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REFLEXÕES SOBRE PERU VERSUS BOLÍVIA
2003-07-25 09:20:23

 

  REFLEXÕES SOBRE PERU VERSUS BOLÍVIA

* O artigo a seguir é um breve esboço do que será apresentado na Semana Euclidiana 2003, para que os alunos que se interessarem adentrem em minha temática de trabalho.             

Introdução

 Julgamos a obra amazônica de Euclides da Cunha ser a menos conhecida e a que menos gerou “desdobramentos” se a comparamos com Os Sertões. Nesse sentido é que propomos esta análise.

Recuperar Peru versus Bolívia é parte de um projeto de estudos no qual nos engajamos para conhecer países amazônicos, com o fim de realizar estudos de integração entre Brasil e Peru – os quais Euclides mostra tão fecundo conhecimento. Assim devemos esclarecer que estas reflexões sobre Peru versus Bolívia são substância para um trabalho de dissertação que leva em conta os pensamentos de Euclides da Cunha contemporizando-os com outros estudos[1] que complementam a leitura.

 Estamos certos de que temos como estudo material importante:- Euclides da Cunha, a Amazônia e a integração. Podemos dizer que  esta tríade tem importância  para o mundo.

Antes é necessário esclarecer que ao falar em Amazônia estamos nos referindo a um conceito geográfico de uma bacia hidrográfica que abrange 8 países diferentes, portanto  é uma região multinacional sul-americana composta por - Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Ao falarmos de Euclides da Cunha e a Amazônia estaremos nos referindo nesse artigo a 3 países amazônicos – Bolívia, Brasil e Peru.

Propomos elaborar uma análise critica, que não poderia se realizar sem a ajuda de outros trabalhos. Sentimos a necessidade de discutir e elencar os aspectos mais relevantes referentes a Peru versus Bolívia. Tentamos não perder de vista o momento histórico que imprime as marcas nas observações do autor que como um homem de seu tempo absorvia este momento não só com  argumentos mas atuando nele. Algumas passagens exigem mapas que desafortunadamente não dispomos no momento e que serão apresentados na Semana Euclidiana.

 

Apresentação

           

Euclides da Cunha era desejoso de conhecer a Amazônia. Vai gradualmente mostrando este anseio através de cartas[2] e de artigos publicados em jornais (1904) que demonstram conhecimento e cuidado diplomático ao tratar da região do hoje Acre – ao que sugerimos parece tentar captar atenção de autoridades para o fato de que poderia ser indicado para um possível trabalho de reconhecimento de fronteiras. Afinal é dada à Euclides missão de chefe para o reconhecimento das cabeceiras do Alto Purus, a pedido do ministro das relações exteriores - o Barão do Rio Branco -  na comissão mista brasileira e peruana da qual fora encarregado. Desde 1897 muitos choques armados ocorriam no Alto Purus e no Alto Juruá. Por essa razão em 1904 o ministro Rio Branco e Hernán Velarde do Peru assinaram um acordo e  neutralizaram esses territórios e estabeleceram esta comissão mista para explorar e definir as nascentes do rio Juruá e Purus, responsáveis respectivamente Belarmino de Mendonça e Euclides da Cunha. Com este fim parte em 1905.

A partir desta viagem a autor conhece e escreve sobre a Amazônia, com ela aparentemente fica apaziguado a hostilidade entre os dois países. Euclides escreve o Relatório da Comissão Misto Brasileiro Peruana (1906) e a autoridade peruana, Pedro Buenaño, ratifica esses escritos

O Purus e o Javari, importantes rios amazônicos[3] eram conhecidos e navegados desde a colônia, já suas nascentes eram motivo de confusões e dúvidas. Quem mais próximo chegou das cabeceiras do Purus (excluído os indígenas) foi o sertanista Manuel Urbano e Martins da Silva Coutinho em 1861 e o inglês Willian Chandless em 1867. Euclides da Cunha completou o trabalho desses precursores, alcançando as cabeceiras do  Purus.

Em 1867 a Bolívia assina o Tratado de Ayacucho, em que vende 300.00 Km2 de terras para o Brasil. Na época a Bolívia vivia sob a ditadura de Melgarejo e o ministro das relações exteriores é Mariano Donato Munóz.

