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Euclides e o berço de Os Sertões
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A GEOPOÉTICA DE EUCLIDES DA CUNHA
2003-09-04 12:02:54

 

A GEOPOÉTICA DE EUCLIDES DA CUNHA

 Ronaldes de Melo e Souza

  Geopoéticasignifica poética da terra. A expressão inédita corresponde à originalidadeda ficção narrativa de Euclides da Cunha no contexto literário nacional einternacional. A tese que se pretende demonstrar é que o autor de OsSertões  e de Um Paraíso Perdidose notabiliza como um dos maiores poetas da prosa de ficção no vasto domínioda literatura ocidental. O estatuto calculado do vigor da inspiração artísticae do rigor científico da reflexão, que decorre do projeto euclidiano do consórcioda ciência e da arte, se patentiza na elaboração de duas poéticas da terra.A primeira subage como princípio articulador da narrativa poética do sertão eda selva. A segunda se compagina nos vários escritos teóricos de Euclides daCunha acerca da vinculação essencial do cientista e do artista. Em conferências,discursos, artigos, crônicas, prefácios e cartas, o escritor argumentaexaustivamente a tese de que a ciência sem arte e a arte sem ciência não selegitimam.

     A singularidade do estilo euclidiano se evidencia quando se verifica queo subjetivismo estético e o objetivismo científico são igualmente excluídosde seus textos ficcionais e não-ficcionais. A poeticidade preconizada pelamundividência euclidiana não se restringe ao domínio disciplinar da estética,mas se distende no amplo diálogo interdisciplinar com os discursos da filosofiae da ciência. Mais do que intertextual, o seu dialogismo se caracteriza comointerdiscursivo. No intercâmbio dialógico das várias vozes provenientes dosdiferentes ramos do saber, o seu discurso se nos apresenta multiperspectivado.Ele descarta sempre o monólogo do especialista em favor do diálogo com osdiversos protagonistas do drama gnosiológico.

      O fenômeno investigado através de múltiplas perspectivas discursivasse revela mais sutilmente estruturado do que o objeto composto pelas leis clássicasdo entendimento. A inflexão inercial do espírito imobilizado na visãomonocular da realidade não se compatibiliza com o projeto multidisciplinar deEuclides da Cunha. O multiperspectivismo interdiscursivo corresponde à irredutívelcomplexidade dos fenômenos observados. Na visão amplificada pelainterdiscursividade teórica da poesia, da filosofia e da ciência, areinvindicação cartesiana das noções simples se revela simplória. Asimplicidade resulta sempre de um processo de simplificação. De acordo com a poética generalizada das manifestações culturais, Euclides utilizaprocedimentos ficcionais em diversos relatórios técnicos. Não se trata daornamentação retórica do texto científico, mas da mediação dupla de visõescomplementares de um mesmo fenômeno. No discurso mesclado da ciência e daarte, objetivismo e subjetivismo são confutados pela dialética daintersubjetividade.

      Observador itinerante, pintor da natureza, encenador teatral,investigador dialético, refletor dramático e historiador irônico são denominações que propomos para viabilizar a compreensão das seis máscarasnarrativas de Os Sertões. O livro,plural desde o título, solicita um enfoque transdisciplinar. A mascarada donarrador multiperspectivado desautoriza os estudos norteados por um único ponto de vistaliterário ou científico. No multiperspectivismo narrativo do sertão e daselva, o ponto de vista do narrador varia constantemente. A inobservância damutação das perspectivas narrativas euclidianas compromete o sentido e oalcance exegético da bibliografia crítica. Muito do que se atribui ainda hojeao pretenso positivismo de Euclides da Cunha decorre da tendência em abstrairdo contexto multiperspectivado da obra uma sentença isolada. Na vocaçãoenunciativa de Euclides, uma assertiva não subsiste, senão porque coexiste comoutras que a dialetizam. Não há nada fixo no universo euclidiano. Tudo serepresenta em formação e transformação. No prólogo dramático de Os Sertões, a própria terra se manifesta em gestação.

     As máscaras narrativas de Os Sertõese de Um Paraíso Perdido  convergemna constituição do narrador intimizado com a potência telúrica do sertão eda selva. Euclides da Cunha se representa dramaticamente como geopoeta do sertãoe da selva. Geopoeta, porque realiza a mimesisda excessividade da terra na diversidade excessiva das múltiplas máscarasnarrativas. O ponto de vista do narrador telúrico se delimita como instânciaencarnada no horizonte móvel do tempo. No movimento espacial, temporal enocional das máscaras do narrador itinerante, o ponto de vista euclidiano nadatem a ver com o ponto de vista fixo do narrador viajante. Na excursão espacialdos litorais do Sul rumo à região sertaneja e selvagem do Norte, o narradoritinerante se encaminha em direção ao interior do Brasil e, simultaneamente,realiza uma incursão temporal. A viagem de descobrimento da interioridade telúricase desdobra na viagem de retorno ao tempo das origens da terra. Na ficçãonarrativa de Euclides da Cunha, narrar significa invencionar a nação.

