O que devemos a Euclides da Cunha
1.
Os sertões:
um
estilo ousado para a época sjrp
Linguagem alusiva,
reincidência de confrontos, afirmações paradoxais, figuras antitéticas,
busca de símiles, luta entre forças contrárias, mescla de gêneros e
discursos, interseção da ciência e da arte, tendências e valores universais,
criação de retratos símbolos, antropomorfização da natureza dão
peculiaridade à obra principal, Os sertões,
de Euclides da Cunha. Rompendo fronteiras entre as diversas esferas do saber
humano, confere ao livro caráter multidisciplinar: autores e textos são
incessantemente citados e submetidos à análise, numa recorrência à geologia,
história, geografia, sociologia, etnografia, folclore, botânica, zoologia, física,
antropologia, química, meteorologia, psiquiatria.
A obra, cientificamente fundamentada, leva Euclides da Cunha
a amparar-se num quadro teórico, de cunho determinista, onde busca as luzes
necessárias ao esclarecimento e interpretação dos fatos narrados.
Contudo, deixando-se conduzir pela eficácia de suas intuições
ostensivas, o autor libera-se do teoricismo alienígena, inapto para explicar a
realidade sertaneja e, a partir dela, da própria nação. A descrença na ciência
gera-lhe incertezas, suscita uma interpretação de caráter empiriocriticista e
faz surgir o multiperspectivismo: ora temos o ponto de vista do ideólogo
pessimista, guiando-se pelos fatalismos, preceitos e preconceitos do século
XIX, ora do observador crítico, lançando mão de um “desfiar
de conjeturas” e pragmatismos. Conforme a voz narrativa de Os
sertões, esse desfiar conjetural “tem
o valor único de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questão
que duplamente nos interessa, pelo seu traço superior na ciência, e pelo seu
significado mais íntimo no envolver o destino de extenso trato do nosso país”
(Cunha, 1985, p.117).
2.
Ciência e Arte em Os sertões
Apologista do enlace da ciência e da arte, da vinculação essencial do
cientista e do artista, em conferências, discursos, artigos, prefácios,
cartas, defende a tese de que a ciência sem a arte e a arte sem ciência não
se legitimam. A José Veríssimo, escreve que “o
consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, é a tendência
mais elevada do pensamento humano”. A Araripe Júnior, aconselha-o a “aviventar
com fantasia criadora um dos mil incidentes de nossa história”. Assim,
Euclides deu forma literária e conferiu grandeza a uma nova interpretação do
Brasil. Conforme pressuposto teórico
defendido por Nelson Werneck Sodré (1969, p.2), “entre
as manifestações da vida social, nenhuma traduz mais fortemente os seus traços
do que as artísticas e, entre elas, as literárias”. A arte não é só
manifestação, mas necessidade e direito universais do homem. Se hoje as
teorias científicas que fundamentaram a obra-prima de Euclides da Cunha
perderam sua atualidade, as razões de suas permanência e importância devem
ser buscadas no seu caráter informativo e inovador, nas suas virtudes e valores
superiores, capazes de justificar sua consagração no universo das
supremas criações artísticas.
Formações
rochosas encurvam-se em “desmedido
anfiteatro”; nos sertões da Bahia, “fragmentos
das rochas soterradas... mal relembram, na altura, o antiqüíssimo Himalaia
Brasileiro”, mas, em alguns trechos, grandes blocos superpostos recordam
“muramentos desmantelados de coliseus em
ruínas”; o rio Itapicuru, “recurvo
em meandros”, alenta vegetação vivaz; a serra de Monte Santo afigura-se
“cortina de muralha monumental”;
alguns pontos dão a ilusão de “majestosas
ruinarias de castelos”; restos de fauna fazem dos “caldeirões enormes ossuários de mastodontes, cheios de vértebras
desconjuntadas e partidas”; no topo do morro da Favela, o observador tinha
diante de si “uma elipse majestosa de
montanhas” e “tinha a impressão
alentadora de se achar sobre platô elevadíssimo... embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d’água, divagando,
serpeantes...”. O rio Vaza-Barris,
“torcendo-se em meandros”, atravessa “planície
rugada”; os ventos chegam ao sertão “turbilhonando
revoltos”; nas cercanias de Canudos, o cenário natural lembrava “anfiteatro
irregular”; a flora dava a aparência de um “jardim
em abandono”; de pé, um soldado morto há três meses, “sobranceando
a vegetação franzina... braços
largamente abertos, rosto voltado para os céus ardentes, para os luares claros,
para as estrelas fulgurantes... estava intacto. Murchara apenas. Mumificara
conservando os traços fisionômicos... Era um aparelho revelando... a secura do
ares....”. “Os cavalos mortos...