Nos anos de 1903 é assinado o Tratado de Petrópolis que assegurava ao Brasil o direito sobre as terras do Acre. Nesse acordo o governo do Brasil exige rapidez nas negociações porque há um clima de guerra – tanto que o nome dado para região não poderia ser melhor Acre – azedo. Realmente eram azedas as negociações.

Com o tratado de Petrópolis (1903) o Brasil paga 1.000.00 libras esterlinas e em 1905 outra parcela de mesmo valor para a Bolívia pelas terras onde hoje estão o Acre. Esse tratado sofreu comentários das nações hispano-americanas, que o viam como imperialismo do Barão[4] e do Brasil. Nele ficou acordado que a Bolívia receberia o direito de trafego com a construção da ferrovia Madeira-Mamoré “que se vai construir por conta do Brasil, em virtude do Tratado de Petrópolis”(Galvão, et.al p.310). Euclides foi convidado para ser chefe de fiscalização desta obra. 

O ministro Rio Branco procurou atrair a amabilidade do Peru pois a Bolívia queria estabelecer um sindicato estrangeiro no território em litígio de nacionalidade estadunidense conhecido como Bolivian Sydincate[5]. Com a instalação de um protetorado dos EUA haveria ainda mais dificuldades para o Brasil. Por essa razão tenta se unir ao Peru.

No dia 8 de setembro de 1909, quase um mês após a morte do autor, o Barão do Rio Branco assina, o Tratado Brasileiro Peruano sobre o Alto Purus e o Alto Juruá, que estabelece, após seis anos de “azedas” negociações, as fronteiras definitivas entre os dois países, como as conhecemos hoje.

 


Euclides e suas assertivas sobre a região triparte Brasil, Bolívia e Peru

1 – Análise dos tratados mencionados

Euclides da Cunha se apóia sobretudo em documentos históricos como as leis do Livro 2º Da Recopilación das Índias de 1680. Neste documento o argumento principal é de que as terras em litígio aparecem como “no descubiertas” (Cunha, p.756), essa imprecisão gerou o princípio da discussão entre os 3 países. Este documento serviu de base para o Tratado de 1750, reproduz, segundo Euclides, toda a dubiedade e obscuridade do documento de 1680. Nele os limites da Bolívia mencionada como Charcas, aparecem ao norte delimitando-se com o Departamento de Cuzco; nos terrenos ocidentais do Madeira e na foz do Mamoré. Esta é a zona em litígio.

Na véspera de consolidação do Tratado de 1750, o domínio espanhol dividiu-se em vice-reino do Peru, ou vicerreyno de los reyes  (sede do governo geral, em Lima) e de Nova Granada, subdividindo-se em várias audiências[6] cuja estrutura caminhava para descentralização a ponto de chegar à proclamação das Repúblicas.[7] Em várias passagens critica a presença dos vice-reinos como motivo de atraso e inércia que as custas dos “países novos” aumentavam a opulência da metrópole por meio de impostos, taxas, ouro e prata.

A hierarquia colonial espanhola estabelece o vice-reino como detentor de plenos poderes subordinado somente a Espanha; a Audiência seria uma autarquia, existia a de Quito (hoje Equador); de Charcas (hoje  Bolívia) e a Audiência de Los Reyes (Lima). Deste modo, o Peru alegava que os territórios de Charcas faziam parte do vice-reino do Peru, cuja legitimidade de governo outorgado pela Espanha lhe assegurava poderes para gerir as terras do “Novo Mundo”. Seguindo este princípio a Bolívia não teria direitos sobre as terras em disputa e sim o Peru.

