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Euclides e o berço de Os Sertões
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O que devemos a Euclides da Cunha
2003-08-12 15:25:14

 

    O que devemos a Euclides da Cunha

1. Os sertões: um estilo ousado para a época  sjrp

Linguagem alusiva, reincidência de confrontos, afirmações paradoxais, figuras antitéticas, busca de símiles, luta entre forças contrárias, mescla de gêneros e discursos, interseção da ciência e da arte, tendências e valores universais, criação de retratos símbolos, antropomorfização da natureza dão peculiaridade à obra principal, Os sertões, de Euclides da Cunha. Rompendo fronteiras entre as diversas esferas do saber humano, confere ao livro caráter multidisciplinar: autores e textos são incessantemente citados e submetidos à análise, numa recorrência à geologia, história, geografia, sociologia, etnografia, folclore, botânica, zoologia, física, antropologia, química, meteorologia, psiquiatria.

A obra, cientificamente fundamentada, leva Euclides da Cunha a amparar-se num quadro teórico, de cunho determinista, onde busca as luzes necessárias ao esclarecimento e interpretação dos fatos narrados. Contudo, deixando-se conduzir pela eficácia de suas intuições ostensivas, o autor libera-se do teoricismo alienígena, inapto para explicar a realidade sertaneja e, a partir dela, da própria nação. A descrença na ciência gera-lhe incertezas, suscita uma interpretação de caráter empiriocriticista e faz surgir o multiperspectivismo: ora temos o ponto de vista do ideólogo pessimista, guiando-se pelos fatalismos, preceitos e preconceitos do século XIX, ora do observador crítico, lançando mão de um “desfiar de conjeturas” e pragmatismos. Conforme a voz narrativa de Os sertões, esse desfiar conjetural “tem o valor único de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questão que duplamente nos interessa, pelo seu traço superior na ciência, e pelo seu significado mais íntimo no envolver o destino de extenso trato do nosso país” (Cunha, 1985, p.117).

2.  Ciência e Arte em Os sertões

Apologista do enlace da ciência e da arte, da vinculação essencial do cientista e do artista, em conferências, discursos, artigos, prefácios, cartas, defende a tese de que a ciência sem a arte e a arte sem ciência não se legitimam. A José Veríssimo, escreve que “o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é a tendência mais elevada do pensamento humano”. A Araripe Júnior, aconselha-o a “aviventar com fantasia criadora um dos mil incidentes de nossa história”. Assim, Euclides deu forma literária e conferiu grandeza a uma nova interpretação do Brasil. Conforme pressuposto teórico defendido por Nelson Werneck Sodré (1969, p.2), “entre as manifestações da vida social, nenhuma traduz mais fortemente os seus traços do que as artísticas e, entre elas, as literárias”. A arte não é só manifestação, mas necessidade e direito universais do homem. Se hoje as teorias científicas que fundamentaram a obra-prima de Euclides da Cunha perderam sua atualidade, as razões de suas permanência e importância devem ser buscadas no seu caráter informativo e inovador, nas suas virtudes e valores superiores, capazes de justificar sua consagração no universo das supremas criações artísticas.

Formações rochosas encurvam-se em “desmedido anfiteatro”; nos sertões da Bahia, “fragmentos das rochas soterradas... mal relembram, na altura, o antiqüíssimo Himalaia Brasileiro”, mas, em alguns trechos, grandes blocos superpostos recordam “muramentos desmantelados de coliseus em ruínas”; o rio Itapicuru, “recurvo em meandros”, alenta vegetação vivaz; a serra de Monte Santo afigura-se “cortina de muralha monumental”; alguns pontos dão a ilusão de “majestosas ruinarias de castelos”; restos de fauna fazem dos “caldeirões enormes ossuários de mastodontes, cheios de vértebras desconjuntadas e partidas”; no topo do morro da Favela, o observador tinha diante de si “uma elipse majestosa de montanhas” e “tinha a impressão alentadora de se achar sobre platô elevadíssimo... embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d’água, divagando, serpeantes...”. O rio Vaza-Barris, “torcendo-se em meandros”, atravessa “planície rugada”; os ventos chegam ao sertão “turbilhonando revoltos”; nas cercanias de Canudos, o cenário natural lembrava “anfiteatro irregular”; a flora dava a aparência de um “jardim em abandono”; de pé, um soldado morto há três meses, “sobranceando a vegetação franzina... braços largamente abertos, rosto voltado para os céus ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes... estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos... Era um aparelho revelando... a secura do ares....”. “Os cavalos mortos... semelhavam espécimes empalhados, de museus...”. Entre eles, estava o que fora abatido juntamente com o cavaleiro, o alferes Wanderley; “quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto de pedra... com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes...” (Cunha, 1985, passim).

