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Euclides e o berço de Os Sertões
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A HISTÓRIA NÃO IRIA ATÉ ALI:
2003-07-22 09:03:58

 

Teoria da historiografia e literatura em Os Sertões

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Para Amadeu de Araújo Moreira, in memoriam.

 As considerações, expostas ao longo do presente trabalho, resultam de uma pesquisa por nós desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História da UNICAMP, em nível de doutoramento, a qual objetiva discutir algumas das relações existentes entre o romance Quatrevingt-treize [Noventa e Três] (1874), de Victor Hugo (1802-1885), e Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha (1865-1909). Assim, essa comunicação busca problematizar determinadas questões referentes às sinuosas fronteiras entre a escrita da história e a literatura no corpo de Os Sertões, mediante o suporte teórico de três autores: Victor Hugo, Karl Marx (1818-1883) e Benedetto Croce (1866-1952).

O texto aqui apresentado compõe-se de três segmentos principais. Inicialmente, coloca-se em relevo os influxos do Quatrevingt-treize para as percepções iniciais de Euclides da Cunha (1866-1909) acerca do fenômeno de Canudos (1893-1897) e mesmo para a construção da narrativa de Os Sertões. Em seguida, destacam-se as reflexões de Marx sobre os usos sociais do passado por parte dos homens do tempo presente, sugeridas pela leitura do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (1852). Finalmente, vincula-se a persistência de Os Sertões como um clássico da literatura brasileira e a relevância de Canudos na memória histórica nacional com um cânone da teoria da historiografia de Croce: o princípio segundo o qual toda verdadeira história é história contemporânea.

Nos limites dessa comunicação, uma questão a ser preliminarmente explorada diz respeito à ontologia discursiva de Os Sertões1, ou seja, se o mesmo é livro de ciência ou arte, se é discurso da realidade ou narrativa ficcional, ou, em última instância, uma construção híbrida, pertencente a diversos gêneros literários. Esse problema foi continuamente revisitado pelos exegetas da obra euclidiana, desde os primeiros ensaios de José Veríssimo e Araripe Júnior até os trabalhos de estudiosos contemporâneos, tais como Walnice Nogueira Galvão, Luiz Costa Lima, Leopoldo Bernucci, dentre muitos outros. Sob qualquer ponto de vista, salta aos olhos do leitor o caráter polifônico do texto euclidiano, marcado por uma impressionante heteroglossia, ou seja, uma profusão de “vozes variadas e opostas.”2 Assim, como assinalou Roberto Ventura, “Os Sertões é uma obra que transita entre a literatura, a história e a ciência, ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica da natureza. Euclides recorreu a formas de ficção – como a tragédia e a epopéia – para compreender o horror da guerra e inserir os fatos num enredo capaz de ultrapassar sua significação particular.”3

É precisamente no contexto dos vínculos estabelecidos entre a história, a literatura e a ciência, no corpus documental de Os Sertões, que passamos a discutir os influxos de Victor Hugo sobre a escritura euclidiana. Nessa perspectiva, destacar a presença do autor de Notre Dame de Paris na literatura brasileira do século XIX é um lugar comum. No Brasil, o romancista francês foi idolatrado por várias gerações de poetas e escritores, a exemplo de Gonçalves Dias, Castro Alves, Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Raimundo Correia e, inclusive, Euclides da Cunha. Dentre os mais de cem brasileiros que o traduziram, aparecem os nomes do imperador Pedro II e de Machado de Assis.4 A respeito desse ponto, cabe-nos destacar diversos estudiosos contemporâneos, como Adelino Brandão, Leopoldo Bernucci, Edgar De Decca, Francisco Foot Hardman, Roberto Ventura e Berthold Zilly, que têm enfatizado as marcas hugoanas no estilo do autor de Os Sertões. Não obstante, certa tradição interpretativa não se deteve exaustivamente nessa questão. Como ponderou Foot Hardman, os críticos têm ressaltado muito o papel desempenhado pela ideologia do progresso. Engenheiro e militar, era previsível que o pensamento de Euclides fosse perpassado por idéias relacionadas aos grandes movimentos político-culturais da sua época: positivismo, evolucionismo, materialismo, socialismo reformista, republicanismo. Entretanto, na sua obra, aparece uma outra polaridade que a marca profundamente: “trata-se de um romantismo de base hugoana, que provoca em sua prosa e poesia uma interessante combinação estética de sublime, dramatização da natureza e da história e discurso socialmente empenhado.”5