semelhavam espécimes empalhados, de museus...”. Entre eles, estava o que
fora abatido juntamente com o cavaleiro, o alferes Wanderley; “quase
em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto de pedra... com todas as
aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do
nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes...” (Cunha, 1985,
passim).
As cenas
envolvendo higrômetros e mumificação de corpos, além do valor estético,
expressam a aridez do clima, a intensidade do calor, a hostilidade do meio, a
brutalidade da luta e encerram uma visão crítica e informativa dos fatos
narrados. O expedicionário morto é representativo de muitos outros que terão
destinos semelhantes, o mesmo dá-se com o cavalo.
A serra
solitária de Piquaraçá, nas
proximidades do arraial de Canudos, norteava os sertanistas no século XVII.
Descoberta no século passado pelo missionário Apolônio de Todi, “maior apóstolo do Norte”, impressionou-o com seu o aspecto,
semelhante ao “calvário de Jerusalém”.
Desde então passou a chamar-se Monte Santo. Tido como “lugar lendário”, “eldorado
apetecido”, “fez-se templo
religioso, monumento erguido pela natureza e pela fé, mais alto que as mais
altas catedrais da terra”. A população sertaneja dará continuidade à
obra iniciada pelo missionário, construindo vinte e cinco capelas, que
constituem a via sacra de três quilômetros de comprimento, “por onde têm passado multidões sem conto em um século de romarias”.
Esta estrada em degraus lembra uma estrada para os céus. “Amparada por muros capeados; calçada, em certos trechos, tendo,
noutros, como leito, a rocha viva talhada em milhares de degraus... aquela
estrada branca... é um prodígio de engenharia rude e audaciosa” (Cunha,
1985, p.203). O observador que a sobe tem perspectivas de “grandezas soberanas”. “Esta
visão é empolgante ao longe”. A aproximação mostra o mesmo abandono de
outros arraiais e coloca o visitante diante de um “povoado triste e de todo decadente... traindo os desalentos de uma raça
que morre, desconhecida à História, entre paredes de taipa”. Euclides
refere-se a Monte Santo nos capítulos I e II de A terra, no capítulo I de
Travessia do Cambaio e no capítulo VI
de Quarta expedição, quando seus últimos
moradores deixaram-no “vazio, desprovido
de tudo”. Os soldados viram, “à distância de uma légua... a capela branca, arremessada na altura...
a projetar-se no firmamento azul, parecia enviar-lhes, de longe, um aceno
carinhoso e amigo” (Cunha, 1985,
p.468 .
No vale do
rio Vaza-Barris, o observador depara-se, segundo citação trasladada de
documento da época, pelo escritor (Cunha, 1985, p. 299), com “serras
de pedra sobreposta... com tal perfeição que parecem obras de arte”. Sob
a ótica do narrador, a Serra de Cambaio é um “monumento
rude”, “uma montanha em ruínas.
Surge disforme, rachando sob o periódico embate de tormentas súbitas e insolações
intensas...” No último capítulo de Travessia
do Cambaio, após a morte de Moreira César, o “Corta-cabeças”,
como era pejorativamente chamado, a caatinga parecia festejar o acontecido: de
“mirrada e nua” ficara colorida
com o “vermelho
forte das divisas”, com os “restos
de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras
rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas...” os “brilhos vivos das chapas
dos talins e estribos oscilantes”.