As cenas envolvendo higrômetros e mumificação de corpos, além do valor estético, expressam a aridez do clima, a intensidade do calor, a hostilidade do meio, a brutalidade da luta e encerram uma visão crítica e informativa dos fatos narrados. O expedicionário morto é representativo de muitos outros que terão destinos semelhantes, o mesmo dá-se com o cavalo.   

A serra solitária de Piquaraçá, nas proximidades do arraial de Canudos, norteava os sertanistas no século XVII. Descoberta no século passado pelo missionário Apolônio de Todi, “maior apóstolo do Norte”, impressionou-o com seu o aspecto, semelhante ao “calvário de Jerusalém”. Desde então passou a chamar-se Monte Santo. Tido como “lugar lendário”, “eldorado apetecido”, “fez-se templo religioso, monumento erguido pela natureza e pela fé, mais alto que as mais altas catedrais da terra”. A população sertaneja dará continuidade à obra iniciada pelo missionário, construindo vinte e cinco capelas, que constituem a via sacra de três quilômetros de comprimento, “por onde têm passado multidões sem conto em um século de romarias”. Esta estrada em degraus lembra uma estrada para os céus. “Amparada por muros capeados; calçada, em certos trechos, tendo, noutros, como leito, a rocha viva talhada em milhares de degraus... aquela estrada branca... é um prodígio de engenharia rude e audaciosa” (Cunha, 1985, p.203). O observador que a sobe tem perspectivas de “grandezas soberanas”. “Esta visão é empolgante ao longe”. A aproximação mostra o mesmo abandono de outros arraiais e coloca o visitante diante de um “povoado triste e de todo decadente... traindo os desalentos de uma raça que morre, desconhecida à História, entre paredes de taipa”. Euclides refere-se a Monte Santo nos capítulos I e II de A terra, no capítulo I de Travessia do Cambaio e no capítulo VI de Quarta expedição, quando seus últimos moradores deixaram-no “vazio, desprovido de tudo”. Os soldados viram, “à distância de uma légua... a capela branca, arremessada na altura... a projetar-se no firmamento azul, parecia enviar-lhes, de longe, um aceno carinhoso e amigo (Cunha, 1985, p.468 .

No vale do rio Vaza-Barris, o observador depara-se, segundo citação trasladada de documento da época, pelo escritor (Cunha, 1985, p. 299), com “serras de pedra sobreposta... com tal perfeição que parecem obras de arte”. Sob a ótica do narrador, a Serra de Cambaio é um “monumento rude”, “uma montanha em ruínas. Surge disforme, rachando sob o periódico embate de tormentas súbitas e insolações intensas...” No último capítulo de Travessia do Cambaio, após a morte de Moreira César, o “Corta-cabeças”, como era pejorativamente chamado, a caatinga parecia festejar o acontecido: de “mirrada e nua” ficara colorida com  o “vermelho forte das divisas”, com os “restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas...” os “brilhos vivos  das chapas dos talins  e estribos oscilantes”. O quadro completara-se com um pormenor assombroso: os novos expedicionários depararam-se com o corpo do coronel Tamarindo, em situação semelhante ao alferes Wanderley.

No capítulo VI de Quarta expedição, o escritor volta a referir-se, com grandeza artística, à extravagante florescência da vegetação, revelando ostensiva sensibilidade poética e a capacidade criadora do homem de letras:

Perto do Rancho do Vigário, por requinte de lúgubre ironia os jagunços cobriram de floração fantástica a flora tolhiça e decídua... restos de divisas vermelhas, trapos de dólmãs azuis e brancos, molambos de calças carmesins ou negras, e pedaços de mantas rubras - como... se desabotoasse toda em flores sanguinolentas...  (Cunha, 1985, p. 464).   