     A visão telúrica que singulariza a narrativa euclidiana transcende ouniverso habitual da poética, atingindo a culminância de uma conversão mitopoéticado mundo representado. Um Paraíso Perdidose representa como ato cosmogônico em devir. A terra amazônica seapresenta em gestação, os rios se afanam na transformação dos leitos provisórios,a paisagem se mobiliza em ritmo de transe, viajando pelas planuras verdes. Aoriginalidade da narrativa euclidiana do sertão e da selva consiste em concebera terra como protagonista do drama que se representa. Ao representar a terracomo a vasta metamorfose de um organismo vivo, o narrador euclidiano suplanta atradição hegemônica do conhecimento ocidental-europeu, que se define naantiga separação do espírito e da natureza e na moderna dicotomia do sujeitoe do objeto. Por isso mesmo, o sentido de sua obra não se depreende no contextotradicional do divórcio da razão e da imaginação. Na cultura brasileira, arevolução geopoética de Euclides da Cunha não encontra ressonância, senãoem dois poetas posteriores, um da prosa e outro do verso, Guimarães Rosa eManoel de Barros.

      No âmbito restrito da ficção narrativa, a revolução euclidianaconsiste em adotar a mediação complexa dos eventos narrados. O narradorprivilegiado, que é o narrador concentrado no ângulo fixo de sua mundividênciaestática, desaparece do universo ficcional. A situação narrativa quesingulariza o estilo ficcional euclidiano se denomina personativa, porque onarrador representa um outro eu, e não a si mesmo. Na dupla mediação donarrador e da persona  ou máscaranarrativa, o estilo narrativo de Euclides ostenta a sua originalidade. Mesmoinserido no amplo domínio literário que perpetua a revolução flaubertiana daficção narrativa, o estilo euclidiano preserva a sua singularidade. O narradorflaubertiano se despersonaliza para que os eventos se representem refletidos naexperiência emocional dos personagens. Na ficção euclidiana, o narrador e ospersonagens refletores são um e o mesmo eu que se torna pluripessoal atravésda adoção das várias máscaras narrativas. 

     Na alternância da 3ª e da 1ª pessoa gramatical de Os Sertões, o narrador preserva a sua situação personativa,convertendo-se em personagem de si mesmo. Depois da terra, que protagoniza odrama do sertão e da selva, o ator mais importante é o próprio escritordesdobrado na auto-consciência crítica do narrador e na experiência passionaldos refletores, que são as máscaras narrativas. Na parceria narrativa donarrador responsável pelo estatuto calculado da mascarada sublime e dosrefletores que representam o impacto emocional dos eventos, o estilo euclidianode narrar se notabiliza como interação dialógica do mesmo e do outro. Naperfeita sintonia com o drama da terra, o narrador consorciado com o refletorrealiza o diálogo narrativo por excelência, em que possível se tornatransmitir noções racionais e, ao mesmo tempo, emoções passionais. Aoriginalidade do estilo narrativo euclidiano reside no intercâmbio dialógicoda consciência da razão exercida pelo narrador e da experiência da imaginaçãodramatizada nos refletores ou máscaras narrativas.    

     

 

 

O Narrador Itinerante em OsSertões

 

     O início de Os Sertões  constituio prólogo dramático (Cunha, 2000,17-31) da dupla mediação narrativa, quesingulariza o estatuto poético do narrador euclidiano. A descrição doplanalto central do Brasil se converte em narração, precisamente porqueresulta da interação de dois mediadores. O primeiro é o narrador, quemobiliza a consciência a fim de assegurar o travejamento estrutural da obra. Osegundo é o observador que, fascinado pelo que vê, transmite ao leitor oimpacto emocional de sua experiência imediatamente vivida. Associado aoobservador, o narrador transcende a dicotomia cartesiana do sujeito e do objeto,assumindo a instância intersubjetiva do conhecimento. Na parceria narrativa dadupla mediação, narram-se os efeitos emotivos que os eventos suscitam napercepção do observador, e não os eventos em si mesmos. O planalto central doBrasil, por notável exemplo, é narrado através da visão emocionada doobservador itinerante, que o contorna nos litorais do Sul, seguindo para oNorte. No trajeto do litoral conhecido ao sertão desconhecido, o narrador encalçaos passos do observador duplamente subjugado pelo deslumbramento suscitado pelasmajestosas perspectivas da paisagem litorânea e pelo susto provocado pelos cenáriosda natureza atormentada do sertão adusto. Mediado pelo intercâmbio dialógicodo narrador e do observador itinerante, o prólogo dramático antecipa o tema, omotivo e o tom dominante da narrativa poética de OsSertões . Ao tema do sertão como Terraignota, a que se reporta o motivo da viagem exploratória, corresponde o tomdramático do narrador que representa as vicissitudes do observador que setransforma em consonância com a diversidade dos fenômenos observados.

     A função do narrador consiste em acompanhar o observador itinerante,demarcando-lhe os passos em cada etapa da travessia e registrando a variaçãoperceptiva decorrente do deslocamento espacial. Desde o início do prólogo dramático,o narrador se arma para se haver com o perspectivismo da percepção do viajanteque contorna o planalto central, seguindo para o norte. A paisagem se nosapresenta na forma perceptiva do observador, numa exposição mutante que traduza passagem contínua de uma percepção para outra. A sucessão das percepçõesnão resulta da sobreposição impressionista de fotogramas descontínuos. Pelocontrário, revela o perspectivismo fenomenológico do ato perceptivo,patenteado no processo de condução ordenada de uma percepção para outra. Apercepção, já de si, representa uma via que se percorre.A arte do narrador representa a pluralidade das percepções do observador,mobilizando o rigor do arquiteto das situações narrativas a fim de que amultiplicidade perceptiva se apresente de modo ordenado:

     "De sorte que quem ocontorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a princípioo traço contínuo e dominante das montanhas (...) depois, no segmento de orlamarítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoralrevolto (...) em seguida, transposto o 15º paralelo, a atenuação de todos osacidentes (...). Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico, vêem-se,estirados para o ocidente e norte, extensos chapadões" (17-8).

