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Euclides e o berço de Os Sertões
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A saga de Euclides da Cunha no imaginário coletivo de são José do Rio Pardo
2004-01-23 16:57:44

 

 

Cármen Cecília Trovatto Maschietto

 

 

O mito é sempre considerado como uma história sagrada, e portanto uma história verdadeira, porque se refere sempre a realidades.

A explicação das sagas não está nos contos, mas nos mitos.

Por relatar as gestas dos seres sobrenaturais e a manifestação dos seus poderes sagrados, o mito torna-se o modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas.

Mircea Eliade (1989)

 

 

 

Euclides da Cunha reside em São José do Rio Pardo entre 1898 e 1901. Nesse período, reconstrói uma ponte metálica sobre o Rio Pardo, desmoronada espetacularmente poucos dias após sua inauguração, e escreve a maior parte de Os Sertões que se tornaria obra-prima da literatura nacional. Em razão desses fatos, o escritor e engenheiro protagoniza o mais interessante culto à memória de que se tem notícia no país. O presente estudo procura descrever como uma história real acaba motivando uma história fabulosa, recorrendo a autores conhecidos, fundamentando-se, principalmente, na fala de um contemporâneo daqueles acontecimentos.

 

Quando a história e o mito se confundem

 

 

Muitas vezes é difícil decidir se a saga narra a vida heroicizada de uma personagem histórica ou, pelo contrário, um mito secularizado.

Mircea Eliade (1989)

 

A repetição exaustiva da história fabulosa de Euclides da Cunha acaba adquirindo uma dimensão mítica, idealizada como episódios dramáticos, como momentos gloriosos da vida do escritor e da própria cidade. A existência de uma história mítica sobre Euclides da Cunha não quer dizer que seja uma história falsa ou inventada. Apenas demonstra que existe uma história que adquire importância à medida que tem seu significado original ampliado e transformado por representações vivenciadas pela cultura local. Um mito sempre se refere a uma história considerada preciosa, sagrada e exemplar, a uma história que explica a origem de alguma coisa e que se torna modelo a ser seguido e verdade a ser preservada.[i]

A ponte e o casebre de zinco são os documentos mais representativos da história de Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo, história sagrada e exemplar, anualmente rememorada por festas oficiais. Ponte e casebre são símbolos sagrados, representados em emblemas públicos e particulares, retratados em tela, bronze, desenhos e fotografias, com história reproduzida em narrativas, memórias, poesias, artigos e livros consagrados.

O imaginário mítico faz parte da memória coletiva e oficial presente até mesmo em trabalhos cientificamente fundamentados. Olímpio de Sousa Andrade[ii],procurando exaltar a importância da cidade na realização de Os Sertões, afirma: ali, naquele burgo sertanejo, (...) no ambiente sossegado da amena cidadezinha provinciana, Euclides encontrou o meio e o momento que tão bem se ajustavam às exigências do escritor. Para a realização de Os Sertões, ainda sublinha a importância da colaboração de íntimos amigos do escritor, considerando-os crentes nos prodígios da inteligência e verdadeiramente entusiasmados com o Dr. Euclides. Exalta um deles como homem singular que Euclides, providencialmente, foi encontrar em São José do Rio Pardo, referindo-se a Francisco Escobar. Sousa Andrade demonstra estar convencido de que sem esse apoio moral e social em São José, o grande livro de Euclides simplesmente não teria sido escrito.[iii] Para descrever o casebre de zinco, chama-o de barraco no vale, com legenda em verso de Shakespeare [iv]. Nesse capítulo, descreve episódios da construção da ponte, da criação de Os Sertões, da Guerra de Canudos e da vida pessoal do escritor, como se estivessem num único cenário: uma barraquinha de sarrafos e folhas de zinco onde só muito raramente não passava o dia inteiro:

Ali, junto ao rio, para melhor desempenhar a dupla missão que se impusera, determinando tarefas que calculava e fiscalizava, escrevendo e reescrevendo o seu livro, improvisara, à sombra de grande paineira, uma barraquinha de sarrafos e folhas de zinco, tal como um pequeno barraco de favela, com cerca de seis metros quadrados de área, no qual só muito raramente não passava o dia inteiro, almoçando, vendo pelas frestas o que se passava fora, ouvindo marteladas em falso, que de pronto censurava (...).[v]

Um canteiro de obras é uma necessidade básica em qualquer construção. No caso da ponte, é entendido como um exemplo de método muito euclidiano, desnecessário até, mas determinado por Euclides, que improvisa uma barraquinha, imitação de um barraco de favela, para ficar junto às obras da sua ponte, conciliando o dever profissional e a necessidade de terminar o seu livro.