O quadro completara-se com um pormenor assombroso: os novos expedicionários
depararam-se com o corpo do coronel Tamarindo, em situação semelhante ao
alferes Wanderley.
No capítulo
VI de Quarta expedição, o escritor
volta a referir-se, com grandeza artística, à extravagante florescência da
vegetação, revelando ostensiva sensibilidade poética e a capacidade criadora
do homem de letras:
Perto
do Rancho do Vigário, por requinte de lúgubre ironia os jagunços cobriram de
floração fantástica a flora tolhiça e decídua... restos de divisas
vermelhas, trapos de dólmãs azuis e brancos, molambos de calças carmesins ou
negras, e pedaços de mantas rubras - como... se desabotoasse toda em flores
sanguinolentas... (Cunha, 1985,
p. 464).
Dentre os
arraiais sertanejos, um se destaca e se diferencia dos demais: Trata-se de Bom
Jesus da Lapa. “É a Meca dos
sertanejos, ostentando-se na serra de grimpas altaneiras, que ressoam como sinos”;
nos tetos pendiam “candelabros de
estalactites” e nos corredores eram vistos “velhos
ossuários diluvianos”; numa gruta semelhante à nave de um de “estranho templo”, alvo de “romarias
piedosas”, o visitante observa “um
traço sombrio de religiosidade singular”: “imagens e relíquias entre facas e espingardas”. O jagunço, ao
adentrá-lo com sua arma, curva-se genuflexo sobre o chão e reza.
No capítulo
IV de Quarta expedição, o arraial de
Canudos é abordado como “evocação”:
recordava “tapera babilônica”,
“paisagem bíblica”; “cidades
do Evangelho”, “recanto da Iduméia”,
esterilizada para sempre por condenação profética; ao entardecer, o toque da
Ave-Maria ressoava em “ondulações
sonoras”, propagavam pela “quietude
dos ermos”, “refluindo nas
montanhas longínquas”; “as vozes
suavíssimas” dos sertanejos espalhavam-se em silêncio com o estouro dos shrapnels;
as badaladas do sino eram “vibrações
do alarma”.
A
natureza estilizada é vista como projeções das ações humanas: luta pela
sobrevivência e defesa, aparelhando-se para reagir contra o regime bruto. “As
plantas mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os
estigmas desta batalha surda”; “as
forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície”;
“o Sol é o inimigo que é forçoso
evitar, iludir ou combater”; o solo é “áspero
e duro”; os ventos chegam “turbilhonando
revoltos”; o sertão é, para o matuto, o “imenso lar sem teto”; “a
flora agressiva abre-se ao sertanejo um seio carinhoso e amigo”; “a
caatinga afoga o viajante”; “abrevia-lhe
o olhar; agride-o e estonteia-o na trama espinescente... repulsa-o com as folhas
urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças”, porém,
“esconde, protege e ampara” o sertanejo; ” unem caatinga e homem unem-se por “relações antigas . Todas
aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram
juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades,
lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados” (Cunha,
1985, p.281). Na plenitude do estio, quando “o
sertão de todo se impropriou à vida”, os cereus “esguios e silentes, aprumando os caules circulares... na simetria impecável
de enormes candelabros”, abotoam-se de “grandes frutos vermelhos”. A flora, “embaralhada em esgalhos”, reflete o martírio da terra, “brutalmente
golpeada” pelos elementos variáveis; os “cajueiros
anões mostram... raízes que se
entranham a surpreendente profundura”; arvores sem folhas, “galhos
estorcidos e secos”, “revoltos”,
“entrecruzados” refletem a “tortura”
da “flora agonizante”; algumas espécies, incapazes de uma defesa
individual e de reação vitoriosa, agem coletivamente, isto é, unem-se,
disciplinam-se, transmudando-se em “plantas
sociais”. É o caso das “catingueiras”,
dos “alecrins-dos-tabuleiros” e
dos “canudos-de-pito” que, “intimamente
abraçados”, formando “falanges
intransponíveis”, aprisionam o inimigo, como armadilha e arrebatam-lhe as
armas; “quipás reptantes e humílimos” aparecem trançados, com “espinhos
dilaceradores” e armam-se em ciladas contra o forasteiro. As “palmatórias-do-inferno”,
“diabolicamente eriçadas de espinhos...