     O ponto de vista doobservador itinerante se desloca de um ângulo visual para outro em conformidadecom o movimento e a posição do corpo que, situado na perspectiva panorâmicado alto, dinamiza o fenômeno observado. A imobilidade do planalto centraladquire movimento devido ao observador que o contorna. Na grandiosa abertura doprólogo dramático, a movimentação do planalto, que se representa nodinamismo dos verbos "desce", "desata-se","descamba", decorre da configuração metonímica da percepção. Oefeito, a mobilização do planalto, assume o lugar da causa, o observadoritinerante. A visão do observador não ostenta o ponto de vista fixo da ciência,porque permanece fiel à terra e ao corpo que a percorre. Encarnado no tempo eno espaço telúrico e somático, o ponto de vista do observador itinerante époético, e não científico, porque representa, como Virgílio, o carátermetonímico da percepção. Na Eneida,o poeta narra o efeito metonímico da percepção dos marinheiros que contemplamo movimento das terras e cidades enquanto os navios se distanciam do porto:"as naus velejam, e as terras e cidades vão recuando" (provehimurportu, terraeque urbespue recedunt (Aen.3.72). Na perspectiva do observador itinerante, a consciência da ilusão óticanão elimina a ilusão da consciência. Ocorre o mesmo fenômeno quando a percepçãosurpreende o movimento diário do aclínio e declínio do sol. Somente ocientista que, como Copérnico, substitui o observador telúrico por umespectador celestial, pode denunciar o ilusionismo perceptivo da rotação solar(Copernicus, 1978, 16). No entanto, apesar da ciência copernicana, que adota umponto de vista extra-terrestre, o sol continua a percorrer os céus para todosos homens, sábios ou leigos, que o contemplam da perspectiva inerente àcarnadura concreta do corpo e da terra.

     A poeticidade do observador itinerante se amplia, revelando a plenitudede sua extraordinária força dramática, quando se nota o duplo movimento desua travessia. O primeiro, progressivo, percorre o espaço telúrico, e osegundo, regressivo, realiza uma viagem no tempo, um retorno à origem da Terraignota. No final majestoso do prólogo dramático, a incursão temporal doobservador, induzida pela "sugestão empolgante" de "um sonho degeólogo", se consuma na admirável visão da terra americana emergindo daságuas primordiais:

     "Vai-se de boa sombra comum naturalista algo romântico imaginando-se que por ali turbilhonaram, largotempo, na idade terciária, as vagas e as correntes. (...)

      Há também a presunção derivada desituação anterior, exposta em dados positivos. As pesquisas de FrederickHartt, de fato, estabelecem, nas terras circunjacentes a Paulo Afonso, a existênciade inegáveis bacias cretáceas; e sendo os fósseis que as definem idênticosaos encontrados no Peru e México, e contemporâneos do que Agassiz descobriu noPanamá - todos estes elementos se acolchetam no deduzir-se que vasto oceanocretáceo rolou as suas ondas sobre as terras fronteiras das duas Américas,ligando o Atlântico ao Pacífico. (...)

      Porque se operava lentamente umasublevação geral: as massas graníticas alteavam-se ao norte arrastando oconjunto geral das terras numa rotação vagarosa em torno de um eixo, imaginadopor Emanuel Liais entre os chapadões de Barbacena e a Bolívia.Simultaneamente, ao abrir-se a época terciária, se realiza o fato prodigiosodo alevantamento dos Andes; novas terras afloram nas águas; tranca-se, numextremo, o canal amazônico, transmudando-se no maior dos rios, ampliam-se osarquipélagos esparsos, e ganglionam-se em istmos, e fundem-se; arredondam-se,maiores, os contornos das costas; e integra-se, lentamente, a América" (29-30).

     O prólogo dramático se inicia com uma excursão no espaço e terminacom uma incursão no tempo. Entre o início e o fim, o duplo movimento da viagemno espaço e no tempo determina a interpenetração dinâmica da perspectivaespacial e temporal, que condiciona a visão do observador itinerante.Compreende-se, portanto, o motivo por que o observador que contorna o planaltocentral sempre representa a forma topográfica dramaticamente mobilizada pelaforça da formação e transformação geológica. Inicialmente, vislumbra,"no segmento de orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo,um aparelho litoral revolto", "escombros do conflito secular que alise trava entre os mares e a terra" (17). Em seguida, ao se deparar, nasimediações da Bahia, com as serras do Grão-Mogol, do Cabral e da Mata daCorda, observa "os sulcos de erosão que as retalham" em "cortesgeológicos expressivos" e visualiza "o antiqüíssimo Himalaiabrasileiro, desbarrancado, em desintegração", os "muramentosdesmantelados de ciclópicos coliseus em ruínas" e as "aduelasdesconformes, restos da monstruosa abóbada da antiga cordilheira,desabada..." (20-21). Finalmente, ao divisar "o aspecto estranho"da Terra ignota e focalizar as "disformes pirâmides de blocos" dos morros doLopes e do Lajedo, "o observador tem a impressão de seguir torneando atruncadura malgradada da borda de um planalto" (23-24).