As inferências ao escritor francês espalham-se desde os poemas juvenis, passando por artigos de jornais, até os trabalhos maduros do nosso autor. Euclides tomou para si dois traços expressivos do pensamento de Victor Hugo: o sentimento da pátria e o consórcio final da Arte com a Filosofia. Não obstante, a imagem, por excelência, do conjunto da obra hugoana, que se cristalizou em Euclides da Cunha, foi aquela relacionada à Vendéia (1793-1796), ou seja, o levante monarquista e clerical ocorrido no oeste da França e narrado no Quatrevingt-treize, que associou nobres e camponeses da Bretanha em oposição à República francesa e aos seus aliados locais. As alusões à Vendéia surgem, repetidas vezes, nos seus escritos, precedendo os acontecimentos dramáticos de Canudos.

A primeira referência explícita à contra-revolução francesa apareceu numa crônica, publicada em O Estado de São Paulo, datada de 6 de abril de 1892. Nesse texto, Euclides estabeleceu um paralelo entre as rebeliões militares, que atormentavam o governo Floriano Peixoto, e a revolta bretã, ao pontuar que a república brasileira também possuía sua Vendéia perigosa – muito embora os rebeldes nacionais não se equiparassem aos “heróicos vendeianos”. Defensor da consolidação da nova ordem, encerrava o artigo profeticamente: “A República vencê-los-á como a grande revolução à Vendéia, com uma diferença fundamental porém – a glória do republicano francês foi verdadeiramente brilhante, graças à grandeza dos vencidos.”6 Portanto, mesmo antes da produção do “seminal ensaio” sobre o movimento sertanejo, a idéia da insurreição contra a Revolução Francesa, vista como correlato do fenômeno de Canudos, começa a germinar. Assim, “a matriz já estava construída em 1892 para moldar os textos vindouros.”7

As sugestivas imagens vendeianas retornaram ao centro das preocupações de Euclides em março de 1897, no rastro da derrota da expedição Moreira César. Abalado pelos acontecimentos, o autor redigiu dois artigos, publicados nas edições de 14 de março e 17 de julho de O Estado de São Paulo, emblematicamente denominados A Nossa Vendéia. Após entabular considerações sobre o relevo, o clima, a vegetação e os tipos humanos dos sertões baianos, encerrava o primeiro artigo explicando a simetria existente entre os acontecimentos de Canudos e os da Vendéia: “O homem e o solo justificam assim de algum modo, sob um ponto de vista geral, a aproximação histórica expressa no título deste artigo. Como na Vendéia o fanatismo religioso que domina suas almas ingênuas e simples é habilmente aproveitado pelos propagandistas do império. [...] A mesma coragem bárbara e singular e o mesmo terreno impraticável aliam-se completamente.” Os próprios revezes das primeiras expedições encontravam explicação no paralelo traçado pelo autor entre as duas séries de eventos: “A Revolução Francesa que se aparelhava para lutar com a Europa, quase sentiu-se impotente para combater os adversários impalpáveis da Vendéia – heróis intangíveis que se escoando céleres através das charnecas prendiam as forças republicanas em inextricável rede de ciladas...” Não obstante, o epílogo dessa história brasileira seria, fatalmente, favorável aos republicanos: “Este paralelo será, porém, levado às últimas conseqüências. A República sairá triunfante desta última prova.”8