A rigor, não seria mesmo necessário a construção da barraquinha, pois não era grande a distância da ponte à sua casa, (...).

Acontece, porém, que (...) desejando conciliar o dever profissional com a necessidade de se “libertar” o quanto antes do seu livro, fez erguer o rancho que, além de satisfazer àquele desejo, apresentava-se como um exemplo de método muito euclidiano de trabalho, (...). Assim como se transportou para o sertão, vendo de perto o que descrevia e comentava, transferiu-se com a família para São José e, não contente, plantou-se junto às obras da sua ponte, construindo-a de maneira que, sessenta anos depois, lá está ela como ele a fez, resistindo aos embates com o rio grosso, mostrando que ele venceu onde outros fracassaram.

Como engenheiro, foi dos que receberam e realizaram as incumbências mais difíceis da Superintendência de Obras. Como pesquisador e escritor foi o único a estudar em reduzido espaço de tempo, tão a fundo, as coisas brasileiras.[vi]

Sucessivas gerações de rio-pardenses têm ouvido e aprendido essa história idealizada, transmitida nas escolas e nos discursos públicos, já convertida em memória oficial institucionalizada: foi ali, naquela cidade que Euclides construiu uma ponte e escreveu Os Sertões; ali junto ao rio, em um casebre de zinco, protegido por frondosa paineira, onde passava a maior parte do tempo, encontrou ambiente sossegado necessário para desenvolver o ofício de escritor, contando com o apoio de amigos que o assessoravam; foi, portanto, essa conjunção de fatos favoráveis que tornou possível a realização de Os Sertões. Sem esse apoio moral e social em São José, o grande livro de Euclides simplesmente não teria sido escrito.

 

Entre a memória oficial e a memória pessoal do Major João Modesto de Castro

Quando falamos numa memória dividida, não se deve pensar apenas num conflito entre a memória comunitária pura e espontânea e aquela “oficial” e “ideológica” de forma que, uma vez desmontada esta última, se possa implicitamente assumir a autenticidade não-mediada da primeira.

Alessandro Portelli (1996)

Acontecimentos marcantes na vida de uma cidade costumam gerar opiniões divergentes, originando memórias divididas[vii], porque algumas não se ajustam à memória oficial dominante. Muitas vezes, tais divergências não resultam de conflitos, expressam apenas memórias puras e espontâneas, fundamentadas em experiências vividas, em emoções profundamente sentidas, de caráter mais pessoal, diferentes da memória oficial, mais ideológica e institucionalizada.

Grande parte das interpretações de Sousa Andrade  sobre o período de Euclides em São José foi alicerçada em entrevistas, relatos e artigos de pessoas e periódicos do lugar. Cita artigos dos jornais Gazeta do Rio Pardo e Resenha, entrevistas com contemporâneos de Euclides, os crentes que sobreviveram: José Honório de Silos, João Modesto de Castro e Paschoal Artese. Refere-se a José Honório como o informante sempre honesto e consciencioso de fatos da maior importância para a história de Os Sertões(...), mas temperamentalmente avesso a discussões. Considera Paschoal Artese o mais polêmico dos três, por ter feito afirmações não comprovadas sobre o socialismo militante de Euclides, as quais levaram outros a incorrerem no mesmo erro. João Modesto de Castro parece ser o detentor das melhores informações sobre o cotidiano do escritor, sobre detalhes da construção da ponte, com capacidade de relatar fatos que aos outros passaram despercebidos, sendo algumas vezes citado quando se tratava de dirimir dúvidas.