Dentre os arraiais sertanejos, um se destaca e se diferencia dos demais: Trata-se de Bom Jesus da Lapa. “É a Meca dos sertanejos, ostentando-se na serra de grimpas altaneiras, que ressoam como sinos”; nos tetos pendiam “candelabros de estalactites” e nos corredores eram vistos “velhos ossuários diluvianos”; numa gruta semelhante à nave de um de “estranho templo”, alvo de “romarias piedosas”, o visitante observa “um traço sombrio de religiosidade singular”: “imagens e relíquias entre facas e espingardas”. O jagunço, ao adentrá-lo com sua arma, curva-se genuflexo sobre o chão e reza.

No capítulo IV de Quarta expedição, o arraial de Canudos é abordado como “evocação”: recordava “tapera babilônica”, paisagem bíblica”; “cidades do Evangelho”, “recanto da Iduméia”, esterilizada para sempre por condenação profética; ao entardecer, o toque da Ave-Maria ressoava em “ondulações sonoras”, propagavam pela “quietude dos ermos”, “refluindo nas montanhas longínquas”; “as vozes suavíssimas” dos sertanejos espalhavam-se em silêncio com o estouro dos shrapnels; as badaladas do sino eram “vibrações do alarma”.

 A natureza estilizada é vista como projeções das ações humanas: luta pela sobrevivência e defesa, aparelhando-se para reagir contra o regime bruto. “As plantas mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda”; “as forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície”; “o Sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater”; o solo é “áspero e duro”; os ventos chegam “turbilhonando revoltos”; o sertão é, para o matuto, o “imenso lar sem teto”; “a flora agressiva abre-se ao sertanejo um seio carinhoso e amigo”; “a caatinga afoga o viajante”; “abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o na trama espinescente... repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças”, porém, “esconde, protege e ampara” o sertanejo;  ” unem caatinga e homem unem-se por “relações antigas . Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados” (Cunha, 1985, p.281). Na plenitude do estio, quando “o sertão de todo se impropriou à vida”, os cereus “esguios e silentes, aprumando os caules circulares... na simetria impecável de enormes candelabros”, abotoam-se de “grandes frutos vermelhos”. A flora, “embaralhada em esgalhos”, reflete o martírio da terra, “brutalmente golpeada” pelos elementos variáveis; os “cajueiros anões mostram... raízes que se entranham a surpreendente profundura”; arvores sem folhas, “galhos estorcidos e secos”, “revoltos”, “entrecruzados” refletem a “tortura” da “flora agonizante”; algumas espécies, incapazes de uma defesa individual e de reação vitoriosa, agem coletivamente, isto é, unem-se, disciplinam-se, transmudando-se em “plantas sociais”. É o caso das “catingueiras”, dos “alecrins-dos-tabuleiros” e dos “canudos-de-pito” que, “intimamente abraçados”, formando “falanges intransponíveis”, aprisionam o inimigo, como armadilha e arrebatam-lhe as armas; “quipás reptantes e humílimos” aparecem trançados, com “espinhos dilaceradores” e armam-se em ciladas contra o forasteiro. As “palmatórias-do-inferno”, “diabolicamente eriçadas de espinhos... orladas de flores rutilantes, quebrando alacremente a tristeza solene das paisagens...”; as vagens das leguminosas semelham “mola de aço”; arbustos esparsos ou aglomerados protegem-se da seca, “inteiramente soterrados”; a “caatanduva, vegetação agonizante, doente e informe, exausta, num espasmo doloroso, caída sobre seu terrível leito de espinhos”; as “rapsálides serpeantes... flexuosas, como víboras verdes pelos ramos”, fogem do solo bárbaro para a copa da palmeira; as nopáleas e cactos... mais resistentes que as demais espécies... [adaptaram-se] aos regimes bárbaros... o ambiente em fogo dos desertos parece estimular melhor a circulação da seiva...” (Cunha, 1985, passim).

A descrição de um vegetal, em A terra, permite ao narrador criar um signo indicador da barbárie que caracterizou a luta: trata-se dos chamados “cabeças-de-frade”:

 deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes, convergindo-lhes no vértice superior formado por uma flor única, intensamente rubra. Aparecem, de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica. (Cunha, 1985, p.124)

O signo é representativo da degola, prática a que eram submetidos os prisioneiros de guerra canudenses, pela força oficial. Antes do ato macabro o matuto rebelde via-se obrigado a dar “viva à República”. 

