Teoria
da historiografia e literatura em Os Sertões
Universidade
do Estado da Bahia (UNEB)
Para
Amadeu de Araújo Moreira, in memoriam.
As
considerações, expostas ao longo do presente trabalho, resultam de uma
pesquisa por nós desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História da
UNICAMP, em nível de doutoramento, a qual objetiva discutir algumas das relações
existentes entre o romance Quatrevingt-treize
[Noventa e Três]
(1874), de Victor Hugo (1802-1885), e Os
Sertões (1902), de Euclides da
Cunha (1865-1909). Assim, essa comunicação busca problematizar determinadas
questões referentes às sinuosas fronteiras entre a escrita da história e a
literatura no corpo de Os Sertões,
mediante o suporte teórico de três autores: Victor Hugo, Karl Marx (1818-1883)
e Benedetto Croce (1866-1952).
O
texto aqui apresentado compõe-se de três segmentos principais. Inicialmente,
coloca-se em relevo os influxos do Quatrevingt-treize
para as percepções iniciais de Euclides da Cunha (1866-1909) acerca do fenômeno
de Canudos (1893-1897) e mesmo para a construção da narrativa de Os
Sertões. Em seguida, destacam-se as reflexões de Marx sobre os usos
sociais do passado por parte dos homens do tempo presente, sugeridas pela
leitura do Dezoito Brumário de Luís
Bonaparte (1852). Finalmente, vincula-se a persistência de Os
Sertões como um clássico da literatura brasileira e a relevância de
Canudos na memória histórica nacional com um cânone da teoria da
historiografia de Croce: o princípio segundo o qual toda
verdadeira história é história contemporânea.
Nos
limites dessa comunicação, uma questão a ser preliminarmente explorada diz
respeito à ontologia discursiva de Os
Sertões1,
ou seja, se o mesmo é livro de ciência ou arte, se é discurso da realidade ou
narrativa ficcional, ou, em última instância, uma construção
híbrida, pertencente a diversos gêneros literários. Esse problema foi
continuamente revisitado pelos exegetas da obra euclidiana, desde os primeiros
ensaios de José Veríssimo e Araripe Júnior até os trabalhos de estudiosos
contemporâneos, tais como Walnice Nogueira Galvão, Luiz Costa Lima, Leopoldo
Bernucci, dentre muitos outros. Sob qualquer ponto de vista, salta aos olhos do
leitor o caráter polifônico do texto euclidiano, marcado por uma
impressionante heteroglossia, ou seja, uma profusão de “vozes variadas e
opostas.”2
Assim, como assinalou Roberto Ventura, “Os
Sertões é uma obra que transita entre a literatura, a história e a ciência,
ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à
construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma visão romântica
da natureza. Euclides recorreu a formas de ficção – como a tragédia e a
epopéia – para compreender o horror da guerra e inserir os fatos num enredo
capaz de ultrapassar sua significação particular.”3
É
precisamente no contexto dos vínculos estabelecidos entre a história, a
literatura e a ciência, no corpus documental
de Os Sertões,
que passamos a discutir os influxos de Victor Hugo sobre a escritura
euclidiana. Nessa perspectiva, destacar a presença do autor de Notre
Dame de Paris na literatura brasileira do século XIX é um lugar comum. No
Brasil, o romancista francês foi idolatrado por várias gerações de poetas e
escritores, a exemplo de Gonçalves Dias, Castro Alves, Joaquim Nabuco, Machado
de Assis, Raimundo Correia e, inclusive, Euclides da Cunha. Dentre os mais de
cem brasileiros que o traduziram, aparecem os nomes do imperador Pedro II e de
Machado de Assis.4
A respeito desse ponto, cabe-nos destacar diversos estudiosos contemporâneos,
como Adelino Brandão, Leopoldo Bernucci, Edgar De Decca, Francisco Foot
Hardman, Roberto Ventura e Berthold Zilly, que têm enfatizado as marcas
hugoanas no estilo do autor de Os Sertões.
