"Os
Sertões", a ópera genial de
um jornalista de ouvidos moucos
-
Enio Squeff - *
As relações
entre Euclides da Cunha e o jornalismo parecem ter a ver com uma questão que
nunca chegou a ser devidamente discutida: a relativa dificuldade com que
Euclides da Cunha se punha como jornalista. Assim como a música é a arte da
rapidez, do tempo consumido pelo corpo, no corpo, o jornalismo tem muito da
aquarela; é rápido, quase instantâneo ao fato que descreve - virtudes que
Euclides da Cunha definitivamente não possuía ; e por ter em grau maiúsculo o
escrúpulo da maturação, da frase pesadamente pensada ou, se quisermos,
construída peça a peça, vírgula a vírgula. Extrapolando um pouco mais: da
mesma forma que Cézanne compunha seus quadros; ou que Wagner pintava suas óperas,
Euclides da Cunha, como que escreve a óleo; não era um aquarelista. E, por
isso também, são raríssimas suas considerações sobre a música.
Sob este aspecto, as poucas informações que se têm sobre as preferências
musicais de Euclides da Cunha, perdem-se ou em informações de alguns de seus
contemporâneos de São José do Rio Pardo; ou da sua correspondência
particular. Anos atrás, quando conversei com um velho morador de São José que
conheceu Euclides, a única coisa que soube sobre suas preferências nesta área,
era de que o escritor o xingara - a ele e a alguns de seus jovens companheiros,
por estarem fazendo uma serenata numa casa perto daquela em que o escritor então
morava. Diante do cavaquinho, da flauta e do violão, Euclides reclamava aos
gritos que não podia trabalhar: o soturno enredo de "Os Sertões"
certamente não combinava com a melodia que escorria pela noite da então
cidadezinha que era São José do Rio Pardo.
Há, no fato, um bom espaço para conjeturas. Supunha-se que para um
homem como Euclides, o drama de Canudos seria digno de uma ópera de Wagner e não
de singelas serenatas entoadas ao luar por jovens românticos. Richard Wagner
foi também escritor; quase todas as suas óperas, ele as escreveu
literariamente, antes de as lançar na partitura. Pode-se alvitrar que se, como
Machado de Assis, Euclides da Cunha apreciasse Wagner (ainda que pelas reduções
ao piano, que era como Machado as conhecia), haveria que acreditar que a música,
sob qualquer forma, não lhe fosse estranha. E que talvez não desdenhasse - se
é que permitiria - que seu livro merecesse uma ópera, como chegou a ser
tentada por um compositor francês radicado no Interior de São Paulo (e de que
se tem somente alguns excertos). A outra questão é essa: será que Euclides
permitiria que o drama que ele relata sobre Canudos se transformasse numa peça
de teatro como fez José Celso Martinez Correia? Não é uma pergunta pacífica:
sabe-se que Victor Hugo não gostou que sua peça "Le Roi s´amuse"
("O Rei se Diverte") fosse colocada em música por Giuseppe Verdi
"("O Rigoleto").
No entanto, Euclides da Cunha menciona a música em sua correspondência.
Numa carta que escreveu, parece-me que a Francisco Escobar - dono da biblioteca
que lhe serviu como subsídio a esse monumento também científico que "Os
Sertões" queria ser- Euclides refere-se à ópera "Sansão e
Dalila", de Saint-Saens que ele assistiu em São Paulo. Na carta Euclides não
se alonga muito: afirma apenas que gostou do espetáculo. Comete um equívoco
quanto à data em que viu a ópera. Ao que fica, Euclides sentia-se em relação
à música, como que obrigado a conceder que por não ser de seu interesse, nem
por isso podia relegá-la.
Mas e o jornalismo? ou melhor, que isso tem a ver com o jornalismo? Em
princípio e por mais que pareça desimportante, na rapidez que a música exige
e na facilidade que o jornalismo pede. E que lhes eram estranhas num e noutro
caso.
A história
é cruel com os homens. Desde que imaginemos que certas personalidades não
chegassem a uma certa idade, e que não passassem à história, só por suas matérias
enviadas ao "O Estado" , Euclides, como jornalista, não ganharia o
futuro. Comparando-se o que Euclides enviou ao jornal paulista com o que se
conhece de outros jornalistas - o autor de "Os Sertões" não é mais
interessante, nem o mais arguto. Ao
contrário do que se exige, digamos, de um ouvido musical, Euclides era pouco
dotado para o texto rápido, para a emoção como corolário da escrita e
vice-versa.. Tivesse Euclides um ouvido musical como o de seu amigo Francisco
Escobar - que era pianista e que mereceu elogios de Ruy Barbosa justamente por
ser pianista - as coisas certamente seriam diferentes. Um episódio ilustra bem
essa idéia.