     O horizonte geológico que norteia a visão do observador itinerante époético, e não científico. O historiador e geólogo José Carlos B. deSantana demonstra que o diálogo intertextual que a narrativa euclidiana mantémcom os cientistas exibe uma complexidade extraordinária, principalmente porqueos conceitos científicos são absorvidos e transformados em imagens literárias.Em "Geologia e metáforas geológicas" (Santana, 1998, 117-131) sãoapontadas duas generalizações problemáticas, uma geográfica e outra geológica,que, no entanto, legitimam-se pela funcionalidade poética. A geográfica dizrespeito ao planalto central do Brasil:

     "Euclides da Cunhachamava de planalto central o que era o planalto brasileiro na classificaçãode Derby" (Santana, 1998,123).

      Como Euclides conhecia a classificação proposta por Derby, importareconhecer o motivo de sua opção:

    "Não é por acaso queEuclides da Cunha inicia o texto com a descrição de uma região que éconhecida e estudada pela ciência, com as suas terras propícias à vida, e que´estaca surpreendido´ diante de um hiato, excepcional e selvagem. A naturezaprefigura então o embate entre o poder central e os sertanejos. E, assim como nãocaberia se falar que o Brasil lutava contra Canudos, não poderia ser outro quenão o central, o planalto que descamba sobre a Terraignota, por mais que isto viesse a soar como um erro geográfico."(Santana, 1998, 124)

     A segunda generalização arrojada se refere à "sugestãoempolgante" de um vasto oceano cretáceo-terciário em grande parte dosestados do Norte. Santana inicialmente esclarece que a sugestão se baseia emEmmanuel Liais. Em seguida, assinala que, em relação aos dados fornecidos pelaciência, Euclides seleciona as informações que confirmam as suas idéias:"É o caso da contemplação de um mar cretáceo extinto na região deMonte Santo, que deveria ser inviabilizada pelos estudos de Hartt e Derby"(Santana, 1998, 125). Reconhece, finalmente, que a hipótese do mar extintocorresponde ao desígnio poético da narrativa euclidiana:

    "De forma geral, é oretorno a um esquema básico da narrativa euclidiana: forças que se embatem nomesmo "conflito secular" que já se encontra desde a primeira páginade Os Sertões, e a geologia aparececomo que dotada de vontade e sentimentos e se presta com perfeição a estanarrativa de movimento, com suas camadas que se deprimem e se elevam, com suasforças capazes de rasgar as formações rochosas e com massas magmáticas queextravasam do interior desconhecido" (Santana, 1998,125).

     Ao esclarecimento oportuno deSantana convém acrescentar que a origem marítima da terra se compagina napoesia homérica, nos antigos discursos  mitológicos,no pensamento pré-socrático, na ciência e poesia do romantismo alemão e nasnarrativas de viagens ao novo mundo. Na Ilíada de Homero, o Oceano, a fonte de todas as águas, sedistingue como potência cosmogônica ou, na dicção concreta do poeta, como "gênese de todas as coisas" (génesispántessi tétyktai ) (Il.14,246). Na mitologia bíblica, no primeiro livro do Pentateuco, a água senotabiliza como a matéria-prima do ato genesíaco. Para Tales, a água é oprincípio e o fundamento de tudo que existe. No romantismo alemão, a controvérsiaacerca da origem do planeta terrestre alcança enorme repercussão, e os partidáriosdo netunismo e do vulcanismo travam acirrada polêmica, promovendo um dos maisimportantes debates intelectuais da época goetheana. O netunismo, liderado porWerner, concebe a água como a matéria primeva e plasmadora de todas as formas.O vulcanismo adota o calor intenso e a compressão, o fogo, enfim, como elementoformador primordial. Goethe opta pelo netunismo, conforme se verifica em Anosde Aprendizagem de Wilhelm Meister e, sobretudo, no Fausto II. Steffens, Novalis e os geólogos alemães e francesescomo J.G.J. Ballenstedt, Jean Claude Delamétherie e J.A.H. Reimarus também setornam adeptos de Werner. Quanto aos representantes do vulcanismo, sobressaemScot James Hutton e seguidores, inclusive Charles Lyell, cuja obra se tornouconhecida como o primeiro sistema geral da geologia (Sullivan,1999, 346-7). Nanarrativa de viagem sobressai Alexander von Humboldt, que assimilou, juntamentecom Novalis e Henrich Steffens, as lições de geognosia ministradas por Wernerna escola de Freiberg (Gusdorf,1985, 241-2).

      O mito cosmogônico testamentário e os cientistas e poetas alemães quese consorciam na defesa do netunismo certamente motivaram a adoção euclidianadas imagens da terra em formação e transformação. As imagens bíblicas do Gênesis  correspondemperfeitamente à função de caracterizar o novo mundo americano. Além de poética,a visão do observador itinerante é mitopoética. Ao visualizar uma perspectivaatravés dos séculos pretéritos, o observador itinerante obedece ao desígnioartístico de uma geopoética, de uma poética da terra em gestação, e não aosistema geral da geologia. Não surpreende, portanto, que o símbolo do mar sejaconvertido em motivo recorrente da primeira parte da narrativa de OsSertões, intitulada "A terra". Desde o início, o marsimbolicamente se representa como expressão do ato genesíaco:

     "... o olhar, livre dosanteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio parao ocidente, mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo numondear longínquo de chapadas..." (17-18).

