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Euclides e o berço de Os Sertões
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"Os Sertões", a ópera genial de
2003-07-28 10:04:18

 

               

"Os Sertões", a ópera genial de

     um jornalista de ouvidos moucos

                                                            - Enio Squeff - *

As relações entre Euclides da Cunha e o jornalismo parecem ter a ver com uma questão que nunca chegou a ser devidamente discutida: a relativa dificuldade com que Euclides da Cunha se punha como jornalista. Assim como a música é a arte da rapidez, do tempo consumido pelo corpo, no corpo, o jornalismo tem muito da aquarela; é rápido, quase instantâneo ao fato que descreve - virtudes que Euclides da Cunha definitivamente não possuía ; e por ter em grau maiúsculo o escrúpulo da maturação, da frase pesadamente pensada ou, se quisermos, construída peça a peça, vírgula a vírgula. Extrapolando um pouco mais: da mesma forma que Cézanne compunha seus quadros; ou que Wagner pintava suas óperas, Euclides da Cunha, como que escreve a óleo; não era um aquarelista. E, por isso também, são raríssimas suas considerações sobre a música.

            Sob este aspecto, as poucas informações que se têm sobre as preferências musicais de Euclides da Cunha, perdem-se ou em informações de alguns de seus contemporâneos de São José do Rio Pardo; ou da sua correspondência particular. Anos atrás, quando conversei com um velho morador de São José que conheceu Euclides, a única coisa que soube sobre suas preferências nesta área, era de que o escritor o xingara - a ele e a alguns de seus jovens companheiros, por estarem fazendo uma serenata numa casa perto daquela em que o escritor então morava. Diante do cavaquinho, da flauta e do violão, Euclides reclamava aos gritos que não podia trabalhar: o soturno enredo de "Os Sertões" certamente não combinava com a melodia que escorria pela noite da então cidadezinha que era São José do Rio Pardo.

            Há, no fato, um bom espaço para conjeturas. Supunha-se que para um homem como Euclides, o drama de Canudos seria digno de uma ópera de Wagner e não de singelas serenatas entoadas ao luar por jovens românticos. Richard Wagner foi também escritor; quase todas as suas óperas, ele as escreveu literariamente, antes de as lançar na partitura. Pode-se alvitrar que se, como Machado de Assis, Euclides da Cunha apreciasse Wagner (ainda que pelas reduções ao piano, que era como Machado as conhecia), haveria que acreditar que a música, sob qualquer forma, não lhe fosse estranha. E que talvez não desdenhasse - se é que permitiria - que seu livro merecesse uma ópera, como chegou a ser tentada por um compositor francês radicado no Interior de São Paulo (e de que se tem somente alguns excertos). A outra questão é essa: será que Euclides permitiria que o drama que ele relata sobre Canudos se transformasse numa peça de teatro como fez José Celso Martinez Correia? Não é uma pergunta pacífica: sabe-se que Victor Hugo não gostou que sua peça "Le Roi s´amuse" ("O Rei se Diverte") fosse colocada em música por Giuseppe Verdi "("O Rigoleto").

            No entanto, Euclides da Cunha menciona a música em sua correspondência. Numa carta que escreveu, parece-me que a Francisco Escobar - dono da biblioteca que lhe serviu como subsídio a esse monumento também científico que "Os Sertões" queria ser- Euclides refere-se à ópera "Sansão e Dalila", de Saint-Saens que ele assistiu em São Paulo. Na carta Euclides não se alonga muito: afirma apenas que gostou do espetáculo. Comete um equívoco quanto à data em que viu a ópera. Ao que fica, Euclides sentia-se em relação à música, como que obrigado a conceder que por não ser de seu interesse, nem por isso podia relegá-la.

            Mas e o jornalismo? ou melhor, que isso tem a ver com o jornalismo? Em princípio e por mais que pareça desimportante, na rapidez que a música exige e na facilidade que o jornalismo pede. E que lhes eram estranhas num e noutro caso.

A história é cruel com os homens. Desde que imaginemos que certas personalidades não chegassem a uma certa idade, e que não passassem à história, só por suas matérias enviadas ao "O Estado" , Euclides, como jornalista, não ganharia o futuro. Comparando-se o que Euclides enviou ao jornal paulista com o que se conhece de outros jornalistas - o autor de "Os Sertões" não é mais interessante, nem  o mais arguto. Ao contrário do que se exige, digamos, de um ouvido musical, Euclides era pouco dotado para o texto rápido, para a emoção como corolário da escrita e vice-versa.. Tivesse Euclides um ouvido musical como o de seu amigo Francisco Escobar - que era pianista e que mereceu elogios de Ruy Barbosa justamente por ser pianista - as coisas certamente seriam diferentes. Um episódio ilustra bem essa idéia.

