para o vale doVaza-Barris até atingir o sítio de Canudos, é detalhada. Neste trecho danarrativa, Euclides traça em poucas linhas a sua opinião sobre a gênese dosertão nordestino, em particular a área determinada no interior baiano,relacionando-a com a teoria do mar interior, de formação cretácea. Cita váriosestudiosos que alimentam essa hipótese, como Hartt e Agassiz. Cita também comoelementos corroboradores, os estudos que relacionam os depósitos sedimentares eos fósseis, bem como o soerguimento andino. Esboça assim um vasto panoramasobre a gênese do sertão.

Em seguida,abre um subtítulo para o clima, onde descreve detalhadamente as característicascomo a temperatura, a circulação do ar, a umidade, etc. Neste trecho,apresenta observações interessantes sobre a baixíssima umidade reinante - oque destaca chamando de ´higrômetros singulares ou bizarros´,o processo de mumificação dos corpos mortos (soldados, sertanejos e cavalos),ali encontrados.

No subtítulosobre as secas, Euclides chega a detalhar estatísticamente os anos anterioresmais significativos do fenômeno e tece uma série de hipóteses para explicá-lo.Aqui registramos também o fato de Euclides da Cunha, numa das hipóteses traçadas,esboçar a idéia da existência de uma área de baixa pressão atmosférica oucentro ciclonal no Chaco (não explicitada, mas aludida), bem no centro da Américado Sul, o que comprova seu alto grau de conhecimento para a época, na medida emque, o estudo da dinâmica do ar na América do Sul e em especial as células depressões, só tornaram-se  melhorconhecidos após a Primeira Guerra Mundial (1914-1917).

A hipótesesobre a formação dos chamados ´aguaceiros´, tempestades repentinasque ocorrem em pleno estio, tem uma descrição detalhada.

Com relaçãoà vegetação, Euclides começa por descrever a caatinga, onde personifica oselementos vegetais, dando-lhes sentimentos humanos.

Em razãodisso, Euclides extravasa seu Positivismo (expresso nas concepções dodarwinismo social) para a vida vegetal do sertão, e destacamos um trecho ondeisso é evidente, quando compara-a com a floresta. Diz ele (p.37):

 

´Aluta pela vida que nas florestas se traduz como uma tendência irreprimívelpara a luz, desatando-se os arbustos em cipós, elásticos, distensos, fugindoao afogado das sombras e alteando-se presos mais aos raios do sol do que aostroncos seculares - ali, de todo oposta, é mais obscura, é mais original, émais comovedora.O sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater.´

 

E maisadiante, conclui seu pensamento dizendo que (p.37):

 

´(...)as plantas mais robustas trazem no seu aspecto anormalíssimo, impressos, todosos estigmas dessa batalha surda.´

 

A idéia do conflito é aquitransposta ao longo da narrativa, e entremeia-se com as concepções daadaptabilidade e da luta. Ao falar das espécies vegetais da caatinga, quedenomina de ´plantas sociais´, que não constam dos estudos deHumboldt, Euclides da Cunha escreve que ali elas se associam para fazer frenteao meio (p.38):

 

´Evivem. Vivem é o termo - porque há, no fato, um traço superior à passividadeda evolução vegetativa...´

 

As mais importantes espéciesvegetais do sertão recebem tratamento especial: o juazeiro, o mandacaru (Cereusjaramacaru), o xique-xique (Cactus peruvianus), o umbuzeiro (a árvore ´sagrada´do sertão) e a jurema. Euclides da Cunha pormenoriza a descrição de cada uma.Completa esse quadro com a descrição do que chama de ´ressurreiçãoda flora´ - em pleno estio, um ´aguaceiro benfazejo´traz a vida àquela vegetação ressequida e em latência. Quando isso ocorre,juntamente com a flora ressurge a fauna resistente. Euclides da Cunha diz então,que (p.43):

 

´Eo sertão é um paraiso...´

 

Descreve aseguir o que chama de ´deslumbramento das manhãs sertanejas´.

Euclidesprocura encontrar uma categoria biogeográfica onde situar a caatinga, com basena idéia de que as sociedades podem ser explicadas pelo tipo de paisagem geográficae clima em que vivem. Sua visão determinista leva-o a abrir um subtítulo paratal finalidade: ´Uma categoria geográfica que Hegel não citou´- onde diz (p.45):

 

´Hegeldelineou três categorias geográficas como elementos fundamentais colaborandocom outros no reagir sobre o homem, criando diferenciações étnicas:

´Asestepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis,profusamente irrigados; os litorais e as ilhas.

.................................................

´Aos sertões do norte, porém, (...),  falta  um lugar no quadro do pensador germânico.´

 

Compreende que em razão daspeculiaridades próprias, o sertão (aqui enfatizado a paisagem biogeográfica),não se enquadra em nenhuma categoria hegeliana. Sobre isso escreve Euclides daCunha (p.46) que quando há chuvas, tudo muda:

 

´E osertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.