orladas de flores rutilantes, quebrando
alacremente a tristeza solene das paisagens...”; as vagens das leguminosas
semelham “mola de aço”; arbustos esparsos ou aglomerados protegem-se da seca,
“inteiramente soterrados”; a “caatanduva,
vegetação agonizante, doente e informe, exausta, num espasmo doloroso,
caída sobre seu terrível leito de espinhos”; as “rapsálides serpeantes...
flexuosas, como víboras verdes pelos ramos”, fogem do solo bárbaro para
a copa da palmeira; as nopáleas e cactos...
mais resistentes que as demais espécies...
[adaptaram-se] aos regimes bárbaros... o
ambiente em fogo dos desertos parece estimular melhor a circulação da seiva...”
(Cunha, 1985, passim).
A
descrição de um vegetal, em A terra,
permite ao narrador criar um signo indicador da barbárie que
caracterizou a luta: trata-se dos
chamados “cabeças-de-frade”:
deselegantes
e monstruosos melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes,
convergindo-lhes no vértice superior formado por uma flor única, intensamente
rubra. Aparecem, de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no
tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem singular de
cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica.
(Cunha, 1985, p.124)
O
signo é representativo da degola, prática a que eram submetidos os
prisioneiros de guerra canudenses, pela força oficial. Antes do ato macabro o
matuto rebelde via-se obrigado a dar “viva à República”.
A
terra, mitificada, liga-se ao sertanejo por elos invisíveis, faz dele sua
imagem e semelhança: “O martírio do sertanejo é o reflexo de tortura maior, mais ampla”.
“Nasce do martírio secular da Terra”.
Para enfrentá-lo, caboclo e flora unem-se na luta. O sertanejo, “tendo
sobre a cabeça, como ameaça perene, o sol”, faz-se “resignado
forte, esperto e prático” nos “períodos
sucessivos de devastações e misérias”; a terra “atrai-o, chama-o para o seio
fecundo; encanta-o pelo aspecto formosíssimo; arrebata-o, afinal”. Ao
referir-se às funções das florestas como agente tático, de defensiva e
ofensiva, Euclides da Cunha aponta analiticamente os fatores naturais do sertão,
favoráveis ao sertanejo. Assim, conforme a perspectiva do narrador: “as
caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também
de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis,
ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali
nasceu e cresceu... As caatingas não o escondem apenas, amparam-no (Cunha,
1985, p.277-8). Os soldados ao saírem das refregas bélicas, traziam as “vestes
em tiras, as armas estrondadas ou perdidas”. Outras vezes, sofriam “golpes
de gilvazes” e retornavam “claudicando
estropiados, mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes” ou dos
espinhos. “Os mandacurus despidos e
tristes” envolvem “colinas nuas”,
onde são encontradas “lagoas mortas”,
que “denotam o esforço dos filhos do
sertão”. “No pino dos verões, um
pé de macambira é para o matuto sequioso um copo de água cristalina e pura”;
o haxixe das “juremas” fornece “inestimável
beberagem, que revigora os caboclos das caminhadas longas”.