Euclides da Cunha, em defesa da Bolívia tece seus argumentos elaborados a partir de documentos históricos, todavia coloca na localização geográfica sua primeira argumentação que a favorece, ou seja, seu determinismo geográfico aparece também aqui - por sua conformação física ilhada pela distancia e pelo cordão isolante dos Andes, a Bolívia não mantinha comunicação corrente com  o vice-reinado de Lima. Argumenta que teve uma missão particular dentre todas as outras colônias espanholas. Defendeu o Mato Grosso da invasão portuguesa:

“(...) Audiência de Charcas sua administração, sempre invadida, transfigurou-se numa reação vigorosa; e o Mato Grosso, onde durante largo tempo se armavam os arraiais dos invasores (portugueses) foi teatro de uma defesa desesperadora contra os que o ameaçavam” (Cunha, p.765); emparelhando-se aos portugueses – como um escudo - não deixavam que avançassem; seu isolamento, por motivos geográficos – “a cordilheira foi – materialmente – um cordão sanitário” (Cunha, p.754) foi precisamente o que ofereceu sua gradual independência em relação ao vice-reino do Peru. E por fim à distância do litoral não traria “neurastênicos”. Arremata dizendo que barrar este avanço foi mais importante que “a posse efetiva e pacífica” argumento do “uti possideti” levantado pelo Peru e que Euclides se posiciona contrário.

Esse princípio jurídico-político surge no Tratado de 1750. Significa a posse real e efetiva e não o que se considera por direito possuir mas que não se possui. Usado como solução política este termo evidencia que há múltiplos interesses que convergem para um único ponto. No período colonial a fórmula de fixação que ditava as fronteiras políticas foi dada pelo “uti possideti”, muitos problemas foram gerados por ele inclusive o do Acre – e o seu desenrolar tomou forma moderna  - refiro-me as leis de navegação dos rios – quem são os donos dos rios?. O “uti possideti” e as leis de liberdade de navegação são as soluções universais dos problemas amazônicos. (...) o “uti possideti” é o índice do problema político. A liberdade de navegação do econômico” (Medeiros, p.47). O elemento propulsor em Euclides, podemos dizer é o econômico, o orientador o jurídico e o moderador a política.

Para a questão jurídica o “uti possideti” é a confirmação tácita de um fenômeno geográfico onde convergem ambições desmedidas numa área convergente, única. 

O Tratado de 1750, segundo Euclides onde se “riscaria... predestinado a todos os deslizes a todas as cincas e diabruras” e “atrapalhações geográficas”. A região em disputa aparece nesse tratado como território neutro, res nullius sendo assim a Bolívia e o Brasil não tinham direito sobre o território do hoje Acre – o tratado dizia que essas terras eram nulas e de ninguém, até aparecer quem pudesse ter domínio sobre elas.

Elaborado, de acordo com o autor para “substituir a divisa de Tordesilhas, de um lado pelas linhas naturais do Guaporé, Mamoré e Madeira; do outro pela linha traçada do Madeira no Javari” (Cunha, p.759). Os mapas que surgem deste tratado colocam um “meridiano” que serviria como a linha demarcatória que ia para o norte até o mar. Euclides chama de muito elástico este termo “meridiano” Vai deslegitimando e contrariando o Tratado de 1750. Escreve que é um pacto internacional definitivo mas de vida breve. O Marques de Pombal o cancela em 1761 (Cunha, p.764). Com isso volta a Audiência de Charcas ao indefinido, como aparecia no documento da Recopilación das Índias “marginando (...) o desmedido”. Assegurando assim que ela nada tinha pendente, ou de subserviência ao Peru.

De acordo com o documento de 1680 essa região enorme e não descoberta, ficaria a cargo de quem pudesse ter domínio no local “consoante a capacidade das audiências” de se apropriarem. E a Audiência de Charcas, com as Missões de Moxos e Apolobamba alastrou as terras (outro tributo conferido a Bolívia) deixando de serem “não descobertas” como defende Euclides. Moxos é o nome da província mais setentrional de Charcas, e onde esta a boca do Mamoré. As terras em disputa eram prolongamentos de Apolobamba e Moxos, que assim como Maynas[8] eram nomes das missões, elas que tinham dupla função: estender os domínios em nome do cristianismo ao mesmo tempo em que defendiam as terras onde se instalavam[9].

Logo após a guerra do Paraguai (1766), sai uma ordenança do império de 1772, emitida pelo bispo de Santa Cruz de La Sierra, para o Conselho das Índias – órgão regulamentador das colônias - para que assegurasse o direito da Bolívia sobre o Mato Grosso. Nessa cédula imperial ficou garantido as divisas espanholas ao longo do Madeira “desde o trecho encachoeirado” até as origens do Guaporé (Cunha, p. 765).