A terra, mitificada, liga-se ao sertanejo por elos invisíveis, faz dele sua imagem e semelhança: “O martírio do sertanejo é o reflexo de tortura maior, mais ampla”. “Nasce do martírio secular da Terra”. Para enfrentá-lo, caboclo e flora unem-se na luta. O sertanejo, “tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o sol”, faz-se “resignado forte, esperto e prático” nos “períodos sucessivos de devastações e misérias”; a terra “atrai-o, chama-o para o seio fecundo; encanta-o pelo aspecto formosíssimo; arrebata-o, afinal”. Ao referir-se às funções das florestas como agente tático, de defensiva e ofensiva, Euclides da Cunha aponta analiticamente os fatores naturais do sertão, favoráveis ao sertanejo. Assim, conforme a perspectiva do narrador: “as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu... As caatingas não o escondem apenas, amparam-no (Cunha, 1985, p.277-8). Os soldados ao saírem das refregas bélicas, traziam as “vestes em tiras, as armas estrondadas ou perdidas”. Outras vezes, sofriam “golpes de gilvazes” e retornavam “claudicando estropiados, mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes” ou dos espinhos. “Os mandacurus despidos e tristes” envolvem “colinas nuas”, onde são encontradas “lagoas mortas”, que “denotam o esforço dos filhos do sertão”. “No pino dos verões, um pé de macambira é para o matuto sequioso um copo de água cristalina e pura”; o haxixe das “juremas fornece “inestimável beberagem, que revigora os caboclos das caminhadas longas”.

A agressividade da flora não impede uma transfiguração em “mutação fantástica”, pois, com a chegada da chuva, “o viajante, pasmo, não vê mais o deserto”: “os vales secos fazem-se rios”; “as amarílis atapetam o solo”; “a vegetação recama de flores”; “os mulungos à borda das cacimbas cheias, estadeiam a púrpura das largas flores vermelhas”; as quixabeiras cobrem-se de folhas pequeninas e frutos que lembram contas de ônix; “as umburanas perfumam os ares”; “os umbuzeiros... irradiantes em círculo... árvores sagradas do sertão... semelham grandes calotas esféricas”. Suas “flores alvíssimas... são a nota mais feliz do cenário deslumbrante”. Desafiando as secas mais duradouras, amparam, alimentam, mitigam a sede do homem do sertão; “os icozeiros... ondeiam, móveis, avivando a paisagem”. A “fauna resistente” das caatingas participa dessa apoteose e exuberância, quer nas baixadas úmidas, nos tabuleiros altos. Nos ares ocorre uma “palpitação de asas”, um “tumultuar de desencontrados vôos”, “enquanto feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeiro... tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga predileta. O sertão transmuda-se em “um vale fértil”, “sem um pomar vastíssimo dono”, “um paraíso”; a natureza “compraz-se em um jogo de antíteses” (Cunha, 1985, passim).

O arraial de Canudos, “tapera monstruosa”, é descrito, explorado e analisado com riqueza de detalhes, sob dois olhares que se entrecruzam e se complementam: do artista e do homem de idéias avançadas. Assim, o narrador movimenta-se no espaço e no tempo, no mundo da arte e do conhecimento. Canudos é “lugar sagrado, cingido de montanhas”, cuja topografia lembrava ao sertanejo “o primeiro degrau, amplíssimo e alto, para os céus”, nascia velho. “A urbs monstruosa” surgia já feito em ruínas. Seu solo parecia haver sido sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto. As casas, feitas de pau-a-pique, eram “paródia grosseira da antiga morada romana... lembravam as choupanas dos gauleses de César... O arraial parecia disposto para a guerra... era uma tapera dentro de uma furna... estereotipava o facies dúbio dos primeiros agrupamentos bárbaros... Canudos era o cosmos... transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal... o último pouso na travessia de um deserto..., o quartel das guardas pretorianas dos capangas... imunda ante-sala do Paraíso, pobre peristilo dos céus, devia ser assim mesmo - repugnante, aterrador, horrendo.... Na história sombria das cidades batidas, o humílimo vilarejo ia surgir com um traço de trágica originalidade” (Cunha, 1985, passim).