Essa sobreposição entre a história da Revolução Francesa e os eventos que marcaram os primórdios da República brasileira encontrava sólido apoio no imaginário das camadas letradas da época. Conforme ajuizou Roberto Ventura, para Euclides e seus contemporâneos, a identificação com o mito revolucionário francês integrava um fenômeno religioso e político (Canudos), que deixou perplexas as populações litorâneas e as elites urbanas, a um horizonte prévio de expectativas, possibilitando enquadrar o movimento como “monarquista” e “restaurador”. Assegurava-se, pela crença na repetição da história, uma resolução do conflito a favor da República. A metáfora da Vendéia incorporou Canudos a uma história vivida no imaginário pelos republicanos brasileiros, expurgando as dúvidas e as incertezas quanto ao futuro da nação. Portanto “a história da Revolução Francesa apresenta no Brasil de fins do século XIX um efeito mítico-ideológico enquanto estrutura fechada de perguntas e respostas, que assimila acontecimentos adversos a um horizonte em que as perguntas e as respostas já estão dadas.”9

As correlações estabelecidas por Euclides entre o processo revolucionário francês e o contexto brasileiro, do final do século XIX, coloca-nos, de pronto, uma questão: a partir de quais referências historiográficas, literárias e/ou sociológicas foram construídas tais ilações? Sabemos que a temática da contra-revolução foi objeto de romances, a exemplo de Le Dernier Chouan [O Último Chouan] (1829), escrito por Honoré de Balzac (1799-1850). Por outro lado, Jules Michelet (1798-1874), em sua Histoire de la Révolution française [História da Revolução Francesa] (1847-1853), uma provável leitura do nosso autor, narrou episódios na Vendéia. Ademais, especialmente em 1889, ano do centenário da Revolução Francesa e da Proclamação da República, os letrados brasileiros tiveram, à sua disposição, além da bibliografia existente sobre o tema, a publicação, em jornais como a Gazeta de Notícias e A Província de São Paulo, das narrativas de Taine, Aulard e Michelet sobre a derrubada do Ancien Régime10. Contudo, os indícios presentes no conjunto dos textos euclidianos levam-nos a sugerir que a obra, da qual ele filtrou a metáfora da Vendéia, foi o Quatrevingt-treize. Conforme argumentaremos, a leitura do trabalho hugoano possibilitou a Euclides a construção de um modelo narrativo, que aproximou os eventos de Canudos aos da Vendéia – colocando em movimento uma primeira série de imagens, a qual condicionou sua recepção inicial do fenômeno sertanejo.

 Segundo Leopoldo Bernucci, Victor Hugo proporcionou a Euclides uma entrada mais iluminadora ao fenômeno da Vendéia. Assim, colocando de lado a perspectiva historiográfica de Michelet, descartando a ironia de Tocqueville e mesmo ignorando as lições de Carlyle, nosso escritor recorreu à terceira parte do Quatrevingt-treize. Para Euclides, “ler esta versão histórico-literária da Revolução Francesa importava em encontrar um diapasão que o colocasse entre a nota da história, como comprovante da veracidade dos fatos e a nota da ficção que, suprindo os vazios daquela, acrescentava-lhe [...] ‘os sonhos dos homens’.”11

Ao viajar para a Bahia, em agosto de 1897, o então correspondente de guerra de O Estado de São Paulo levava  consigo o projeto literário de uma história acerca do conflito de Canudos, provisoriamente batizado A Nossa Vendéia. Entretanto, o contato com os horrores da guerra fez com que Euclides experimentasse um “choque realidade”, uma “reviravolta de opinião”, percebendo, enfim, que Canudos, não era a nossa Vendéia. Não obstante a constatação, in situ, de quão frágil e inverossímil se apresentava a metáfora aludida, essa imagem permaneceu ativa em suas referências. Na verdade, no corpo de Os Sertões, predomina uma segunda série de imagens, na qual Euclides descartou a tese do complô restaurador, criticou a farsa da Vendéia nacional, condenou o massacre da população do arraial e abordou Canudos como uma questão brasileira. Entretanto, os signos e os símiles da chouannerie – tal qual os guerrilheiros do Belo Monte – ressurgiam, teimosamente, por entre as fendas do texto: “Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendéia. O chouan e as charnecas emparelham-se bem como o jagunço e as caatingas. O mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração política; as mesmas ousadias servidas pelas mesmas astúcias, e a mesma natureza adversa, permitiram que se lembrasse aquele recanto lendário da Bretanha [...]”12