´Depoistudo isso se acaba. Voltam os dias torturantes, a atmosfera asfixiadora; oempedramento do solo; a nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios seligam sem a intermitência das chuvas - o espasmo assombrador da seca.

´Anatureza compraz-se em um jogo de antíteses.´

 

Neste subtítulo, na mesma página(p.46), Euclides da Cunha faz uma citação que acreditamos incorreta ou no mínimoexagerada, ao dizer:

 

´Anatureza não cria normalmente os desertos. Combate-os, repulsa-os.´

 

Atravésdesse enfoque, procura explicar a gênese do Saara, com base nas hipótesesaventadas por Humboldt. Convém lembrar entretanto que existem desertos cuja gênesenão pode ser atribuida à ação antrópica.

Neste trechoda narrativa, surgem observações interessantes como, por exemplo, sobre o equadortérmico, onde Euclides procura explicar as torções da ampla faixa dealtas temperaturas na Terra e as respectivas paisagens naturais, indo ´daextrema aridez à exuberância extrema...´ (p.47).

Em seguida, encontramos um parágrafoque se encaixa na visão da analogia orgânica na Geografia, na concepção daTerra como um organismo vivo. Diz ele (p.47):

 

´Éque a morfologia da terra viola as leis gerais dos climas. Mas todas as vezesque o fácies geográfico não as combate de todo, a natureza reage. Em lutasurda, sujos efeitos fogem ao próprio raio dos ciclos históricos, masemocionante, para quem consegue lobrigá-la ao través de séculos sem conta,entorpecida sempre pelos agentes adversos, mas tenaz, incoercível, num evolverseguro, a terra, como um organismo, se transmuda por intuscepção, indiferenteaos elementos que lhe tumultuam à face.´

 

Apresenta também uma postura demoderno ecologista crítico ao dizer (p.48):

 

´Esquecemo-nos,todavia, de um agente geológico notável - o homem.

´Este,de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente,assumiu, em todo o decorrer da história, o papel de um terrível fazedor dedesertos.´

 

Neste trecho do livro, Euclides daCunha descreve e critica o uso de técnicas degradadoras, como o fogo usadopelos índios, pelos primeiros colonizadores e pelos bandeirantes. Com relaçãoa esse último personagem, descreve ainda os métodos de extração do ouro a céuaberto e seus efeitos na paisagem natural, degradando-a.

Apesar de crítico com relação àação antrópica, transparece em momentos um otimismo possibilista, como porexemplo, quando diz (p.50):

 

´É queo mal é antigo. Colaborando com os elementos meteorológicos, com o nordeste,com a sucção dos estratos, com as canículas, com a erosão eólica, com astempestades subitâneas - o homem fez-se uma componente nefasta entre as forçasdaquele clima demolidor. Se não o criou, transmudou-o, agravando-o. Deu umauxiliar à degradação das tormentas, o machado do caatingueiro; um supletivoà insolação, a queimada.

´Fez,talvez, o deserto. Mas pode extingui-lo ainda, corrigindo o passado. E a tarefanão é insuperável. Di-lo uma comparação histórica.´

 

Mas, ao fazer um retrospecto histórico,dando como exemplo as orlas do Saara tunisiano, relembrando o trabalho feitopelos romanos na contenção do deserto, vem à tona sua postura darwinistasocial. Diz Euclides que os (p.50):

 

´Velhos muradais derruídos, embrechados de silhares e blocos rolados, cobertosem parte pelos detritos de enxurros de vinte séculos, aqueles legados dosgrandes colonizadores delatam a um tempo a sua atividade inteligente e odesleixo bárbaro dos árabes que os substituiram.´

 

Procuraenfim, justificar a excelência da açudagem em grande número, como meio demelhorar o clima e a terra seca.

Sob esse prisma, elogia a ação ´civilizadora´dos franceses ao copiarem em grande parte os métodos romanos na Tunísia.Justifica assim, a expansão imperialista dos europeus, pelos seus aspectosexternos - ou seja - realizações materiais. E finaliza dizendo (p.51):

 

´AFrança salva os restos da opulenta herança da civilização romana, depoisdesse declínio de séculos.´

 

Entendemos que esse enfoque dadopor Euclides da Cunha apresenta uma noção equivalente ao darwinismo social: asupremacia do europeu sobre os povos colonizados.

Neste trecho ainda, tece severas críticasaos vários projetos surgidos ou sugeridos na época para combater a seca doNordeste brasileiro. Acredita que a construção de pequenos, mas numerosos açudesuniformemente distribuídos, teria a influência moderadora de um mar interior eseria fundamental para debelar a seca.

Dessa forma, o primeiro livro de“Os Sertões” apresenta um riquíssimo e explícito conhecimento geográficode Euclides da Cunha, bem como expressa seus valores ideológicos de visão domundo.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

CUNHA, E. da – OsSertões. São Paulo, Abril Cultural, 1982

ANTONIO FILHO, F.D. – OPensamento Geográfico de Euclides da Cunha: Uma Avaliação, Rio Claro,UNESP – IGCE, 1990. (Dissertação de Mestrado).

 
Prof. Dr. Fadel David Antonio Filho
 
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