4.  Singularidades de seu estilo

As afirmações contraditórias, os confrontos, os paradoxos constituem algumas marcas do estilo do grande texto de Euclides da Cunha. Redundantes na obra, suscitam o surgimento de antíteses e oxímoros e conferem-lhe dramaticidade, contribuem para a animização sistemática das forças naturais. e colide o efeito traumático, resultante da dicotomia - afirmação e negação: os canudenses carregam “bacamartes homicidas com as contas dos rosários”; “o Exército sente na própria força a própria fraqueza”; o soldado “minotauro, impotente e possante”; a expedição [de Artur Oscar] devia marchar corretíssima. Corretíssima e fragílima”; a vida no sertão “normalizava-se na anormalidade”; o marechal Bittencourt é “impassível dentro da impaciência”; Cansação “era um parêntese feliz naquele desolamento”; O arraial de Canudos, “intacto - era fragílimo; feito escombros – formidável. Rendia-se para vencer”.

O oxímoro, “Hércules-Quasímodo”, empregado numa alusão ao sertanejo, faz-se acompanhar de um verdadeiro jogo antitético, que se apresenta de variadas formas: “paraíso tenebroso”; “sol escuro”; tumulto sem ruído”; “coro na mudez”; “carga paralisada”; “profecia retrospectiva”; “medo glorioso”; “construtores de ruínas”; “ordem no próprio desvario”;o sertão é um vale fértil, um pomar vastíssimo”; os sertões do Norte são “barbaramente estéreis, maravilhosamente exuberantes”; os soldados sentiam na própria força a própria fraqueza”, entre outras. Em Moreira César “entrechocavam-se, antinômicas, tendências monstruosas e qualidades superiores”: “extrema dedicação esvaía-se no extremo ódio”, “calma soberana em desabrimentos repentinos”; bravura cavalheiresca na barbaridade revoltante”. “Era tenaz, paciente, dedicado, leal, impávido, cruel, vingativo, ambicioso” (Cunha, 1985, passim).

Ao descrever dialeticamente o matuto, deixa-nos o enunciado, O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, consagrado pela crítica e registrado na memória do leitor. Trabalhando com opostos, afirma: “A sua aparência, entretanto... revela o contrário... É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos... É o homem permanentemente fatigado” (Cunha, 1985, p.179). Porém, basta ocorrência de qualquer incidente para que assuma o “aspecto dominador de guerreiro antigo”, de “um titã acobreado e potente”. O vaqueiro, cuja existência é marcada de “horas felizes e horas cruéis, de abastanças e de misérias”, é caracterizado mediante uma intermitência de contrastes, uma “intercadência impressionadora entre extremas manifestações de força e agilidade e longos intervalos de apatia”. A transmudação é justificada: “atravessa a vida entre ciladas”, refletindonestas aparências, que se contrabatem, a própria natureza que o rodeia”.

5.  Canudos como representação do Brasil autêntico

O episódio histórico de Canudos é o motivador, a fonte de inspiração, a razão inicial de sua composição. Euclides da Cunha analisa o arraial canudense como síntese do Brasil genuíno, cosmo paradigmático das contradições inerentes à nossa formação histórica, ou seja, o sintoma do drama maior, resultante da nossa herança sociocultural, do divórcio do poder central e da sociedade periférica, do abandono. O arraial de Canudos, tomado como paradigma do Brasil interior, é mostrado como desconhecido e “homizio”, “tapera miserável, fora de nossos mapas, perdida no deserto, aparecendo, indecifrável, como uma página truncada e sem número de nossas tradições” (Cunha, 1985, p.374). Insulado, no país que o não conhece, em luta aberta com o meio... nômade ou mal fixo à terra”, o sertanejo é o retrato da população abandonada e esquecida que trabalhava na penumbra para fazer do Brasil uma nação. O escritor atribui à campanha de Canudos “a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa... um refluxo para o passado”. O sertanejo é analisado na sua trajetória histórica – “Insulado, no país que o não conhece, em luta aberta com o meio... nômade ou mal fixo à terra”. Ao escritor a importância do individual é relativa à representatividade do coletivo. Assim cria painéis, retrato de personagens-símbolo, espelhos do meio em que vivem: Antônio Conselheiro é um “documento raro de atavismo”, “representante naturaal”, “resumo abreviado” dos aspectos predominantes do universo social que o criou. “A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja

 

6.  Em Os sertões - uma nova interpretação do Brasil

A Euclides da Cunha devemos o florescimento de um olhar crítico sobre o Brasil, liberto dos ditames da cultura oficial. Chamado “livro vingador”, Os sertões é mais que um testemunho da sociedade da época em que foi escrito. É uma síntese peculiar, fundamentada no conhecimento, na valorização do homem e da terra e na necessidade de afirmação da consciência nacional. Conforme Berthold Zilly (2001, p.287), pesquisador euclidiano e tradutor do livro para o alemão, Os sertões “é uma espécie de súmula, enciclopédia e quintessência dos traços mais característicos” do país e tem como tema subjacente a construção de um Estado nacional, impossível sem a incorporação das esquecidas áreas interioranas. As denúncias corajosas e o caráter acusatório configuram um libelo. O sentido principal desse libelo está não só na revelação do sertanejo para o Brasil que o não conhece, mas na  sua valorização, no seu reconhecimento como agente da história.