Em Os Sertões, as correlações estabelecidas entre a Vendéia e Canudos são fortes e tentadoramente persuasivas, mas, também, são esporádicas, passageiras e, sobretudo, contraditórias. A imagem vendeiana estava marcada por uma oscilação, que denotava a incerteza ou a dúvida do autor no tocante à sua aplicação ao caso de brasileiro, ora mostrava a semelhança (símile), ora mostrava a identidade (metáfora). “Se Canudos não é a Vendéia em sua forma completa, ao menos se parecerá com ela.”13 De qualquer modo, a idéia da insurreição contra a Revolução Francesa, vista como análoga ao movimento sertanejo, é um dos sustentáculos da escrita euclidiana da história.

As pistas, até então evidenciadas, sugerem uma relação de simetria entre o Quatrevingt-treize e Os Sertões ou, ainda, entre os seus referentes históricos – a Vendéia e a Guerra de Canudos. Embora nem Hugo nem o seu romance sejam citados diretamente na obra euclidiana, no interior dessa existem sinais que tornam plausível a hipótese aqui esboçada. Assim, Euclides não apenas estabeleceu uma aproximação histórica sugestiva entre os eventos que se processaram na Bretanha, no final do século XVIII, e no interior da Bahia, no crepúsculo do século XIX, como também se apropriou e transfigurou elementos do Quatrevingt-treize para construir a trama de Os Sertões. Por exemplo, há uma notável semelhança entre os títulos de capítulos que integram a terceira parte do romance hugoano, intitulado En Vendée [“Na Vendéia”], qual sejam, Les forêts [“As florestas”], Les hommes [“Os homens”] e Leur vie en guerre [“A sua vida na guerra”]14  e os blocos nos quais está segmentado Os Sertões – “A terra”, “O homem” e “A luta”. Um rápido exercício de leitura possibilita interessantes correspondências entre os estilos, os adjetivos aplicados às principais personagens e o jogo de antíteses característicos de ambos os escritores.

O exemplo mais evidente das analogias entre os textos supracitados aparece no paralelo, traçado por nosso autor, entre o canudense Joaquim Macambira e a personagem do Imanus. Em Os Sertões, Macambira foi caracterizado como “espécie grosseira de Imanus acobreado e bronco” ou como “espécie de Imanus decrépito.”15 Aqui, vale ressaltar que o Imanus, símile aplicado a Macambira, é uma das personagens centrais do romance hugoano, ou seja, Gouge-le-Bruant, o ardiloso Mata-Azuis, o inimigo, por excelência, dos exércitos republicanos. Aprisionado nos fios da trama do Quatrevingt-treize, Euclides, ao narrar os dias finais da Luta, cunha apelidos, no mínimo, improváveis, para os novos líderes guerrilheiros: Pedro, o Invisível, José Gamo e Caco de Ouro. Assim, com a ambigüidade que marcou a aplicação da metáfora da Vendéia ao contexto brasileiro, o escritor caboclo ora associa, ora dissocia os jagunços dos chouans.