     A perspectiva espacial, em que comparece o movimento ondulatório daterra vista ao longe, e a perspectiva temporal, em que a terra nasce das ondasdo mar, interpenetram-se, produzindo o perspectivismo dual da visão mitopoética.Assim perspectivado, o olhar focaliza "extensas áreas ampliando-se,boleadas, pelos quadrantes, numa prolongação indefinida, de mares" (21).As formas telúricas, convulsionadas pela força torrencial das águas, se lheafiguram "majestosas ruinarias de castelos", evocando "a imagemperfeita desses mares de pedras" (27). Ao se deparar com os "cenáriosemocionantes" da "natureza torturada", "tem a impressãopersistente de calcar o fundo recém-sublevado de um mar extinto, tendo aindaestereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas e dasvoragens..." (29). Contempla o exsurgir da Terraignota, que se lhe apresenta como uma nova página do Gênesis: "Então os terrenos da extrema setentrional da Bahia (...), esparsospelas águas, avolumaram-se, num ascender contínuo", modelando"aquele recanto da Bahia até que ele emergisse de todo, seguindo omovimento geral das terras, feito informe amontoado de montanhas derruídas.(...) Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se para aVida: o líquen ainda ataca a pedra, fecundando a terra" (30). Naperspectiva do alto da favela, inteiramente submetido ao regime de fascinaçãodo mar, o olhar transvê, "numa enorme expansão dos plainosperturbados", "um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas;a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse, erefrangesse, e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes..."(39). Até mesmo as vastas planícies áridas são transvistas como "umoceano imóvel, sem vagas e sem praias" (54). Intimamente associado aoobservador itinerante, o narrador confirma o estatuto calculado da repetiçãomitopoética do símbolo do mar ao se referir aos sertões do Norte:"Imaginamo-los há pouco, numa retrospecção em que, certo, a fantasia seinsurgiu contra a gravidade da ciência, a emergirem, geologicamente modernos,de um vasto mar terciário" ( 57). A auto-consciência do narrador,solidariamente vinculada ao observador itinerante, reitera o símbolo do mar,porque o concebe como princípio articulador da estrutura narrativa da Terra.Em perfeita sintonia com a morfologia goetheana, segundo a qual não importa tão-somentea forma (Gestalt), mas, sobretudo, aformação (Bildung), o observadoritinerante percebe a forma deveniente no ritmo de transe.

     Ao rigor da composição, assegurado pelo narrador auto-consciente,alia-se o vigor da visão mitopoética do observador itinerante. Na própriaforma da percepção, que se desloca de um ângulo visual para outro, subage oimpulso da visão, o desejo substancial de ver cada um dos aspectos telúricose, sobretudo, o poder de fazer aparecer a terra como um organismo vivo. A terranão se apresenta como objeto geologicamente investigável nem como fenômenoexterior ao olhar. Mitopoeticamente compreendida na visão em que se vê, aterra se representa como sujeito dotado de força vital, como personagem em ação.A fim de satisfazer o ímpeto visionário do observador itinerante, o narrador ositua na perspectiva panorâmica do alto, conforme se verifica no prólogo dramáticoe no decorrer da narrativa. Imediatamente depois que o observador "estacasurpreendido" ao divisar a Terraignota, o narrador o situa num mirante:   

     "Estásobre um socalco do maciço continental, ao norte.

       Demarca-o de uma banda,abrangendo dous quadrantes, em semicírculo, o Rio de S. Francisco; e de outra,encurvando também para sudeste, numa normal à direção primitiva, o cursoflexuoso do Itapicuruaçu. Segundo a mediana, correndo quase paralelo entreaqueles, com o mesmo descambar expressivo para a costa, vê-se o traço de umoutro rio, o Vaza-Barris" (22).

     Note-se que o primeiro parágrafo sobressai no texto por ser constituídode uma só oração. Trata-se de um corte abrupto, que sinaliza a mutaçãorepentina do mediador narrativo. No primeiro, o narrador cumpre a função depropiciar a visão do observador, situando-o num palco suspenso, uma espécie dedegrau, numa encosta, sustentado por um muro. No segundo, delimita-se a visãodo observador. A parceria do narrador e do observador converte Os Sertões  em um dramavisionário. Sucedem-se as visões do alto no itinerário do observador,confirmando que o narrador se legitima como arquiteto das situaçõesnarrativas. Não é por acaso que o segundo capítulo de "A Terra" seinicia com um golpe de vista do alto de Monte Santo, repetindo a pespectiva comque se inicia o prólogo dramático. Os dois inícios enfatizam a iniciação do narrador na arte de armar a visão do observador. Numasimetria invertida, o terceiro capítulo termina com uma visão do alto no topoda Favela.

     O consórcio do narrador e do observador itinerante articula duas situaçõesnarrativas, uma de 3ª pessoa gramatical e outra de 1ª pessoa do plural.Importar sublinhar, no entanto, que pessoa gramatical não significa pessoanarrativa. A 3ª pessoa do narrador intimizado com o observador é uma falsa 3ªpessoa narrativa, porque o narrador reduz ao grau zero o seu ponto de vista afim de representar a visão do observador. Na dupla mediação narrativa, oevento se apresenta refletido na percepção do observador. No pactointersubjetivo, há dois mediadores, um que narra e outro que percebe. Onarrador representa os valores afetivos, volitivos e cognitivos do observador,mas não se representa. Esta situação narrativa, que Stanzel caracteriza comosituação narrativa personativa (personaleErzählsituation), alegando que o narrador assume a personaou a máscara do personagem, como ocorre na revolução ficcional da modernidadeinstaurada por Flaubert (Stanzel, 1987, 39-52), singulariza-se no contextonarrativo euclidiano, porque o narrador e o personagem observador atuam como ume o mesmo na dupla mediação da perspectiva dual.