Não obstante, certa tradição interpretativa não se deteve exaustivamente
nessa questão. Como ponderou Foot Hardman, os críticos têm ressaltado muito o
papel desempenhado pela ideologia do progresso. Engenheiro e militar, era previsível
que o pensamento de Euclides fosse perpassado por idéias relacionadas aos
grandes movimentos político-culturais da sua época: positivismo,
evolucionismo, materialismo, socialismo reformista, republicanismo.
Entretanto, na
sua obra, aparece uma outra polaridade que a marca profundamente: “trata-se de
um romantismo de base hugoana, que provoca em sua prosa e poesia uma
interessante combinação estética de sublime, dramatização da natureza e da
história e discurso socialmente empenhado.”5
As
inferências ao escritor francês espalham-se desde os poemas juvenis, passando
por artigos de jornais, até os trabalhos maduros do nosso autor. Euclides tomou
para si dois traços expressivos do pensamento de Victor Hugo: o sentimento da pátria
e o consórcio final da Arte com a Filosofia. Não obstante, a imagem, por excelência,
do conjunto da obra hugoana, que se cristalizou em Euclides da Cunha, foi aquela
relacionada à Vendéia (1793-1796), ou seja, o levante monarquista e clerical
ocorrido no oeste da França e narrado no Quatrevingt-treize,
que associou nobres e camponeses da Bretanha em oposição à República
francesa e aos seus aliados locais. As alusões à Vendéia surgem, repetidas
vezes, nos seus escritos, precedendo os acontecimentos dramáticos de Canudos.
A
primeira referência explícita à contra-revolução francesa apareceu numa crônica,
publicada em O Estado de São Paulo,
datada de 6 de abril de 1892. Nesse texto, Euclides estabeleceu um paralelo
entre as rebeliões militares, que atormentavam o governo Floriano Peixoto, e a
revolta bretã, ao pontuar que a república brasileira também possuía sua Vendéia
perigosa – muito embora os rebeldes nacionais não se equiparassem aos “heróicos
vendeianos”. Defensor da consolidação da nova ordem, encerrava o artigo
profeticamente: “A República vencê-los-á como a grande revolução à Vendéia,
com uma diferença fundamental porém – a glória do republicano francês foi
verdadeiramente brilhante, graças à grandeza dos vencidos.”6
Portanto, mesmo antes da produção do “seminal ensaio” sobre o movimento
sertanejo, a idéia da insurreição contra a Revolução Francesa, vista como
correlato do fenômeno de Canudos, começa a germinar. Assim, “a matriz já
estava construída em 1892 para moldar os textos vindouros.”7
As
sugestivas imagens vendeianas retornaram ao centro das preocupações de
Euclides em março de 1897, no rastro da derrota da expedição Moreira César.
Abalado pelos acontecimentos, o autor redigiu dois artigos, publicados nas edições
de 14 de março e 17 de julho de O Estado
de São Paulo, emblematicamente denominados A
Nossa Vendéia. Após entabular considerações sobre o relevo, o clima, a
vegetação e os tipos humanos dos sertões baianos, encerrava o primeiro artigo
explicando a simetria existente entre os acontecimentos de Canudos e os da Vendéia:
“O homem e o solo justificam assim de algum modo, sob um ponto de vista geral,
a aproximação histórica expressa no título deste artigo. Como na Vendéia o
fanatismo religioso que domina suas almas ingênuas e simples é habilmente
aproveitado pelos propagandistas do império. [...] A mesma coragem bárbara e
singular e o mesmo terreno impraticável aliam-se completamente.” Os próprios
revezes das primeiras expedições encontravam explicação no paralelo traçado
pelo autor entre as duas séries de eventos: “A Revolução Francesa que se
aparelhava para lutar com a Europa, quase sentiu-se impotente para combater os
adversários impalpáveis da Vendéia – heróis intangíveis que se escoando céleres
através das charnecas prendiam as forças republicanas em inextricável rede de
ciladas...” Não obstante, o epílogo dessa história brasileira seria,
fatalmente, favorável aos republicanos: “Este paralelo será, porém, levado
às últimas conseqüências. A República sairá triunfante desta última
prova.”8
Essa
sobreposição entre a história da Revolução Francesa e os eventos que
marcaram os primórdios da República brasileira encontrava sólido apoio no
imaginário das camadas letradas da época. Conforme ajuizou Roberto Ventura,
para Euclides e seus contemporâneos, a identificação com o mito revolucionário
francês integrava um fenômeno religioso e político (Canudos), que deixou
perplexas as populações litorâneas e as elites urbanas, a um horizonte prévio
de expectativas, possibilitando enquadrar o movimento como “monarquista” e
“restaurador”. Assegurava-se, pela crença na repetição da história, uma
resolução do conflito a favor da República. A metáfora da Vendéia
incorporou Canudos a uma história vivida no imaginário pelos republicanos
brasileiros, expurgando as dúvidas e as incertezas quanto ao futuro da nação.