Ambos os trabalhos destacam a cumplicidade entre os guerrilheiros e a natureza. Nas charnecas ou nas caatingas, os exércitos republicanos enfrentavam inimigos invisíveis em conluio com as forças vivas da natureza. Nas páginas do Quatrevingt-treize, fica patente que a Vendéia teve, como auxiliar a floresta. Para Hugo, o aldeão da Bretanha tinha dois pontos de apoio: o campo, que o alimentava, e o bosque, que o ocultava. Na Vendéia, a alma da terra encarnava-se no homem.16 Por sua vez, Euclides destacou as especificidades relacionadas a uma guerra no sertão, na qual toda a natureza protegia os rebeldes: “[...] as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem”. A mesma simbiose entre a natureza e o combatente nativo, presente na Bretanha, poderia ser vislumbrada nas cercanias de Canudos: “E o jagunço faz-se guerrilheiro-tugue, intangível... As caatingas não o escondem apenas, amparam-no [...] A força militar decai a um plano inferior. Batem-no a terra e o homem”.17 Assim, a ênfase sobre os vínculos entre o homem e a terra, um dos tópos do Romantismo, expressa mais uma das identidades entre Euclides da Cunha e Victor Hugo.

No segundo momento dessa comunicação, destacamos a crítica euclidiana à tese da “nossa Vendéia”, ou seja, ao princípio de repetição da história da Revolução Francesa em solo brasileiro. Conforme sublinhamos anteriormente, nas páginas de Os Sertões,  em que pesem todas as suas oscilações, o autor se empenhou em denunciar como a farsa da Vendéia brasileira resultou em uma tragédia, num “crime da nacionalidade”, no massacre perpetrado contra a comunidade de Belo Monte. As considerações supracitadas possibilita-nos aproximar Os Sertões de uma outra obra, igualmente universal: O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Nesse caso, não argumentaremos sobre uma pretensa herança marxiana em Euclides da Cunha, como procedemos em relação a Victor Hugo. Sobre o livro de Marx, buscaremos estabelecer pontos de contato entre o seu enredo e o da nossa “Bíblia da nacionalidade”.

Como se sabe, O Dezoito Brumário resultou da reunião de artigos jornalísticos, nos quais Marx analisou a situação política francesa entre 1848 e 1851. Para o filósofo alemão, o período em questão não passou de uma grosseira paródia da Revolução de 1789, a ponto de abrir caminho para a ascensão ao poder de uma personagem medíocre: Luís Bonaparte. Para Marx, enquanto a Revolução de 1789 moveu-se num continuum ascendente, a de 1848 seguiu uma linha descendente. O resultado final desse processo foi uma “paródia de restauração do Império”. Assim, um dos elementos fundamentais da obra em questão aparece nas relações tecidas entre o presente e o passado, ou melhor, nas reflexões sobre os usos sociais do passado por parte dos atores do presente, conforme discutiremos.

Marx parte de uma observação hegeliana, segundo o qual todos os fatos e as personagens de grande importância da história universal ocorrem, por assim dizer, duas vezes. Entretanto, Hegel “esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”18 Assim, mesmo reconhecendo que os homens fazem a sua própria história, Marx sublinha que eles não a fazem como querem, sob as circunstâncias de sua escolha, mas, sim, sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhadas em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerras e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada.”19

 Precisamente nesse ponto se enquadra a tese da “Vendéia sertaneja”, propagandeada pelos jacobinos brasileiros e por amplos segmentos da imprensa nacional, inclusive pelo próprio articulista de O Estado de São Paulo. Assim, em tom de autocrítica, Euclides desmontou um elemento central da teoria conspiratória – o caráter restaurador de Canudos: “Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto regime, capaz de derruir as instituições nascentes. E Canudos era a Vendéia...”20 A crítica aos órgãos de imprensa, responsáveis diretos pela construção de muitos dos estereótipos que aprisionaram Canudos nos signos da Vendéia, não foi menos impiedosa: “[...] a opinião nacional, pela imprensa, extravagava, balanceando as mais aventurosas hipótese que ainda saltavam dos prelos. O espantalho da restauração monárquica negrejava, de novo, no horizonte político atroado de tormentas. A despeito das ordens do dia em que se cantava vitória, os sertanejos apareciam como os chouans depois de Fontenay.”21 A crítica euclidiana não poupou sequer os símiles, dos quais também fora arquiteto, que aproximaram os combatentes da Bretanha aos do sertão baiano, evidenciando serem partes do mesmo ato burlesco: “Olhavam-se para a história através de uma ocular invertida: o bronco Pajéu emergia com o fácies dominador de Cathelineau. João Abade era um Charette de chapéu de couro.”22