A agressividade da flora não
impede uma transfiguração em “mutação
fantástica”, pois, com a chegada da chuva, “o viajante, pasmo, não vê mais o deserto”: “os vales secos fazem-se rios”; “as
amarílis atapetam o solo”; “a
vegetação recama de flores”; “os
mulungos à borda das cacimbas cheias, estadeiam a púrpura das largas flores
vermelhas”; as quixabeiras
cobrem-se de folhas pequeninas e frutos que lembram contas
de ônix; “as umburanas perfumam os ares”; “os
umbuzeiros... irradiantes em círculo... árvores
sagradas do sertão... “semelham
grandes calotas esféricas”. Suas “flores
alvíssimas... são a nota mais feliz do cenário deslumbrante”. Desafiando as
secas mais duradouras, amparam, alimentam, mitigam a sede do homem do sertão;
“os icozeiros... ondeiam, móveis, avivando a paisagem”. A “fauna
resistente” das caatingas participa dessa apoteose e exuberância, quer
nas baixadas úmidas, nos tabuleiros altos. Nos ares ocorre uma “palpitação
de asas”, um “tumultuar de
desencontrados vôos”, “enquanto
feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeiro... tangendo a boiada farta, e
entoando a cantiga predileta. O sertão transmuda-se em “um
vale fértil”, “sem um pomar vastíssimo
dono”, “um paraíso”; a
natureza “compraz-se em um jogo de antíteses”
(Cunha, 1985, passim).
O arraial de Canudos, “tapera
monstruosa”, é descrito, explorado e analisado com riqueza de detalhes,
sob dois olhares que se entrecruzam e se complementam: do artista e do homem de
idéias avançadas. Assim, o narrador movimenta-se no espaço e no tempo, no
mundo da arte e do conhecimento. Canudos é “lugar
sagrado, cingido de montanhas”, cuja topografia lembrava ao sertanejo “o
primeiro degrau, amplíssimo e alto, para os céus”, nascia velho. “A
urbs monstruosa” surgia já feito em ruínas. Seu solo parecia haver sido
sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto. As casas, feitas de
pau-a-pique, eram “paródia grosseira da
antiga morada romana... lembravam as choupanas dos gauleses de César... O
arraial parecia disposto para a guerra... era uma tapera dentro de uma furna...
estereotipava o facies dúbio dos primeiros agrupamentos bárbaros... Canudos
era o cosmos... transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala
terminal... o último pouso na travessia de um deserto..., o quartel das guardas
pretorianas dos capangas... imunda ante-sala do Paraíso, pobre peristilo dos céus,
devia ser assim mesmo - repugnante, aterrador, horrendo...”.
“Na história sombria das cidades
batidas, o humílimo vilarejo ia surgir com um traço de trágica originalidade”
(Cunha, 1985, passim).
4.
Singularidades de seu estilo
As afirmações contraditórias,
os confrontos, os paradoxos constituem algumas marcas do estilo do grande texto
de Euclides da Cunha. Redundantes na obra, suscitam o surgimento de antíteses e
oxímoros e conferem-lhe dramaticidade, contribuem para a animização sistemática
das forças naturais. e colide o efeito traumático, resultante da dicotomia -
afirmação e negação: os canudenses carregam “bacamartes homicidas com as contas dos rosários”; “o
Exército sente na própria força a própria
fraqueza”; o soldado “minotauro, impotente e possante”; “a expedição [de
Artur Oscar] devia marchar corretíssima.
Corretíssima e fragílima”; a vida no sertão “normalizava-se na anormalidade”; o marechal Bittencourt é “impassível
dentro da impaciência”; Cansação “era
um parêntese feliz naquele desolamento”; O arraial de Canudos, “intacto
- era fragílimo; feito escombros – formidável. Rendia-se para vencer”.