Um manuscrito encontrado recentemente, de autoria do Major João Modesto de Castro[viii], poderá servir de contraponto entre a memória oficial - atestada pelas informações honestas e conscienciosas de José Honório e acatadas por Sousa Andrade – e a história real dos fatos. A narrativa desse manuscrito é muitas vezes contraditória. Em alguns momentos está presa a mitos da memória coletiva; em outros, deixa transparecer uma visão mais pessoal dos acontecimentos. Isso pode ser observado em expressões como eu vi com meus próprios olhos ou o que digo não são mentiras. Tais expressões podem estar indicando que seu depoimento não era aceito como verdadeiro, ou que existia outra versão corrente dos fatos com a qual ele não concordava. A existência de memórias divididas oferece uma oportunidade preciosa para se observar o processo de construção dos mitos, das memórias (e dos esquecimentos) oficiais, abrindo caminho para um diálogo esclarecedor.

Estudos demonstram que a memória é social e compartilhada[ix]. O esquecimento, porém, é um processo individual, assim como a elaboração da memória e o ato de lembrar: são pessoas que lembram e dizem eu me lembro. A memória só é coletiva no mito e no folclore, nas instituições que organizam as memórias e os rituais, nos casos de delegação, quando uma única pessoa ou grupo é responsável pelas várias histórias[x]. Tais considerações ajudam a compreender as contradições da narrativa enfocada, explicando como o narrador, ao mesmo tempo que expressa a memória social, reforçando os mitos institucionalizados, faz aflorar lembranças pessoais e sentimentais, entrando em choque com o que já é consensualmente aceito como verdade.

Major João Modesto de Castro tem um objetivo: narrar a saga heróica e maravilhosa de Euclides da Cunha, da ponte e do casebre de zinco, documentando para a posteridade fatos que presenciou. Esse documento foi escrito em 1935, sob o título Ranchinho de Euclides, no momento em que essa singela construção estava prestes a ser tombada como monumento histórico, o que de fato vem a ocorrer em 1937.

Uma pergunta dá início ao texto: Quem não guardará na memória a passagem brilhante de Euclides da Cunha nesta cidade? Com essa pergunta o autor sinaliza que irá fazer um relato de memória e enfatiza com muita convicção que, na cidade, todos ainda se lembram dos fatos que irá narrar. Sua fala tem um tom solene, pois, afinal, não tratará de um fato qualquer, mas da passagem brilhante de Euclides da Cunha nesta cidade.

Major João Modesto de Castro tinha 72 anos quando fez esse depoimento. Faleceu em 1956, aos 93 anos, quando o culto a Euclides da Cunha já estava bem consolidado. Olímpio de Sousa Andrade entrevistou-o, mencionando em nota de rodapé: todas as referências a João Modesto de Castro, sem fonte indicada, são de anotações do autor, tomadas em entrevista com o velho amigo de Euclides, em 21/03/1945, na cidade de São José do Rio Pardo[xi]. Portanto, a entrevista foi realizada dez anos depois que o Major deu seu depoimento, estando ainda lúcido e merecedor de todo crédito para fundamentar obra de relevo.

Na história oficial da cidade é tido como certo que foi João Modesto quem impediu a demolição do casebre de zinco, convencendo o prefeito da época de que se tratava de uma construção com valor histórico. Consta, também, que ele encabeçou a campanha para levantar fundos para a herma de granito, construída ao lado da casinha, em 1918. O marco de pedra dá início ao processo de sacralização do lugar[xii], já transformado em lugar de memória[xiii]. Quando o casebre é protegido por uma redoma de vidro em 1928, acentua-se ainda mais a aura de sacralidade que o envolve e à própria cidade.

O manuscrito foi encontrado em local estranho e inusitado, quase por acaso: sobre o forro da biblioteca de uma escola pública[xiv] que, durante anos, foi a mais importante da cidade e seus professores e alunos, incentivadores estratégicos do culto euclidiano. Teria sido esse manuscrito ali escondido? Por quê? Por quem? Como permaneceu por tantos anos sem ser descoberto?