O Tratado de Santo Ildefonso é de 1777[10], feito por Alexandre Gusmão.Os peruanos querem resgatá-lo do esquecimento, alegando que a linha Madeira-Javari estava em aberto e a Bolívia não poderia negociar as terras acreanas porque ela não lhes pertencia. Nele aparece o termo “uti possideti” também  retomado pelos peruanos.

O tratado de 1777 estabelecia divisória exclusiva entre a Bolívia e o Brasil. A Bolívia era tenazmente favorável a ele, mas o Brasil repelia seus deslindes. A principal delas era a oblíqua que partia do rio Madeira até o Javari. Começa a indisposição boliviana e brasileira. O Peru resgata-o alegando que as terras aparecem ainda como não demarcadas. A Bolívia alega que nele fica claro seu direito sobre elas.

A Bolívia não foi sempre mediterrânea. Ela já teve saída ao mar. Em 1879-1883, na guerra do Pacífico, Peru e Bolívia se uniram contra o Chile, este último ganha a guerra e os territórios onde hoje estão o porto de Arica é tomado da Bolívia. [11]

Em 1776 por razões de preservação dos domínios castelhanos - os territórios do mar del Plata na Argentina de hoje – obtém status de vice-reino, pela vulnerabilidade que oferecia - suas entradas estavam abertas, desprotegidas contra navegação inimiga, colocando em risco os domínios da Espanha. Em 1803 após 27 anos aparece uma nova divisão administrativa, exigido em decorrência da presença dos domínios dos bispados- locais geridos por missionários. Mantiveram-se as audiências agora divididas em intendências[12]. Euclides coloca que esta divisão colocou no vice-reino de Buenos Aires a intendência de Santa Cruz de La Sierra, La Paz e Potosi[13] todos bolivianos, cujo reclame pelas terras deveria partir de Buenos Aires e não do Peru. (Cunha, p.785). Diz juntamente com Visconde de Porto Seguro que foi em razão de contendas que se mostravam “mais vivas, à ourela do continente” enquanto que as refregas que se passava em terras como Mato Grosso e Bolívia se dissipavam na imensidão dos terrenos; e da posição da foz do grande rio da Prata e da conexão desse rio com o Atlântico, somadas essas razões, foi eleito o Prata como próximo vice-reino.

A Bolívia depois de se desprender pela própria geografia do vice-reinado de Lima, cresceu a ponto de não poder ser abrangida pelo vice-reinado de Buenos Aires. Este fermento criou o movimento de autonomia – a primeira da América do Sul, em 1809 contra o domínio hispânico[14], escreve que a Bolívia chegou à independência administrativa antes de chegar à República. Ela era a esperança de liberdade hispano-americana. E diz que fora dessa retilínea e heróica qualidade não se pode interpretar o “uti possideti” (Cunha, p. 783); que discorda, pois as fronteiras sul-americanas, diz Euclides, são maiores do que esse “velhíssimo” conceito. Somente a posse útil não serve para compreender a complexa história dos povos.  

A perda da Bolívia e do Prata para o vice-reinado de Lima ilustram dois fatos: a extensão territorial do Peru e sua queda de poder político.

De acordo com Euclides, desde 1782 por ordem da metrópole e com anuência do vice-reino do Peru, o visitador geral, Jorge Escobedo, instituiu que o limite do Peru no oriente se encontrava no Inambari (braço do Madre de Dios ) - o limite máximo que este país chegou das terras requeridas. Reúne os pareceres de D. Mateo Paz y Soldan “o mestre tradicional da fisiografia” peruana (Cunha, p.788) em 1863 dispunha os limites em  Carabaya, de leste a oeste, e a norte e nordeste terras de índios bárbaros (Cunha, p. 789). Esses exemplos são alguns dos vários citados por Euclides para comprovar a não legitimidade dos interesses peruanos. Expõe ainda que desde 1782 as demarcações feitas por visitadores gerais da Espanha, sancionados pelo vice-rei de Lima permaneceram inalterados até 1802, quando Francisco Requena altera a cartografia (desmembra Maynas do vice-reino de Nova Granada e estabelece “as terras a anexarem-se ao Peru, que as Ordenanças marcavam  “pelas áreas do bispado” não deveria e não poderia ultrapassar o Ucayali para o levante” (Cunha, p.792). Podemos deduzir que Euclides nos alerta no sentido de que as terras litigadas foram recusadas por cédula real emitida por Requena – o Peru não tinha qualquer alternativa em requerê-las.