O oxímoro, “Hércules-Quasímodo”,
empregado numa alusão ao sertanejo, faz-se acompanhar de um verdadeiro jogo
antitético, que se apresenta de variadas formas: “paraíso
tenebroso”; “sol escuro”;
“tumulto sem ruído”; “coro
na mudez”; “carga paralisada”;
“profecia retrospectiva”; “medo
glorioso”; “construtores de ruínas”;
“ordem no próprio desvario”; “o
sertão é um vale fértil, um pomar vastíssimo”; os sertões do Norte são
“barbaramente estéreis,
maravilhosamente exuberantes”; os soldados sentiam
“na própria força a própria
fraqueza”, entre outras. Em Moreira César “entrechocavam-se,
antinômicas, tendências monstruosas e qualidades superiores”: “extrema
dedicação esvaía-se no extremo ódio”, “calma
soberana em desabrimentos repentinos”;
“bravura cavalheiresca na
barbaridade revoltante”. “Era
tenaz, paciente, dedicado, leal, impávido, cruel, vingativo, ambicioso”
(Cunha, 1985, passim).
Ao descrever
dialeticamente o matuto, deixa-nos o enunciado, “O sertanejo é, antes de
tudo, um forte”, consagrado pela crítica e registrado na memória do
leitor. Trabalhando com opostos, afirma: “A
sua aparência, entretanto... revela o contrário... É desgracioso, desengonçado,
torto. Hércules-Quasímodo reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos...
É o homem permanentemente fatigado” (Cunha, 1985, p.179). Porém, basta ocorrência de qualquer incidente para que assuma o
“aspecto dominador de guerreiro
antigo”, de “um titã acobreado e potente”. O vaqueiro, cuja existência
é marcada de “horas felizes e horas cruéis,
de abastanças e de misérias”, é caracterizado mediante uma intermitência
de contrastes, uma “intercadência impressionadora entre extremas manifestações
de força e agilidade e longos intervalos de apatia”. A transmudação é
justificada: “atravessa a vida entre
ciladas”, refletindo “nestas aparências, que se contrabatem, a própria natureza que o rodeia”.
5.
Canudos como representação do Brasil autêntico
O
episódio histórico de Canudos é o motivador, a fonte de inspiração, a razão
inicial de sua composição. Euclides da Cunha analisa o arraial
canudense como síntese do Brasil genuíno, cosmo paradigmático das contradições
inerentes à nossa formação histórica, ou seja, o sintoma do drama maior,
resultante da nossa herança sociocultural, do divórcio do poder central e da
sociedade periférica, do abandono. O arraial de Canudos, tomado como paradigma do Brasil
interior, é mostrado como desconhecido e “homizio”, “tapera miserável, fora de nossos mapas, perdida no deserto, aparecendo,
indecifrável, como uma página truncada e sem número de nossas tradições”
(Cunha, 1985, p.374). Insulado,
no país que o não conhece, em luta aberta com o meio... nômade ou mal fixo à
terra”, o
sertanejo é o retrato da população abandonada e esquecida que trabalhava na
penumbra para fazer do Brasil uma nação. O escritor atribui à campanha de
Canudos “a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa... um
refluxo para o passado”. O sertanejo é analisado na
sua trajetória histórica – “Insulado,
no país que o não conhece, em luta aberta com o meio... nômade ou mal fixo à
terra”. Ao escritor
a importância do individual é relativa à representatividade do coletivo.
Assim cria painéis, retrato de personagens-símbolo, espelhos do meio em que
vivem: Antônio Conselheiro é um “documento
raro de atavismo”, “representante
naturaal”, “resumo abreviado”
dos aspectos predominantes do universo social que o criou. “A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja
“
6.
Em Os sertões - uma nova
interpretação do Brasil
A Euclides da Cunha devemos o florescimento de um olhar crítico sobre o
Brasil, liberto dos ditames da cultura oficial. Chamado “livro vingador”, Os
sertões é mais que um testemunho da sociedade da época em que foi
escrito. É uma síntese peculiar, fundamentada no conhecimento, na valorização do homem e
da terra e na necessidade de afirmação da consciência nacional. Conforme
Berthold Zilly (2001, p.287), pesquisador euclidiano e tradutor do livro para o
alemão, Os sertões “é uma espécie
de súmula, enciclopédia e quintessência dos traços mais característicos”
do país e tem como tema subjacente a construção de um Estado nacional, impossível
sem a incorporação das esquecidas áreas interioranas. As denúncias corajosas
e o caráter acusatório configuram um libelo. O sentido principal desse libelo
está não só na revelação do sertanejo para o Brasil que o não conhece, mas
na sua valorização, no seu
reconhecimento como agente da história.