            Certa vez Euclides da Cunha foi incumbido por Júlio Mesquita (o iniciador da dinastia), a redigir uma notícia sobre um incêndio havido no centro de São Paulo. Nada de muito grave, apenas um incidente. Naquela época os incidentes eram notícia, já que não se matava na escala mastodôntica de hoje em dia. Tendo, porém, os dados que lhe foram passados por um repórter, Euclides ficou resolutamente intimidado. Não conseguia redigir nada. Laudas e laudas eram amarrotadas e sistematicamente jogadas no lixo.  Conta-se que, passado um certo tempo, Júlio Mesquita, espantado com a demora, teria cobrado ao escritor o tal texto que, de resto, era corriqueiro. Foi então que Euclides se saiu com a mais esplêndida das explicações por suas relutâncias. Não disse que não conseguia escrever notinhas,  e que seu talento não era para o pequeno. Disse isso, mas de outra forma, isto é, respondendo diretamente a Júlio Mesquita: "O senhor está me dando uma carabina para caçar passarinho". Imaginar que esse homem franzino, nervoso, pouco afeito à rapidez, ao improviso e à intimidade pudesse se extasiar diante da "Fantasia Improviso", de Chopin, ou mesmo da Suíte Antiga de seu contemporâneo e patrício, Alberto Nepomuceno - amigo e respeitado por Machado de Assis - é não vê-lo no que o tocava.

            À leitura de sua Caderneta de Campo - os apontamentos de Euclides feitos em Canudos  - cuidadosamente destrinchada por Olympio de Souza Andrade, tudo isso fica muito elucidativo. Na caderneta. Euclides assoma como o positivista clássico. Toma a nota das condições atmosféricas do sertão, busca plantas raras, radiografa o solo, contabiliza as baixas do lado de cá, entre os soldados da República. Afora, porém, a confissão explícita que faz num momento de depressão "de todo o ideal" que deixou entre os moribundos nas trincheiras, pouco do que escreverá na caderneta será literariamente transposto para "Os Sertões". Dos apontamentos às reportagens até ao livro, há um hiato de quem não se perde no tempo da música, ou na celeridade da aquarela: o escritor precisava maturar seu texto, trabalhar com as palavras, nada mais que isso. O réquiem, contudo, lhe sairá cuidadosamente composto nos anos posteriores em que, aos poucos, o cientista, o homem da lógica se deixará envolver pela arte. Só que uma arte feita justamente da tentativa de  uma gênese também científica.

Aqui haveria de se inquirir sobre as razões que levaram o artista se sobrepor ao cientista. Uma coisa é certa: Euclides da Cunha sabe, por um instinto inato que a arte será a única via para alcançar o horror eterno da realidade de Canudos. Ou antes: ao renunciar à música fácil que certamente lhe sobreviria se fosse um jornalista dotado da habilidade desses aquarelistas do dia a dia dos jornais, Euclides nos legaria alguns esboços, brilhantes, quem sabe e importantíssimos talvez - mas para o jornalismo, não para a história. Ao invés, ele mergulha numa espécie de sonho impossível: o de basilar a realidade no jogo da razão científica, para afinal, no que restou de tudo - fazer uma obra de arte singular, talvez a única na literatura brasileira e portuguesa - a inatingível Suma em que ciência e arte se mesclam na realização do que Camões pedia às musas no princípio de “Os Lusíadas” – do engenho do engenheiro, construindo a arte do poeta e vice-versa. O sonho se tornou impossível, porque o Euclides cientista acabou arrastado pela vocação incoercível do artista - do homem que, de repente, se dará conta de que o drama de Canudos exigia-lhe bem mais que os instrumentos de que se valeu para medir a geografia, percorrer o tempo meteorológico ou as últimas teorias racistas então em voga. O músico virtual sobreviveria, sobranceiro, sobre o positivista virtual. O não músico, o homem infenso à música, comporia, com palavras, a ópera sem sons de uma epopéia imortal, irredutível à ciência.

Um dia se discutirá também a música de "Os Sertões".

 

*Enio Squeff é artista plástico e jornalista

 
Enio Squeff
 
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