Portanto “a história da Revolução Francesa apresenta no Brasil de fins do século
XIX um efeito mítico-ideológico enquanto estrutura fechada de perguntas e
respostas, que assimila acontecimentos adversos a um horizonte em que as
perguntas e as respostas já estão dadas.”9
As
correlações estabelecidas por Euclides entre o processo revolucionário francês
e o contexto brasileiro, do final do século XIX, coloca-nos, de pronto, uma
questão: a partir de quais referências historiográficas, literárias e/ou
sociológicas foram construídas tais ilações? Sabemos que a temática da
contra-revolução foi objeto de romances, a exemplo de Le
Dernier Chouan [O Último Chouan]
(1829), escrito por Honoré de Balzac (1799-1850). Por outro lado, Jules
Michelet (1798-1874), em sua Histoire de
la Révolution française [História
da Revolução Francesa] (1847-1853), uma provável leitura do nosso autor,
narrou episódios na Vendéia. Ademais, especialmente em 1889, ano do centenário
da Revolução Francesa e da Proclamação da República, os letrados
brasileiros tiveram, à sua disposição, além da bibliografia existente sobre
o tema, a publicação, em jornais como a Gazeta
de Notícias e A Província de São
Paulo, das narrativas de Taine, Aulard e Michelet sobre a derrubada do Ancien
Régime10.
Contudo, os indícios presentes no conjunto dos textos euclidianos levam-nos a
sugerir que a obra, da qual ele filtrou a metáfora da Vendéia, foi o Quatrevingt-treize.
Conforme argumentaremos, a leitura do trabalho hugoano possibilitou a Euclides a
construção de um modelo narrativo, que aproximou os eventos de Canudos aos da
Vendéia – colocando em movimento uma primeira série de imagens, a qual
condicionou sua recepção inicial do fenômeno sertanejo.
Segundo
Leopoldo Bernucci, Victor Hugo proporcionou a Euclides uma entrada mais
iluminadora ao fenômeno da Vendéia. Assim, colocando de lado a perspectiva
historiográfica de Michelet, descartando a ironia de Tocqueville e mesmo
ignorando as lições de Carlyle, nosso escritor recorreu à terceira parte do Quatrevingt-treize.
Para Euclides, “ler esta versão histórico-literária da Revolução
Francesa importava em encontrar um diapasão que o colocasse entre a nota da
história, como comprovante da veracidade dos fatos e a nota da ficção que,
suprindo os vazios daquela, acrescentava-lhe [...] ‘os sonhos dos
homens’.”11
Ao viajar para a
Bahia, em agosto de 1897, o então correspondente de guerra de O
Estado de São Paulo levava consigo
o projeto literário de uma história acerca do conflito de Canudos,
provisoriamente batizado A Nossa Vendéia.