Certa vez Euclides da Cunha foi incumbido por Júlio Mesquita (o
iniciador da dinastia), a redigir uma notícia sobre um incêndio havido no
centro de São Paulo. Nada de muito grave, apenas um incidente. Naquela época
os incidentes eram notícia, já que não se matava na escala mastodôntica de
hoje em dia. Tendo, porém, os dados que lhe foram passados por um repórter,
Euclides ficou resolutamente intimidado. Não conseguia redigir nada. Laudas e
laudas eram amarrotadas e sistematicamente jogadas no lixo. Conta-se que, passado um certo tempo, Júlio Mesquita,
espantado com a demora, teria cobrado ao escritor o tal texto que, de resto, era
corriqueiro. Foi então que Euclides se saiu com a mais esplêndida das explicações
por suas relutâncias. Não disse que não conseguia escrever notinhas,
e que seu talento não era para o pequeno. Disse isso, mas de outra
forma, isto é, respondendo diretamente a Júlio Mesquita: "O senhor está
me dando uma carabina para caçar passarinho". Imaginar que esse homem
franzino, nervoso, pouco afeito à rapidez, ao improviso e à intimidade pudesse
se extasiar diante da "Fantasia Improviso", de Chopin, ou mesmo da Suíte
Antiga de seu contemporâneo e patrício, Alberto Nepomuceno - amigo e
respeitado por Machado de Assis - é não vê-lo no que o tocava.
À leitura de sua Caderneta de Campo - os apontamentos de Euclides feitos
em Canudos - cuidadosamente
destrinchada por Olympio de Souza Andrade, tudo isso fica muito elucidativo. Na
caderneta. Euclides assoma como o positivista clássico. Toma a nota das condições
atmosféricas do sertão, busca plantas raras, radiografa o solo, contabiliza as
baixas do lado de cá, entre os soldados da República. Afora, porém, a confissão
explícita que faz num momento de depressão "de todo o ideal" que
deixou entre os moribundos nas trincheiras, pouco do que escreverá na caderneta
será literariamente transposto para "Os Sertões". Dos apontamentos
às reportagens até ao livro, há um hiato de quem não se perde no tempo da música,
ou na celeridade da aquarela: o escritor precisava maturar seu texto, trabalhar
com as palavras, nada mais que isso. O réquiem, contudo, lhe sairá
cuidadosamente composto nos anos posteriores em que, aos poucos, o cientista, o
homem da lógica se deixará envolver pela arte. Só que uma arte feita
justamente da tentativa de uma gênese
também científica.
Aqui haveria
de se inquirir sobre as razões que levaram o artista se sobrepor ao cientista.
Uma coisa é certa: Euclides da Cunha sabe, por um instinto inato que a arte será
a única via para alcançar o horror eterno da realidade de Canudos. Ou antes:
ao renunciar à música fácil que certamente lhe sobreviria se fosse um
jornalista dotado da habilidade desses aquarelistas do dia a dia dos jornais,
Euclides nos legaria alguns esboços, brilhantes, quem sabe e importantíssimos
talvez - mas para o jornalismo, não para a história. Ao invés, ele mergulha
numa espécie de sonho impossível: o de basilar a realidade no jogo da razão
científica, para afinal, no que restou de tudo - fazer uma obra de arte
singular, talvez a única na literatura brasileira e portuguesa - a inatingível
Suma em que ciência e arte se mesclam na realização do que Camões pedia às
musas no princípio de “Os Lusíadas” – do engenho do engenheiro,
construindo a arte do poeta e vice-versa. O sonho se tornou impossível, porque
o Euclides cientista acabou arrastado pela vocação incoercível do artista -
do homem que, de repente, se dará conta de que o drama de Canudos exigia-lhe
bem mais que os instrumentos de que se valeu para medir a geografia, percorrer o
tempo meteorológico ou as últimas teorias racistas então em voga. O músico
virtual sobreviveria, sobranceiro, sobre o positivista virtual. O não músico,
o homem infenso à música, comporia, com palavras, a ópera sem sons de uma
epopéia imortal, irredutível à ciência.
Um dia se
discutirá também a música de "Os Sertões".
*Enio
Squeff é artista plástico e jornalista
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