A narrativa de um bombardeio a Canudos, em 14 de julho de 1897, expõe, mediante cruel ironia, o embuste representado pela filiação da República brasileira aos ideais da Revolução de 1789: “O dia era propício: uma data de festa nacional. Logo pela manhã uma salva de 21 tiros de bala a comemorara. Os matutos broncos foram varridos cedo, – surpreendidos saltando estonteadamente  das redes e dos catres miseráveis – porque pouco mais de cem anos um grupo de sonhadores falara nos direitos do homem e se batera pela utopia maravilhosa da fraternidade humana...”23 Acerca desse passagem, Euclides certamente subscreveria o juízo emitido por Marx sobre a situação francesa às vésperas do Dezoito Brumário, e o transporia para as cercanias de Canudos:  “[...] só faltava uma coisa para completar o verdadeiro caráter dessa república: [...] substituir a Liberté, Égalité, Fraternité, pelas palavras inequívocas: Infantaria, Cavalaria, Artilharia!”24

Ironicamente, Marx também utilizou-se da metáfora da Vendéia para analisar o cenário político da sua época, estabelecendo ilações entre Napoléon le Petit e o pequeno campesinato, base social de apoio do regime bonapartista. Segundo Marx, a tradição histórica originou, nos camponeses franceses, a crença no milagre de que um homem chamado Napoleão restituiria a eles toda a glória passada. Assim, os Bonaparte representavam não o camponês revolucionário, mas o conservador. Em suma, “Bonaparte representa não o esclarecimento, mas a superstição do camponês; não o seu bom senso, mas o seu preconceito; não o seu futuro, mas o seu passado; não a sua moderna Cevènnes, mas a sua moderna Vendée.”25 Eis aqui mais uma aproximação entre as obras de Hugo, Marx e Euclides, que merece ser cuidadosamente avaliada em um próximo trabalho.

Ao longo dos seus cem anos, Os Sertões foi alçado à condição de “livro número um” da cultura nacional, o “clássico brasileiro”, por excelência. Em 1994, referendando esse lugar  privilegiado conferida pelo cânone literário, 15 intelectuais, numa pesquisa realizada pela revista Veja, elegeram Os Sertões como a obra mais representativa da cultura brasileira.26 No ano passado, por ocasião do seu centenário, o sem-número de artigos e livros publicados, as conferências proferidas, as comunicações apresentadas, os seminários organizados, as matérias presentes nos mais diversos veículos da mídia atestaram o processo de consagração da obra e do seu autor. Não deixa de ser impressionante os fenômenos de persistência e de vitalidade de um texto como           Os Sertões numa sociedade como a brasileira, constantemente acusada de ser pouco atenta à história e à memória nacionais.

A permanência da obra euclidiana no imaginário nacional faz-nos recordar um princípio da teoria da historiografia de Benedetto Croce, segundo o qual toda verdadeira história é história contemporânea. Na perspectiva de discutir a natureza da verdade  em um livro de história, Croce assinalou que a necessidade prática, subjacente a todo juízo histórico, confere a toda história o caráter de “história contemporânea”, porque, por muito e muito distantes que pareçam cronologicamente  os fatos por ela referidos, essa narrativa se relaciona sempre com a necessidade e a situação presentes, nas quais os fatos propagam suas vibrações.27 A constante via de mão dupla entre o presente e o passado sugerida por Croce explicaria, em parte, a extraordinária longevidade de Os Sertões e a recorrência à metáfora de Canudos, tanto como uma das linhas de força da historiografia brasileira, quanto como fermento ideológico para movimentos sociais contemporâneos, tais como o MST – que reivindica o legado político de Antônio Conselheiro, agora reinterpretado sob a máscara de um revolucionário avant la lettre.