As terras do Peru que mais se avizinhavam da área pretendida, segundo Euclides, era Cuzco. E dista muitos kilometros da área pendente. O Peru reivindica uma área que vai até o Madeira. Esclarece que o mais próximo que chega dessas terras é, segundo os documentos averiguados pelo autor, a província norte oriental de Paucartambo (hoje Cuzco centro-leste). Como já descrito em 1796 por documento da cédula real Puno com suas 5 províncias – Chucuito, Puno, Lampa, Azangaro e Carabaya passa a ser do Peru. Esta ultima é a que fazia fronteira com Apolobamba, na audiência de Charcas (Bolívia) – e é nela que  poderia avançar nos vales do Madre de Dios, Beni ou Madeira para talvez poder ter direito sobre os terrenos em disputa - mas não o fez.

O primeiro acordo de limites entre o Brasil e o Peru foi em 1851. Essa é uma data muito importante em que Duarte da Ponte Ribeiro assinou em Lima, com Bartolomé Herrera, ministro das relações exteriores do Peru, o Tratado de Comercio e Navegação em 23 de outubro, cujo intuito dentre outros, era permitir a navegação fluvial nos rios amazônicos dos dois países. Estabelece-se nesta data que a fronteira natural seria o Javari. Foi na verdade troca de favores - o Brasil aceita a divisa do Javari e os limites foram colocados sob as bases do “uti possideti”. Os peruanos querem que se apliquem estas bases. Euclides se opõe, pois estão assentadas na “controvertida cédula de 1802” também se opunham a elas: o Atlas de Restupo (1827); a Carta Geral da Colômbia feita por Humboldt (1825). Esses exemplos são resgatados para dar apoio às convicções do autor. A primeira argumentação contra o tratado de 1851 é que ao resgatar esse tratado, o Peru retrocede ao se submeter a um império. Ficou estabelecido que o Brasil teria o monopólio da navegação amazônica[15] nesse país – em contrapartida adquiria direitos sobre as terras em disputa, ou seja, aparecia nesse documento o traçado como fronteira da margem esquerda do Madeira à direita do Javari. Era o que desejavam os peruanos.

Com o Peru foi fácil. Ele não se opunha ao monopólio brasileiro –  “naquele caso realmente imperialista – aceitava-o e sancionava-o,  solenemente, com o Tratado de 1851” (Cunha, p.803). Esse tratado é, segundo o autor, o que significou imperialismo e não o que diziam sobre o Brasil na Guerra do Paraguai ou na contenda nas terras acreanas. O Brasil tentava evitar sobretudo que as repúblicas recém proclamadas tivessem relações comerciais com outros mercados, feitas através dos tributários do grande rio Amazonas.

O tratado de 1851 foi amistoso entre Brasil e Peru. A Bolívia não gostou, pois o Peru não poderia permitir a navegação em rios que a Bolívia considerava, desde muito remotamente, como propriedade sua. Como permitir navegar no Purus, Juruá, como estipulava o Tratado de Comércio, Navegação, Limites e Extradição, se o Brasil não negociou com a Bolívia? No entanto, o Brasil não assinaria o tratado de 1851 se tivesse que respeitar a demarcação que a Bolívia exigia desde 1777 com o Santo Ildefonso. O fracasso nas negociações com a Bolívia ficaram constantes após 1851. Até nascer o Tratado de Ayacucho de 1867 estabelecendo novos acordos. Como ele os limites aprovados foram: do Guaporé, Madeira até a foz do Beni (no Mamoré) dali para oeste com uma paralela até que encontre o Javari. É o Acre quase que exatamente. O Império do Brasil fez muito esforço para eliminar as contrariedades com a Bolívia que estavam no auge em 1863, mas ela insistia numa linha leste-oeste que remontava a Santo Ildefonso de 1777. Enquanto isso o Peru não manifestava nenhuma opinião – tido como mais um motivo de desinteresse pelas terras. Em novembro de 1863 o Peru e a Bolívia celebram o Tratado de Paz e Amizade, nele o Peru reconhecia o direito exclusivo da Bolívia nas terras em litígio. Nesse ano as relações da Bolívia com o Brasil se anularam. A Bolívia se juntou com as tropas de Solano Lopes do Paraguai em 1866 contra o Brasil. Os países que lutaram contra o Brasil na Guerra do Paraguai viam-no como um ansioso imperialista. Essa guerra resolveria dois problemas: captar novamente a amizade do Peru que trocou a simpatia do Brasil pela do Paraguai; e à renitente Bolívia, com uma ofensiva, uma vez que estava difícil entrar num acordo - ela era nossa tradicional inimiga e defendia muito bem suas terras no Mato Grosso.