Não parece haver dúvidas sobre a autenticidade desse documento, especialmente quando confrontado com o livro de Sousa Andrade. Sendo João Modesto um raro sobrevivente da época da construção da ponte, mas não um informante oficial, seu depoimento oferece a possibilidade de diferentes leituras a partir de sinais encontrados no próprio texto, como pela análise das circunstâncias e da época em que foi escrito. A observação cuidadosa do contexto deixa transparecer veladas intenções e demonstra como uma narrativa fabulosa pode nascer de uma história real.

Major João Modesto de Castro dominava um conhecimento fundamental: a memória dos acontecimentos. Quem é capaz de lembrar tem mais força e prestígio do que quem só conhece a origem das coisas[xv]. Por circunstâncias especiais daquele momento, o narrador decidiu lançar mão de suas lembranças pessoais e fazer um depoimento escrito, recuperando o passado que ele viu e que sua memória registrou. Sentindo-se possuidor da memória da história verdadeira, decide revelá-la por meio de um recuo no tempo, rememorando exaustivamente tudo o que viu, desde as origens dos acontecimentos, desde o momento em que tudo começou.

Euclides da Cunha, nessa narrativa, é reconhecido como o herói e assim é retratado e exaltado por inteiro. As obras que realizou na cidade são descritas como maravilhosos feitos. Sua trajetória de êxitos é considerada prodigiosa e assombrosa. Seu trágico fim é interpretado como mistério da sorte, capricho do destino. Pela forma, a narrativa aproxima-se da saga, da epopéia heróica. Relembra situações reais da vida de Euclides, interpretando-as como sendo ideais e exemplares. Considera a vida do escritor uma sucessão de problemas e vitórias que termina de forma violenta, conferindo-lhe características de um herói trágico.

 

Poderes, perigos e mágoas de um discurso indesejado

Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém.

Michel Foucault (1996)

 

Manifestado quarenta anos depois dos acontecimentos, esse discurso recorre a lembranças pessoais, conferindo-lhes sentidos reais e imaginários. As reconstituições feitas estão presas a redes de memória, isto é, à historicidade dos fatos, vindo contagiadas por representações criadas emocionalmente. Teatraliza dificuldades tremendas enfrentadas por Euclides para reconstruir a ponte e escrever Os Sertões. Imagina perigos terríveis vividos pelo escritor em Canudos. Dramatiza o sucesso do livro, os méritos do escritor, sua morte violenta, seu drama familiar. A queda da ponte é retratada como uma tragédia devida à incompetência de um imbecil construtor. A reconstrução, porém, foi um retumbante sucesso, um milagre realizado por Euclides que venceu onde todos fracassaram.

O narrador está impressionado com a dimensão do sucesso de Os Sertões e do escritor Euclides da Cunha, segundo ele, um brasileiro que está sendo universalmente admirado e que tanto engrandeceu a nossa São José do Rio Pardo. Tamanha notoriedade pressiona  aquele que foi assíduo observador dos acontecimentos a documentar suas lembranças para a posteridade. Teme, porém, esse sobrevivente e fiel observador dos fatos, que suas revelações sejam tidas como mentiras, e que, por isso, não venham a público. Procura elevar-se acima de qualquer suspeita, afirmando que escreve com inteira isenção de ânimo, descrevendo fatos vistos com seus próprios olhos ou obtidos por informações dignas de toda confiança. Entre temeroso e ressentido, deixa transparecer a sensação de que não conseguirá conquistar a credibilidade necessária para que sua história seja reconhecida como verdadeira.

Que temores perturbam o discurso desse angustiado narrador, obrigando-o a tantas justificações e explicações? O que contém esse discurso de perigoso, de sacrílego ou desonroso, a ponto de levar à suposição de que tenha sido escondido, colocado fora de circulação, longe do público e da publicidade?