Cremos que o
aspecto essencial do novo olhar sobre o país é a percepção da “separação
radical entre o Sul e o Norte”, com suas histórias distintas e dissonantes
entre si. Esta tese encontra respaldo e ganha autenticidade na própria obra. O
narrador afirma que os expedicionários ao se adentrarem no sertão perceberam:
“Discordância
absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de telha do interior,
que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba
deploravelmente a unidade nacional. Viam-se em terra estranha. Outros hábitos.
Outros quadros. Outra gente. Outra língua... Invadia-os o sentimento exato de
seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se
fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica;
criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria. Tudo aquilo era
uma ficção geográfica. O que ia fazer-se
eram o que haviam feito as tropas anteriores - uma invasão (Cunha,
1985, p. 496).
A grande glória
de Euclides da Cunha foi colocar em evidência a idéia que ficou registrada na
consciência da intelectualidade brasileira: a divisão da comunidade nacional
em duas sociedades antagônicas e dessincronizadas e que suscitam duas visões
divorciadas do Brasil. A primeira é representada pelas áreas urbanas e
litoral, representativa do Brasil cosmopolita, de caráter universalista, em
constante transformação, favorecido pelo aparecimento de novas formas de produção,
pela divisão do trabalho, pelo florescimento de uma classe média
reivindicadora e participativa. É o Brasil voltado para o exterior e receptivo
às suas influências, aos ideais de progresso e civilização. Esses ideais,
conforme a concepção das elites sociais da época, significavam pura e
incondicional assimilação de usos, costumes e idéias vigentes na Europa.
Estas influências têm sua gênese na ideologia colonialista. Cerca de quarenta
anos depois, Sérgio Buarque de Holanda (2002, p. 34) afirmaria:
“Trazendo de países distantes
nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando
em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda
hoje uns desterrados em nossa terra”.
A segunda visão é voltada
para a “terra ignota” do sertão e
sua gente, “aquela rude sociedade,
incompreendida e olvidada”. No dizer acusatório do narrador, constituía
a face real, a face que Euclides não só mostrou, mas trouxe para a história e
para a literatura. Esta face era a essência de nossa nacionalidade. A face
representativa do Brasil genuíno, interior, agrário, colonial, “retrógrado”,
distanciado do progresso e bloqueado pelos latifúndios. Formado historicamente
a partir do modelo de organização agrária monocultora e escravista e sofrendo
nossa “proverbial indiferença com as
cousas desta terra” e nossa “inércia
cômoda”. A análise, as críticas reiteradas do Brasil esquecido e do
Brasil abandonado e tudo que decorre desse esquecimento e abandono são lições
e ensinamentos, que encontramos em Os sertões. São, sobretudo, valores que conferem grandeza e importância
à grande obra de Euclides da Cunha.
Analisamos Os sertões como
obra fundadora, que transcende as desfigurações históricas, as deficiências
de interpretações vinculadas a modelos externos enganosos, por sua importância
como iniciadora de uma interpretação do Brasil, que tem o mérito de trazer
para a história e para a literatura o sertanejo, respectivamente, como agente e
protagonista.
Bibliografia
CUNHA, Euclides da.
Os sertões. Ed. crítica de Walnice Nogueira Galvão. SP:
Brasiliense, 1985.
__ . Canudos: diário de uma
Expedição. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1939.__ . Caderneta de Campo.
São Paulo: Cultrix, 1975.
__ . Obra Completa. Rio
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__ . Epistolário. In: Obra
Completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1966. V.2, p.601-628..
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