     A situação personativa da narrativa euclidiana nada tem a ver com atipologia tradicional da 1ª e da 3ª pessoa. Por isso mesmo, alternam-se aspessoas gramaticais no decorrer de Os Sertões,mas a situação narrativa permanece a mesma. Ao avistar a "paragem formosíssimados campos gerais, expandida em chapadõesondulantes", o narrador subitamente transmuta a 3ª pessoa na 1ª pessoa doplural:

     "Atravessemo-la"(21)

Maisuma vez se ressalta a mutação repentina num parágrafo de uma única oração.Na forma imperativa, o ditame do narrador se manifesta na intenção deatravessar a belíssima região, estruturalmente acoplado à visão doobservador que, no parágrafo seguinte, contempla as conformações naturais doterreno. O ditame inclui, ainda, um convite ao leitor disposto à excursão nosmaravilhosos domínios dos campos gerais.

     No pronome comunitário da 1ª pessoa do plural, irmanam-se a consciênciado narrador e a experiência do observador. A ênfase varia, incidindo na percepçãodo observador, como na seqüência supramencionada, ou na ciência do narrador,conforme se depreende de mais um parágrafo recortado em sugestivo realce:

     "Resumamos; enfeixemosestas linhas esparsas" (54).

 

  

O Narrador Itinerante em UmParaíso Perdido

 

       Euclides da Cunha se distingue na literatura brasileira como o poeta daterra do sertão e da selva. Assume, nos textos narrativos de Os Sertões e de Um ParaísoPerdido, o papel do narrador personativo. No drama do sertão, intimiza-setanto com a terra, que se torna telúrico em "A Terra", sertanejo em"O Homem" e vencido em "A Luta". O desfecho da tragédia deCanudos lhe retira uma das escoras da alma. No drama da selva, que se representanos escritos amazônicos, o narrador comparece como observador itinerante.Realiza mais uma viagem exploratória do Sul para o Norte. Além da TerraIgnota, descobre Uma Terra sem História.O itinerário do narrador constitui uma introdução ao conhecimento do Brasil.Introdução, não no sentido comum do estudo preliminar, mas na acepção maischegada ao étimo de introducere.Introduzir o saber acerca do país significa movimentar-lhe a questãofundamental de modo a levá-la (-ducere)para dentro (intro) das origensinterioranas. O questionamento euclidiano da realidade nacional culmina sempreno desmascaramento do exterior através da descoberta do interior. O litoralvirado de costas para o sertão, eis a questão euclidiana.

     Roberto Ventura assinala que selva e sertão exprimem o mesmo espaçoermo e desolado do deserto. Acrescenta que o sertão baiano e a selva amazônicasão representados pelo narrador "como paisagem fantástica ou maravilhosa,que paralisa o observador, tomado por um misto de terror e êxtase, de desilusãoe deslumbramento, frente ao desconhecido". Enfatiza que o mesmo personagemcomparece no drama do sertão e da selva: "o sertanejo expatriado dentro da própria pátria." (Ventura, 1998, 135).

      O narrador de Os Sertões  ede Um Paraíso Perdido  atuasempre como narrador personativo, desdobrado em narrador e refletor dos eventosnarrados, e como narrador multiperspectivado, que adota os mais variados pontosde vista. Nas "Impressões gerais", que constituem o prólogo dramáticoem que se antecipa o tom dominante da narrativa de UmParaíso Perdido, o narrador euclidiano se define ao contemplar o rioAmazonas:

     "A volubilidade do riocontagia o homem. No Amazonas, em geral, sucede isto: o obervador errante quelhe percorre a bacia em busca de variados aspectos sente, ao cabo de centenaresde milhas, a impressão de circular num itinerário fechado, onde se lhe deparamas mesmas praias ou barreiras ou ilhas, e as mesmas florestas e igapósestirando-se a perder de vista pelos horizontes vazios; o observador imóvel quelhe estacione às margens, sobressalteia-se, intermitentemente, diante detransfigurações inopinadas. Os cenários, invariáveis no espaço,transmudam-se no tempo. Diante do homem errante, a natureza é estável; e aosolhos do homem sedentário que planeie submetê-la à estabilidade das culturas,aparece espantosamente revolta e volúvel, surpreendendo-o, assaltando-o porvezes, quase sempre afugentando-o e espavorindo-o" (Cunha, 1999, 126).

     Em cada período, o ponto de vista do narrador se modifica. No primeiro,o narrador personativo se intimiza com a volubilidade do rio Amazonas e dohomem. No segundo, assume a dupla perspectiva do observador errante e doobservador imóvel. O foco mutante do observador errante suscita uma impressãodominante do  Amazonas: "aimpressão de circular num itinerário fechado". No prisma do observador imóvel,o Amazonas se refrange em "transfigurações inopinadas". No terceiroperíodo, o narrador focaliza a variação aspectual do cenário amazônico emconsonância com a percepção do homem errante e do homem sedentário. No períodoquarto, o homem errante, estranho à terra, contempla uma natureza estática. Ohomem sedentário, intranho à terra, visualiza uma natureza "revolta e volúvel",que o sobressalteia, afugenta e apavora. Neste quadro natural do cenário amazônico,o narrador euclidiano revela o comportamento multiperspectivado, que ocaracteriza.