Entretanto, o contato com os horrores da guerra fez com que Euclides
experimentasse um “choque realidade”, uma “reviravolta de opinião”,
percebendo, enfim, que Canudos, não era a nossa Vendéia. Não obstante a
constatação, in situ,
de quão frágil e inverossímil se apresentava a metáfora aludida, essa
imagem permaneceu ativa em suas referências. Na verdade, no corpo de Os
Sertões, predomina uma segunda série
de imagens, na qual Euclides descartou a tese do complô restaurador, criticou a
farsa da Vendéia nacional, condenou o massacre da população do arraial e
abordou Canudos como uma questão brasileira. Entretanto, os signos e os símiles
da chouannerie – tal qual os
guerrilheiros do Belo Monte – ressurgiam, teimosamente, por entre as fendas do
texto: “Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendéia. O chouan
e as charnecas emparelham-se bem como o jagunço e as caatingas. O mesmo
misticismo, gênese da mesma aspiração política; as mesmas ousadias servidas
pelas mesmas astúcias, e a mesma natureza adversa, permitiram que se lembrasse
aquele recanto lendário da Bretanha [...]”12
Em Os
Sertões, as correlações estabelecidas entre a Vendéia e Canudos são
fortes e tentadoramente persuasivas, mas, também, são esporádicas,
passageiras e, sobretudo, contraditórias. A imagem vendeiana estava marcada por
uma oscilação, que denotava a incerteza ou a dúvida do autor no tocante à
sua aplicação ao caso de brasileiro, ora mostrava a semelhança (símile),
ora mostrava a identidade (metáfora).
“Se Canudos não é a Vendéia em sua forma completa, ao menos se parecerá
com ela.”13
De qualquer modo, a idéia da insurreição contra a Revolução Francesa, vista
como análoga ao movimento sertanejo, é um dos sustentáculos da escrita
euclidiana da história.
As
pistas, até então evidenciadas, sugerem uma relação de simetria
entre o Quatrevingt-treize e Os
Sertões ou, ainda, entre os seus referentes históricos – a Vendéia e a
Guerra de Canudos. Embora nem Hugo nem o seu romance sejam citados diretamente
na obra euclidiana, no interior dessa existem sinais
que tornam plausível a hipótese aqui esboçada. Assim, Euclides não apenas
estabeleceu uma aproximação histórica
sugestiva entre os eventos que se processaram na Bretanha, no final do século
XVIII, e no interior da Bahia, no crepúsculo do século XIX, como também se
apropriou e transfigurou elementos do Quatrevingt-treize
para construir a trama de Os Sertões.
Por exemplo, há uma notável semelhança entre os títulos de capítulos que
integram a terceira parte do romance hugoano, intitulado En
Vendée [“Na Vendéia”], qual sejam, Les
forêts [“As florestas”], Les
hommes [“Os homens”] e Leur
vie en guerre [“A sua vida na guerra”]14
e os blocos nos quais está
segmentado Os Sertões – “A
terra”, “O homem” e “A
luta”. Um rápido exercício de
leitura possibilita interessantes correspondências entre os estilos, os
adjetivos aplicados às principais personagens e o jogo de antíteses característicos
de ambos os escritores.
O
exemplo mais evidente das analogias entre os textos supracitados aparece no
paralelo, traçado por nosso autor, entre o canudense Joaquim Macambira e a
personagem do Imanus. Em Os
Sertões, Macambira foi
caracterizado como “espécie grosseira de Imanus
acobreado e bronco” ou como “espécie de Imanus
decrépito.”15
Aqui, vale ressaltar que o Imanus, símile
aplicado a Macambira, é uma das personagens centrais do romance hugoano, ou
seja, Gouge-le-Bruant, o ardiloso Mata-Azuis,
o inimigo, por excelência, dos exércitos republicanos. Aprisionado nos fios da
trama do Quatrevingt-treize,
Euclides, ao narrar os dias finais da Luta,
cunha apelidos, no mínimo, improváveis, para os novos líderes guerrilheiros: Pedro,
o Invisível, José Gamo e Caco
de Ouro. Assim, com a ambigüidade que marcou a aplicação da metáfora da
Vendéia ao contexto brasileiro, o escritor caboclo ora associa, ora dissocia os
jagunços dos chouans.
Ambos
os trabalhos destacam a cumplicidade entre os guerrilheiros e a natureza. Nas
charnecas ou nas caatingas, os exércitos republicanos enfrentavam inimigos
invisíveis em conluio com as forças vivas da natureza. Nas páginas do Quatrevingt-treize,
fica patente que a Vendéia teve, como auxiliar a floresta. Para Hugo, o aldeão
da Bretanha tinha dois pontos de apoio: o campo, que o alimentava, e o bosque,
que o ocultava.