Cremos que o aspecto essencial do novo olhar sobre o país é a percepção da “separação radical entre o Sul e o Norte”, com suas histórias distintas e dissonantes entre si. Esta tese encontra respaldo e ganha autenticidade na própria obra. O narrador afirma que os expedicionários ao se adentrarem no sertão perceberam:

 Discordância absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de telha do interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba deploravelmente a unidade nacional. Viam-se em terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra língua... Invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa.  Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria. Tudo aquilo era uma ficção geográfica. O que ia fazer-se  eram o  que haviam feito as tropas anteriores - uma invasão (Cunha, 1985, p. 496).

A grande glória de Euclides da Cunha foi colocar em evidência a idéia que ficou registrada na consciência da intelectualidade brasileira: a divisão da comunidade nacional em duas sociedades antagônicas e dessincronizadas e que suscitam duas visões divorciadas do Brasil. A primeira é representada pelas áreas urbanas e litoral, representativa do Brasil cosmopolita, de caráter universalista, em constante transformação, favorecido pelo aparecimento de novas formas de produção, pela divisão do trabalho, pelo florescimento de uma classe média reivindicadora e participativa. É o Brasil voltado para o exterior e receptivo às suas influências, aos ideais de progresso e civilização. Esses ideais, conforme a concepção das elites sociais da época, significavam pura e incondicional assimilação de usos, costumes e idéias vigentes na Europa. Estas influências têm sua gênese na ideologia colonialista. Cerca de quarenta anos depois, Sérgio Buarque de Holanda (2002, p. 34) afirmaria:

Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”.

A segunda visão é voltada para a “terra ignota” do sertão e sua gente, “aquela rude sociedade, incompreendida e olvidada”. No dizer acusatório do narrador, constituía a face real, a face que Euclides não só mostrou, mas trouxe para a história e para a literatura. Esta face era a essência de nossa nacionalidade. A face representativa do Brasil genuíno, interior, agrário, colonial, “retrógrado”, distanciado do progresso e bloqueado pelos latifúndios. Formado historicamente a partir do modelo de organização agrária monocultora e escravista e sofrendo nossa “proverbial indiferença com as cousas desta terra” e nossa inércia cômoda”. A análise, as críticas reiteradas do Brasil esquecido e do Brasil abandonado e tudo que decorre desse esquecimento e abandono são lições e ensinamentos, que encontramos em Os sertões. São, sobretudo, valores que conferem grandeza e importância à grande obra de Euclides da Cunha.

Analisamos Os sertões como obra fundadora, que transcende as desfigurações históricas, as deficiências de interpretações vinculadas a modelos externos enganosos, por sua importância como iniciadora de uma interpretação do Brasil, que tem o mérito de trazer para a história e para a literatura o sertanejo, respectivamente, como agente e protagonista.

Bibliografia

CUNHA, Euclides da.  Os sertões. Ed. crítica de Walnice Nogueira Galvão. SP: Brasiliense, 1985.

__ . Canudos: diário de uma Expedição. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1939.__ . Caderneta de Campo. São Paulo: Cultrix, 1975.

__ . Obra Completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1966.  Vs. 1-2

__ . Epistolário. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1966. V.2, p.601-628..

ROMERO, Sílvio.  História da literatura brasileira.SP: José Olímpio Editora, 1954. Vs. 1 e 5, p.1777.

SEVCENKO, Nicolau.  Literatura como missão. 2. Ed. São Paulo: 1985

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969..ZILLY,  Berthold. “A guerra como painel e espetáculo: A história encenada em Os sertões, de Euclides da Cunha”. In: Colheita Tropical. (Org): Antônio Martins Filho e Teoberto Landim. Fortaleza: Casa de José de Alencar/Programa Editorial, 2000.  

 
Adonira Batista Pereira Beretta
 
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