Portanto, a leitura de Os Sertões é uma constante advertência sobre o quanto o Brasil ainda é um gigantesco Canudos, sobre os significados da modernização para os pobres e miseráveis desse país, sobre a distância que separa o país legal (nossa civilização de empréstimo), do país real (um incomensurável sertão). Em suma, através da escrita euclidiana, a História não somente chegou até Canudos, como inseriu no imaginário da nação, quiçá definitivamente, o massacre perpetrado pelas forças republicanas contra  os habitantes daquele arraial às margens do Vaza-Barris.

NOTAS

 

 

1 Cf. BERNUCCI,  Leopoldo M. A ontologia discursiva de Os Sertões. História, Ciências, SaúdeManguinhos. Rio de Janeiro, vol. V (Suplemento), p. 52-72,  jul. 1998.

2 BURKE, Peter. A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa. In: ______ (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 336.

3 VENTURA, Roberto. Os Sertões. São Paulo: Publifolha, 2002. p. 60. (Folha explica).

4 Cf. LEÃO, Antônio Carneiro. Victor Hugo no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. Ver também ROUANET, Sérgio Paulo. A Revolução Francesa das Letras. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 de julho de 2002, Mais! p. 13.

5 HARDMAN, Francisco Foot. Brutalidade antiga: sobre história e ruína em Euclides da Cunha. Estudos Avançados, São Paulo, v. 10,  n. 26, jan. abr. 1996,  p. 293-294.

6 CUNHA, Euclides da. Dia a dia, 6 de abril de 1892. In: ______. Obra completa: em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1995. p. 656-657.

7 BERNUCCI, L.M. A imitação dos sentidos. São Paulo: EDUSP, 1995. p. 26-27.

8 CUNHA, E. da. A Nossa Vendéia. In: ______. Diário de uma expedição. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. p. 51-52.

9 VENTURA, R. “A Nossa Vendéia”: Canudos, o mito da Revolução Francesa e a formação da identidade cultural no Brasil (1897-1902). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo,  n. 31, 1990, p. 130-131.

10 Id. Euclides da Cunha e a República. Estudos Avançados, São Paulo, v. 10,  n. 26, jan. abr. 1996,  p. 278.

11 BERNUCCI, L. M. A imitação dos sentidos, p. 27-28.

12 CUNHA, E. da. Os Sertões: Campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê, 2001. p. 365-366.

13 BERNUCCI, L.M. A imitação dos sentidos, p. 26.

14 HUGO, Victor. Quatrevingt-treize. Paris: Flamarion, 1965. p. 180-192.

15 CUNHA, Os Sertões, p. 313, 648.

16 HUGO, op. cit.,  p. 180-196.

17 CUNHA, Os Sertões, p. 357, 361.

18 MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte.  In: ______ O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 21.

19 Ibid., p. 21.

20 CUNHA, Os Sertões, p. 318.

21 Ibid., p. 626.

22 Ibid., p. 627.

23 Ibid., p. 597.

24 MARX, op. cit., p. 64.

25 Ibid.,  p.129.

26 Cf. ABREU, Regina. O Enigma de Os Sertões. Rio de Janeiro: FUNARTE, Rocco, 1998. 

27 Cf. CROCE, Benedetto. La storia come pensiero e come azione. Bari: Laterza, 1943. p. 5. Ver também MOREIRA, Raimundo Nonato Pereira. Toda verdadeira história é história contemporânea: a historiografia como passado-presente na obra de Benedetto Croce. 1997. 120f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.

 
Raimundo Nonato Pereira Moreira
 
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