Na Vendéia, a alma da terra encarnava-se no homem.16
Por sua vez, Euclides destacou as especificidades relacionadas a uma guerra no
sertão, na qual toda a natureza protegia os rebeldes: “[...] as caatingas são
um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo
na luta. Armam-se para o combate; agridem”. A mesma simbiose entre a natureza
e o combatente nativo, presente na Bretanha, poderia ser vislumbrada nas
cercanias de Canudos: “E o jagunço faz-se guerrilheiro-tugue, intangível...
As caatingas não o escondem apenas, amparam-no [...] A força militar decai a
um plano inferior. Batem-no a terra e o homem”.17
Assim, a ênfase sobre os vínculos entre o homem e a terra, um dos tópos
do Romantismo, expressa mais uma das identidades entre Euclides da Cunha e
Victor Hugo.
No
segundo momento dessa comunicação, destacamos a crítica euclidiana à tese da
“nossa Vendéia”, ou seja, ao princípio de repetição da história da
Revolução Francesa em solo brasileiro. Conforme sublinhamos anteriormente, nas
páginas de Os Sertões,
em que pesem todas as suas oscilações, o autor se empenhou em denunciar
como a farsa da Vendéia brasileira resultou em uma tragédia, num “crime da
nacionalidade”, no massacre perpetrado contra a comunidade de Belo Monte. As
considerações supracitadas possibilita-nos aproximar Os
Sertões de uma outra obra, igualmente universal: O
Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Nesse caso, não argumentaremos sobre
uma pretensa herança marxiana em Euclides da Cunha, como procedemos em relação
a Victor Hugo. Sobre o livro de Marx, buscaremos estabelecer pontos de contato
entre o seu enredo e o da nossa “Bíblia da nacionalidade”.
Como
se sabe, O Dezoito Brumário resultou
da reunião de artigos jornalísticos, nos quais Marx analisou a situação política
francesa entre 1848 e 1851. Para o filósofo alemão, o período em questão não
passou de uma grosseira paródia da Revolução de 1789, a ponto de abrir
caminho para a ascensão ao poder de uma personagem medíocre: Luís Bonaparte.
Para Marx, enquanto a Revolução de 1789 moveu-se num continuum
ascendente, a de 1848 seguiu uma linha descendente. O resultado final desse
processo foi uma “paródia de restauração do Império”. Assim, um dos
elementos fundamentais da obra em questão aparece nas relações tecidas entre
o presente e o passado, ou melhor, nas reflexões sobre os usos sociais do
passado por parte dos atores do presente, conforme discutiremos.
Marx
parte de uma observação hegeliana, segundo o qual todos os fatos e as
personagens de grande importância da história universal ocorrem, por assim
dizer, duas vezes. Entretanto, Hegel “esqueceu-se de acrescentar: a primeira
vez como tragédia, a segunda como farsa.”18
Assim, mesmo reconhecendo que os homens fazem a sua própria história, Marx
sublinha que eles não a fazem como querem, sob as circunstâncias de sua
escolha, mas, sim, sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado. “A tradição de todas as gerações mortas oprime
como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhadas em
revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu,
precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram
ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados
os nomes, os gritos de guerras e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa
linguagem emprestada.”19
Precisamente
nesse ponto se enquadra a tese da “Vendéia sertaneja”, propagandeada pelos
jacobinos brasileiros e por amplos segmentos da imprensa nacional, inclusive
pelo próprio articulista de O Estado de
São Paulo. Assim, em tom de autocrítica, Euclides desmontou um elemento
central da teoria conspiratória – o caráter restaurador de Canudos: “Vimos
no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia
contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto
regime, capaz de derruir as instituições nascentes. E Canudos era a Vendéia...”20
A crítica aos órgãos de imprensa, responsáveis diretos pela construção de
muitos dos estereótipos que aprisionaram Canudos nos signos da Vendéia, não
foi menos impiedosa: “[...] a opinião nacional, pela imprensa, extravagava,
balanceando as mais aventurosas hipótese que ainda saltavam dos prelos. O
espantalho da restauração monárquica negrejava, de novo, no horizonte político