A opinião boliviana era contra Ayacucho, pois deslocava a linha histórica de Santo Ildefonso, que defendiam com vigor. Mas foi aceito. O Peru durante a crise Brasil-boliviana não se infiltrava. Após 9 meses do Pacto de Ayacucho selado em 27/03/1867 é que em dezembro o ministro das relações exteriores, J. A. Berrenechea protestou contra o tratado. Diz não gostar que a Bolívia esteja negociando com o Brasil, pois com a guerra do Paraguai, as repúblicas aliadas estabeleceram que qualquer negociação diplomática deveria se fazer reconhecer pelas nações amigas. Argumenta também que nesse tratado foi colocado uma questão de limites, de suma importância, por um convênio fluvial menosprezível; fora admitido o “uti possideti” sem data definida dando favorecimento ao Brasil pois possuía mais territórios que o Peru, cujo direito sobre elas estava estabelecido em Santo Ildefonso de 1777 (Soares, p. 173). Euclides argumenta que este país enquanto não viu afetados seus interesses, nunca se posicionou na aversão que existia entre o Brasil e a Bolívia. Berrenechea alega que o Tratado de 1867 (nele a Bolívia cede parte dos territórios em disputa) não pode ser invocado pela Bolívia e Brasil por se tratar de países outrora submetidos a metrópoles distintas. Euclides por sua vez, diz não corresponder com a história, pois o “uti possideti”  existe desde 1851, sendo aceito pelos peruanos desde essa data. Em 1867 só é sancionado. E, só agora em princípios do século XX  vem reivindicar que esse dispositivo pode ser aplicado somente entre hispânicos.  Esse tratado se fundou no “uti possideti”. E o Tratado de Limites de 1851, também se alicerçou nesse princípio.

O Peru quer resgatar no pacto de  1851,  a frase  “(...) todo o curso do Javari é limite comum entre Brasil e Peru que podem ser da propriedade do Peru”. (Cunha, p. 808).

Este podem ser  é posto a prova pela sua imprecisão de termos.

O Peru resgata um pacto feito com o vice-reino de Nova Granada em 1829. Nele Euclides assegura, os documentos foram alterado “traçaram-se-lhe, ou escreveram-se-lhe, por cima, outros desenhos de cartas de ulteriores convenções” e feito de modo obscuro - como também é obscuro o modo como o explica. Argumenta ainda que “é desastrosa para a República, que se proclama herdeira de um regímen condenado e extinto. É a prova preexcelente dos direitos da  Bolívia” (Cunha, p. 794) Mas o que faz Euclides senão trazer provas de um regime extinto?

Termina dizendo que este texto foi escrito rapidamente e nisto esta sua veracidade; não houve tempo para se construírem frases, somente tempo para “cândida nudez de uma esplendida sinceridade” “fomos apenas eco de maravilhosas vozes antigas”(Cunha, p. 809).

 

Conclusões 

O ensaio de Peru Versus Bolívia, pareceu-nos tratar-se de um documento elaborado por “encomenda” pelo Barão do Rio Branco. Esta hipótese esta orientada pela carta a Domício da Gama:

“chegaram aí uns artigos, “Peru x Bolívia”, que publiquei no jornal do Comercio?