     O narrador euclidiano adota o multiperspectivismo narrativo como únicoprocedimento literário capaz de se haver com a excessividade do fenômeno telúricoque pretende representar. A extraordinária magnitude da natureza amazônica,que se compraz no jogo do desvelamento e do velamento, requer o narradormultiperspectivado. O próprio Euclides da Cunha, em carta a Artur Lemos,endossa a posição do narrador que preside à gênese e ao desenvolvimento desua obra:

     "...esta Amazôniarecorda a genial definição do espaço de Milton: esconde-se em si mesma. Oforasteiro contempla-a sem a ver através de uma vertigem.

      Ela só lhe aparece aos poucos,vagarosamente, torturantemente.

      Éuma grandeza que exige a penetração sutil dos microscópios e a visãoapertadinha e breve dos analistas: é um infinito que deve ser dosado"(Cunha, 1997, 268-9).

     No primeiro artigo de Euclides da Cunha, escrito aos dezoito anos epublicado no jornal dos alunos do Colégio Aquino no Rio de Janeiro com o título"Em viagem", já se manifesta a refletorização narrativa do ponto devista mutante do escritor apaixonado pela natureza. No texto do jovem narradorem viagem de bonde, as encostas cobertas de mata, os sons, as cores e osesplendores da paisagem são refletorizados em sua deslumbrada visão emmovimento:

     "Guiam-me a pena asimpressões fugitivas das multicores e variegadas telas de uma natureza esplêndidaque o tramway  medeixa presenciar de relance quase.

      É majestoso o que nos rodeia - noseio dos espaços palpita coruscante o grande motor da vida; envolta na clâmidecintilante do dia, a natureza ergue-se brilhante e sonora numa expansão sublimede canções, auroras e perfumes... A primavera cinge, do seio azul da mata, umcolar de flores e o sol oblíquo, cálido, num beijo ígneo, acende na frontegranítica das cordilheiras uma aureóla de lampejos... por toda a parte avida..." (Cunha, 1966a, 517).

     Desde o início, sempre em viagem, de bonde na cidade do Rio, de trem, acavalo ou a pé no sertão, de barco ou calcurreando o chão na selva, a vocaçãonarrativa de Euclides se representa na parceria do narrador e do refletor. Onarrador euclidiano se notabiliza no contexto da revolução da fiççãointernacional, porque não precisa, como Flaubert, de um personagem encarregadoda refletorização. Na situação narrativa euclidiana, o narrador e o refletorsão um e o mesmo. Enquanto refletor, Euclides se impõe como personagemfundamental de sua própria narrativa.

     Os prólogos dramáticos de Os Sertões e de UmParaíso Perdido  sãoigualmente representados pelo narrador que realiza uma viagem no espaço e notempo. Nas "Impressões gerais" (Cunha, 1999, 115-130), o narradoritinerante se nos apresenta submetido ao impacto de uma impressão dominante: ade que o homem, na Amazônia, "é ainda um intruso impertinente",porque chega "sem ser esperado nem querido - quando a natureza ainda estavaarrumando o seu mais vasto e suntuoso salão". Os rios ainda não sefirmaram nos seus leitos, istmos se rompem "numa desesperadora formaçãode ilhas e de lagos de seis meses", criando "formas topográficasnovas" (116). Seguindo pela mata, o narrador sente que a sua progressãoespacial se transmuta em regressão temporal. A viagem espacial da ida em direçãoà terra sem história se transforma na viagem de volta rumo à origem primeirada terra em gestação:

     "... quem segue pelamata, vai com a vista embotada no verde-negro das folhas; e ao deparar, deinstante em instante, os fetos arborescentes emparelhando na altura com aspalmeiras, e as árvores de troncos retilíneos e paupérrimos de flores, tem asensação angustiosa de um recuo às mais remotas idades, como se rompesse osrecessos de uma daquelas mudas florestas carboníferas desvendadas pela visãoretrospectiva dos geólogos.

      Completa-a, ainda sob esta formaantiga, a fauna singular e monstruosa, onde imperam, pela corpulência, os anfíbios,o que é ainda uma impressão paleozóica. E quem segue pelos longos rios nãoraro encontra as formas animais que existem, imperfeitamente, como tiposabstratos ou simples elos da cadeia evolutiva. A cigana desprezível, por exemplo, que se empoleira nos galhos flexíveis dasoiranas, trazendo ainda na sua asa de vôo curto a garra do réptil..."(116).