atroado de tormentas. A despeito das ordens do dia em que se cantava vitória,
os sertanejos apareciam como os chouans depois
de Fontenay.”21
A crítica euclidiana não poupou sequer os símiles, dos quais também fora
arquiteto, que aproximaram os combatentes da Bretanha aos do sertão baiano,
evidenciando serem partes do mesmo ato burlesco: “Olhavam-se para a história
através de uma ocular invertida: o bronco Pajéu emergia com o fácies
dominador de Cathelineau. João Abade era um Charette de chapéu de couro.”22
A
narrativa de um bombardeio a Canudos, em 14 de julho de 1897, expõe, mediante
cruel ironia, o embuste representado pela filiação da República brasileira
aos ideais da Revolução de 1789: “O dia era propício: uma data de festa
nacional. Logo pela manhã uma salva de 21 tiros de bala a comemorara. Os
matutos broncos foram varridos cedo, – surpreendidos saltando estonteadamente
das redes e dos catres miseráveis – porque pouco mais de cem anos um
grupo de sonhadores falara nos direitos do homem e se batera pela utopia
maravilhosa da fraternidade humana...”23
Acerca desse passagem, Euclides certamente subscreveria o juízo emitido por
Marx sobre a situação francesa às vésperas do Dezoito
Brumário, e o transporia para as cercanias de Canudos:
“[...] só faltava uma coisa para completar o verdadeiro caráter dessa
república: [...] substituir a Liberté,
Égalité, Fraternité,
pelas palavras inequívocas: Infantaria, Cavalaria, Artilharia!”24
Ironicamente,
Marx também utilizou-se da metáfora da Vendéia para analisar o cenário político
da sua época, estabelecendo ilações entre Napoléon
le Petit e o pequeno campesinato, base social de apoio do regime
bonapartista. Segundo Marx, a tradição histórica originou, nos camponeses
franceses, a crença no milagre de que um homem chamado Napoleão restituiria a
eles toda a glória passada. Assim, os Bonaparte representavam não o camponês
revolucionário, mas o conservador. Em suma, “Bonaparte representa não o
esclarecimento, mas a superstição do camponês; não o seu bom senso, mas o
seu preconceito; não o seu futuro, mas o seu passado; não a sua moderna Cevènnes,
mas a sua moderna Vendée.”25
Eis aqui mais uma aproximação entre as obras de Hugo, Marx e Euclides, que
merece ser cuidadosamente avaliada em um próximo trabalho.
Ao
longo dos seus cem anos, Os Sertões foi
alçado à condição de “livro número um” da cultura nacional, o “clássico
brasileiro”, por excelência. Em 1994, referendando esse lugar
privilegiado conferida pelo cânone literário, 15 intelectuais, numa
pesquisa realizada pela revista Veja,
elegeram Os Sertões como a obra mais
representativa da cultura brasileira.26
No ano passado, por ocasião do seu centenário, o sem-número de artigos e
livros publicados, as conferências proferidas, as comunicações apresentadas,
os seminários organizados, as matérias presentes nos mais diversos veículos
da mídia atestaram o processo de consagração da obra e do seu autor. Não
deixa de ser impressionante os fenômenos de persistência e de vitalidade de um
texto como
Os Sertões numa sociedade
como a brasileira, constantemente acusada de ser pouco atenta à história e à
memória nacionais.
A
permanência da obra euclidiana no imaginário nacional faz-nos recordar um
princípio da teoria da historiografia de Benedetto Croce, segundo o qual toda
verdadeira história é história contemporânea. Na perspectiva de discutir a
natureza da verdade em um livro de
história, Croce assinalou que a necessidade prática, subjacente a todo juízo
histórico, confere a toda história o caráter de “história contemporânea”,
porque, por muito e muito distantes que pareçam cronologicamente
os fatos por ela referidos, essa narrativa se relaciona sempre com a
necessidade e a situação presentes, nas quais os fatos propagam suas vibrações.27
A constante via de mão dupla entre o presente e o passado sugerida por Croce
explicaria, em parte, a extraordinária longevidade de Os
Sertões e a recorrência à metáfora de Canudos, tanto como uma das linhas
de força da historiografia brasileira, quanto como fermento ideológico para
movimentos sociais contemporâneos, tais como o MST – que reivindica o legado
político de Antônio Conselheiro, agora reinterpretado sob a máscara de um
revolucionário avant la lettre.