É uma das minhas quixotadas. Constituiu-me, por satisfazer à índole romântica, um cavaleiro andante da Bolívia contra o Peru. Por quê? Talvez porque a Bolívia... é mulher. De qualquer modo, manda-me dizer a tua impressão sobre o lance”. (Galvão et al., 337).

E,

À Joaquim Antunes Leitão “em breve enviarei a José Pereira Sampaio um livro  (Peru versus Bolívia) que improvisei num mês” . (Galvão et al., 334)

Ao dizer que foi um documento elaborado em virtude de a Bolívia ser mulher e feito com “improvisação”, pensamos poder se tratar de algo feito a pedidos. Do que abstraímos, há um vai e vem de datas e acordos que às vezes parece mais confundir do que aclarar. Peru versus Bolívia, por tantas datas, pela defesa única da Bolívia, põe em dúvida todo o trabalho de Euclides quanto à imparcialidade dos fatos reais históricos. Diz, desde o traçado de documentos territoriais que prevaleceram até 1810 - todos - não davam ao Peru a entrada da Amazônia, p.e. as ordenanças dos intendentes de 1782,1803; as cartas régias de 1796 e 1802 “são os únicos, e os mais sérios e os mais firmes e os mais compreensíveis elementos em que se esteiam as pretensões peruanas. Mas não lhes abrem as portas da Amazônia” (Cunha, p. 794).

Baseado somente em Peru versus Bolívia e não contextualizando com outros documentos e sem termos condições de analisar a bibliografia citada por Euclides, pareceu-nos que a região era da cobiça de todos. Em vários trechos menciona como os documentos não são confiáveis, possibilitam brechas para várias interpretações; os não oficiais -  escritos, memórias, roteiros ou crônicas e os oficiais – cédulas, ordenanças ou ofícios “engravescem e multiplicam sobremaneira todas as dúvidas” (Cunha, p.757). Pensamos que dito isso cabe também própria interpretação tecida por ele, defendendo que dentre tantas vacilações, um ponto é acorde, as terras são bolivianas.

Toda a construção feita não pode esquecer as relações que os EUA estabeleciam com a América do Sul. Euclides cita um geógrafo, Lardner Gibbon, responsável por entregar uma mapa definitivo sobre os limites da Bolívia com o Brasil e partir do qual “a sua demarcação oficial ao governo norte americano - por onde, naturalmente, este se guiaria em todas as suas relações com aquela República – reproduz admiravelmente, as linhas gerais, limítrofes, que apontamos e são hoje requeridas pela Bolívia” (Cunha, p. 797). Esses mapas ficaram prontos em 1853. Em 1898 a Bolívia cede aos EUA o direito de gestão no reconhecimento dos direitos da Bolívia nos territórios do Acre.

Nessa época a Bolívia já tinha perdido o litoral do Pacífico para o Chile. O que terá sido pior, suas terras ou a saída ao Pacífico? Em troca pelo pacto de 1867, a Bolívia receberia o direito de navegação pelo Madeira e obtinha uma saída pelo Atlântico; nele o Brasil se obriga a conceder a Bolívia o uso de qualquer estrada que viesse ser instalada na região do Madeira-Mamoré.  Este Tratado de 1867 foi seguido pelo Tratado de Petrópolis.

O fato é que os limites precisavam ser definidos, e não daria para demarcar uma região em tão polvorosa euforia. Como realizar os desígnios do Tratado de 1867 se o Brasil não tinha segurança de que as terras compradas seriam definitivamente do Brasil?. O Acre não era nosso por documentos mas desde 1850 foi se infiltrando seringueiros, comerciantes e nordestinos. O litígio grave era entre bolivianos e peruanos e brasileiros.

Euclides escreve de modo significativo sobre o Peru, antes de conhecer a Amazônia e a porção peruana títulos pouco amistosos como “Conflito Inevitável”,“Contrastes e Confrontos”, “Contra os Caucheiros” e “Entre o Madeira e o Javari”. No entanto, aponta estar nesse país o caminho para o Brasil integrar a Amazônia ao mundo pelo Oceano Pacífico. Mas essa é matéria para outras reflexões...   