     No discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras, Euclides daCunha justifica a dupla viagem do narrador itinerante no espaço e no tempo aoreconhecer que a primeira impressão que o dominou ao deparar a região amazônicafoi de desapontamento, motivado pela disparidade entre a imagem prefigurada pelaleitura de Frederico Hartt e Walter Bates. Confessa que se retraiu "a umrecanto do convés", tentando alinhavar "os mais peregrinos adjetivos,os mais roçagantes substantivos e refulgentes verbos (...) para ao cabo desseesforço rasgar as páginas inúteis onde alguns períodos muito sonorosbolhavam, empolando-se, inexpressivos e vazios". Acrescenta que, aodesembarcar em Belém, dirige-se ao Museu do Pará para encontrar dois homens:"Emílio Goeldi, que é um neto espiritual de Humboldt" e o Dr.Jacques Huber, "botânico notabilíssimo, bem que nada nos recorde dessasfiguras oleográficas de sábio saxônio, de faces enregeladas e ralas farripasmelancólicas". Ao tornar para bordo, leva uma monografia em que Huberestuda a região aparentemente monótona. "Deletreei-me a noite toda",diz Euclides. Na antemanhã do outro dia, sobe para o convés, "de onde,com os olhos ardidos da insônia" consegue ver, pela primeira vez, oAmazonas:

     "Salteou-me, afinal, acomoção que não sentira. A própria superfície lisa e barrenta era muioutra. Porque o que se me abria às vistas desatadas naquele excesso de céuspor cima de um excesso de águas lembrava (ainda incompleta e escrevendo-semaravilhosamente) uma página inédita e contemporânea do Gênesis"(Cunha, 1966a, 204-5).

     A viagem no tempo, para alémdo trajeto no espaço, permite ao narrador itinerante o retorno às origens dascoisas, sem o qual impossível se torna uma visão original do fenômenoobservado. Por isso é que, nos prólogos dramáticos de OsSertões  e de Um Paraíso Perdido, o narrador itinerante realiza a excursão anímicarumo ao tempo originário. O mito cosmogônico testamentário articula aestrutura mitopoética dos dois prólogos. A similitude da visão da terra emformação na selva e no sertão comparece tão perfeitamente, que a Amazôniasubitamente  se apresenta diante dosolhos maravilhados do narrador, emergindo de uma convulsão geogênica:

     "Nasceu da últimaconvulsão geogênica que sublevou os Andes, e mal ultimou o seu processoevolutivo com as várzeas quaternárias que se estão formando e lhe preponderamna topografia instável" (Cunha, 1999, 117).

     Ao reconhecer o poderdeflagrador da monografia de Jacques Huber, que lhe inspira uma nova visão domundo amazônico, Euclides descarta a distinção tradicional entre o cientistae o artista, reconhecendo que o essencial consiste na visão poética, semprerara, tanto na ciência quanto na arte. Na visão euclidiana, a ciência e aarte não se legitimam, senão poeticamente. Escrever versos metricamenteperfeitos ou períodos parnasianos de um estilista em prosa não significa serpoeta. A estilística verbal do vocabulário retoricamente ornamentado, queseleciona a palavra pretensamente literária, menosprezando o vocábulo técnico,nada tem a ver com a linguagem da poesia:

     "Com efeito, a novaimpressão verdadeiramente artística, que eu levava, não ma tinham inspiradoos períodos de um estilista. O poeta que a sugerira não tinha metro, nemrimas: a eloqüência e o brilho dava-lhos o só mostrar algumas aparênciasnovas que o rodeavam, escrevendo candidamente a verdade. O que eu, filho daterra e perdidamente namorado dela, não conseguira demasiando-me no escolhervocábulos, fizera-o ele usando um idioma estranho gravado do áspero dosdizeres técnicos. Avaliei então quanto é difícil uma coisa trivialíssima,nestes tempos, em que os livros estão atulhando a terra, escrever..."(Cunha, 1999, 101).

     Como cientista ou poeta, mas sobretudo como cientista e poeta, a Euclidesnão importa, senão ser geopoeta, que é o poeta que se emparelha com a terrana tentativa de corresponder ao ritmo formativo da potência telúrica. Nãobasta observá-la com a ótica monocular dos conceitos solidificados. Necessáriose torna conciliar dinamicamente a imaginação poética e a observação científica.Se não se dissolve a solidez dos conceitos na fluidez das imagens, não se obtémuma visão genuína da terra:

     "Há uma hipertrofia daimaginação no ajustar-se ao desconforme da terra, desequilibrando-se a mais sólidamentalidade que lhe balanceie a grandeza. Daí, no próprio terreno das indagaçõesobjetivas, as visões de Humboldt e a série de conjecturas em que se retravam,ou contrastam, todos os conceitos, desde a dinâmica de terremotos de RusselWallace ao bíblico formidável das geleiras prediluvianas de Agassiz"(Cunha, 1999, 118).

     Diante do processo metamórficoda terra amazônica no embate com o rio diluvial, que atua como verdadeiroagente geomorfológico, o brasileiro intruso experimenta o estranhamento doexpatriado. A própria terra refoge-lhe aos passos, dissolvendo-se no fluxoininterrupto das caudalosas correntes para ressurgir em novas formas topográficas,recém-nascidas do dilúvio:

     "Naqueles lugares, obrasileiro salta; é estrangeiro; e está pisando terras brasileiras. Antolha-seum contra-senso pasmoso: à ficção de direito estabelecendo por vezes aextraterritorialidade, que é a pátria sem a terra, contrapõe uma outra,rudemente física: a terra sem a pátria. É o efeito maravilhoso de uma espéciede imigração telúrica. A terra abandona o homem. Vai em busca de outraslatitudes. E o Amazonas, nesse construir o seu verdadeiro delta em zonas tãoremotas do outro hemisfério, traduz, de fato, a viagem incógnita de um territórioem marcha, mudando-se pelos ermos adiante, sem parar um segundo, e tornando-secada vez menores, num desgaste

 
 Ronaldes de Melo e Souza
 
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