Portanto,
a leitura de Os Sertões é uma
constante advertência sobre o quanto o Brasil ainda é um gigantesco Canudos,
sobre os significados da modernização para os pobres e miseráveis desse país,
sobre a distância que separa o país legal (nossa civilização de empréstimo),
do país real (um incomensurável sertão). Em suma, através da escrita
euclidiana, a História não somente chegou até Canudos, como inseriu no imaginário
da nação, quiçá definitivamente, o massacre perpetrado pelas forças
republicanas contra os habitantes
daquele arraial às margens do Vaza-Barris.
NOTAS
1
Cf. BERNUCCI, Leopoldo M. A
ontologia discursiva de Os Sertões.
História, Ciências,
Saúde – Manguinhos. Rio
de Janeiro, vol. V (Suplemento), p. 52-72,
jul. 1998.
2
BURKE, Peter. A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa.
In: ______ (Org.). A Escrita da História:
novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 336.
3
VENTURA, Roberto. Os Sertões. São
Paulo: Publifolha, 2002. p. 60. (Folha explica).
4
Cf. LEÃO, Antônio Carneiro. Victor
Hugo no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. Ver também
ROUANET, Sérgio Paulo. A Revolução Francesa das Letras. Folha
de São Paulo, São Paulo, 14 de julho de 2002, Mais! p. 13.
5
HARDMAN, Francisco Foot. Brutalidade antiga: sobre história e ruína
em Euclides da Cunha. Estudos Avançados,
São Paulo, v. 10, n. 26, jan.
abr. 1996, p. 293-294.
6
CUNHA, Euclides da. Dia a dia, 6 de abril de 1892. In: ______. Obra
completa: em dois volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1995. p.
656-657.
7
BERNUCCI, L.M. A imitação dos
sentidos. São Paulo: EDUSP, 1995. p. 26-27.
8
CUNHA, E. da. A Nossa Vendéia. In: ______. Diário
de uma expedição. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. p. 51-52.
9
VENTURA, R. “A Nossa Vendéia”: Canudos, o mito da Revolução Francesa
e a formação da identidade cultural no Brasil (1897-1902). Revista
do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo,
n. 31, 1990, p. 130-131.
10
Id. Euclides da Cunha e a República. Estudos
Avançados, São Paulo, v. 10, n.
26, jan. abr. 1996, p. 278.
11
BERNUCCI, L. M. A imitação dos
sentidos, p. 27-28.
12
CUNHA, E. da. Os Sertões:
Campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê, 2001. p. 365-366.
13
BERNUCCI, L.M. A imitação dos
sentidos, p. 26.
14
HUGO, Victor. Quatrevingt-treize.
Paris: Flamarion, 1965. p. 180-192.
15
CUNHA, Os Sertões, p. 313, 648.
16
HUGO, op. cit.,
p. 180-196.
17
CUNHA, Os Sertões, p. 357, 361.
18
MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte.
In: ______ O 18 Brumário e
Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 21.
20
CUNHA, Os Sertões, p. 318.
24
MARX, op. cit., p. 64.
26
Cf. ABREU, Regina. O Enigma de Os
Sertões. Rio de Janeiro: FUNARTE, Rocco, 1998.
27
Cf. CROCE, Benedetto. La
storia come pensiero e come azione.
Bari: Laterza, 1943. p. 5. Ver também MOREIRA, Raimundo Nonato
Pereira. Toda verdadeira história
é história contemporânea: a historiografia como passado-presente na
obra de Benedetto Croce. 1997. 120f. Dissertação (Mestrado em História)
– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 1997.
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