 

Referência:

GALVÃO, W. N.; GALLOTTI, Oswaldo. Correspondência de Euclides da Cunha São Paulo: Edusp, 1997

 

CUNHA, Euclides da. Peru versus Bolívia. Obra Completa em dois volumes. Org. Afrânio Coutinho. Vol I. 1ed. Rio de Janeiro: José Aguilar,1966.

 

MEDEIROS, Fernando Sabóia. A liberdade de navegação do Amazonas (relações entre o império e os EUA). Série Brasiliana. V. 122 C. Ed. Nacional,1938

 

SOARES, Teixeira. História da Formação das Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,1973, v.111, Col. General Benício.  

     

 

 

 

 



[1] Como são os seguintes trabalhos: AMAYO ZEVALLOS, E. Porqué estudiar la formación histórica y problemática actual de la Amazonía? ESPIRAL. Estudios sobre Estado y Sociedad. Universidade de Guadalajara, v. V, n. 15, p.73-105, maio - agosto 1999;  Da Amazônia ao Pacífico cruzando os Andes. Interesses envolvidos na construção de uma estrada, especialmente dos Estados Unidos e Japão. Revista do Instituto de Estudos Avançados – USP, n. 17, p.117-169, janeiro – abril 1993;  e, Proyecciones Andinas en el Pacífico. Del Pasado al Presente. Geopolítica de América Latina y el Caribe. Instituto Panamericano de Geografía e Historia - Fondo de Cultura Económica, México D.F., p.43-72, 1999

[2] As cartas foram reunidas por Walnice N. Galvão e Osvaldo Galloti.

[3] Há aproximadamente 1.100 afluentes do rio Amazonas. No Brasil, o rio Negro, Madeira e Purus são muito expressivos. 

[4] Barão do Rio Branco também se envolveu em negociação nos antigos territórios de Roraima (também chamado de Território Rio Branco) e Amapá .

 

[5] Nesse mesmo ano Luiz Galvez declara o Acre como um império. Em 1902, Plácido de Castro hasteia bandeira brasileira no Acre.  Fica evidente que a região era alvo de muitas disputas.

 

[6] As audiências caminhavam para a administração e gerencia autônomas, apontado por Euclides como o valor político da América Espanhola, ganhavam cada vez mais forças substituindo a central – o vice-reino – “consistindo no permanente  triunfo dos governos locais sobre a centralização primitiva” (Cunha, p.759).

[7] O domínio lusitano manteve mesmo depois da Independência ,  o Brasil unificado enquanto que o espanhol foi todo fragmentado.

[8] Maynas era o nome das missões que foram para Quito onde hoje é o Equador – segundo Euclides elas estenderam sobremaneira o governo de Nova Granada. Compreendem Equador, Colômbia e Venezuela. Foi Francisco Requena quem em 1802 desmembrou Maynas do vice-reino de Nova Granada e anexou-a a Lima. 

 

[9] Essas missões, serviam de “cobaia” para a Coroa - o indígena encontrado poderia aceitar ou não a submissão imposta – lutando ou não contra ela. As missões são chamadas de “reduções” ou seja, reduz através da matança as sociedades minimalistas. Segundo Euclides “nasciam com os mais vivazes germens democráticos” (Cunha, p.767). Era próprio da época o preconceito de que os brancos tinham seu modelo de sociedade como o melhor e mais perfeito.

[10] O tratado de 1777 é uma cópia do Tratado de 1750 este por sua vez substituiu o Tordesilhas. 

 

[11]  Amayo Zevallos. E.  La politica Britanica en la guerra del Pacifico.  Lima Peru: Editorial Horizonte, nov.1988.

 

[12] Para os hispanos-americanos hoje conhecidos por departamentos; e para nós, estados.

[13] Onde hoje é o departamento de Puno era ligado a Charcas  -as províncias de Lampa, Azangaro e Carabaya formavam em 1796 a Intendencia de Puno o nome permaneceu mudou o país que a administra. A Bolívia perdeu a margem ocidental do Lago Titicaca.

[14] A próxima foi a Argentina em 1810; Paraguai – 1811e Uruguai em 1828.

[15] A navegação de todos os rios amazônicos era o alvo brasileiro. Os ministros plenipotenciários iam com essa finalidade negociar com Bolívia, Equador e Colômbia.

 
Ieda Ramon
 
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