Na avaliação de Foucault[xvi], todo discurso tem poderes e supõe perigos, exprime desejos, mágoas, lutas, vitórias e servidões. O discurso tem possibilidade de honrar ou desarmar quem o profere pela força das próprias palavras. Sendo a palavra tão perigosa, a sociedade desenvolve formas de controlá-la ou até de anulá-la. Essa avaliação leva à conclusão de que em sociedade não se tem o direito de dizer tudo, não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, sob pena da palavra indesejada ser punida com a exclusão ou a interdição. Se esse manuscrito foi mesmo escondido, é possível supor que sofreu uma forma de exclusão e de interdição deliberada, imaginando que, na época em que foi escrito, não tenha sido possível evitar sua pesada e temível materialidade.

Vivendo no momento em que Os Sertões, a cabana e a cidade desfrutam de excepcional notoriedade, o narrador deseja deixar sua contribuição e registrar sua participação nessa história tão em evidência. Seu poder de convencimento mais valioso é demonstrar que detém o conhecimento das origens, que é capaz de recuar no tempo e evocar todos os acontecimentos passados dos quais foi testemunha privilegiada. Ao construir uma narrativa fabulosa, deseja resgatar esse passado e demonstrar que presenciou o nascimento das elevadas criações de Euclides, consideradas obras superiores de um ser superior heróico e único. Procura demonstrar como de uma barranca de rio úmida, coberta de mato e carregada de odores nauseantes, onde proliferavam animais e insetos peçonhentos, fustigada por fortes ventos frios e cortantes, pode surgir, como por efeito de um milagre (...), a famosa Ponte Metálica, (...) no esplendor da sua realidade, garbosa no seu duplo aspecto de estética e solidez, faceira, pintada de fresco zarcão, suportada em grossos, elegantes e fortíssimos pilares (...)! Descreve Euclides da Cunha não apenas como o escritor excepcional, mas como o grande engenheiro, o maior obreiro da nossa grandeza histórica, responsável pela projeção da cidade, até no exterior. Nesse sentido, adianta-se em reconhecer a ponte como um patrimônio histórico, um bem cultural que identifica  a cidade.

Ao narrar a gênese dos acontecimentos, considera a queda da ponte dos 29 dias como imperícia e descuido do primeiro construtor. Relata com requintes dramáticos a indignação popular e os transtornos que esse desabamento causa à população. Todos os sofrimentos terminam com a chegada do novo engenheiro, um profissional zeloso e perfeito conhecedor técnico do assunto, que jamais pronunciou uma única palavra de censura contra seu infeliz colega. Descreve inúmeras dificuldades, contrariedades e sacrifícios tormentosos que afligem o engenheiro.Desfaz o clima de paz, de serenidade, de sossego que a imaginação coletiva acreditava ter existido em torno do escritor de Os Sertões, e que é constantemente reiterada pelas narrativas oficiais.

Considera a retirada da ponte retorcida do leito do rio e sua desmontagem em terra firme como um arrojado trabalho, uma proeza assombrosa e incompreensível. Descreve com detalhes o que hoje é considerado um canteiro de obras. Específica a construção das oficinas necessárias aos ferreiros, carpinteiros e pedreiros, o estabelecimento dos locais de carga e descarga de materiais, o barulho ensurdecedor que a movimentação de todos esses trabalhadores ocasiona. Relata os problemas causados pela poeira, os odores nauseabundos provocados pelos restos de animais abatidos no matadouro existente ao lado. Acrescenta, ainda, o barulho e a fumaça irritantes vindos da estação ferroviária, além dos perigos de epidemias transmitidas por moscas, como a febre-amarela que começa a semear o terror na cidade e que, segundo o narrador, foi responsável pela antecipada inauguração da ponte sem as grandiosas e esperadas festas. Retrata Euclides da Cunha furioso, enxotando enorme horda de urubus famintos, espantando a pedradas aquelas inoportunas visitas. O discurso de João Modesto nos apresenta um Euclides real, um homem concreto, um profissional e trabalhador que sofre e é perturbado pelos problemas do seu ofício e da sua existência. Muitas vezes deixa transparecer sofrimentos íntimos, neuroses, angústias, possivelmente provocados por desconfianças domésticas reprimidas que o atormentavam, e que o fiel narrador procura assinalar com a maior discrição possível. No final, após mortificações, milagres e mágicas, a ponte é concluída graças a um engenheiro incomum, heróico, único, que venceu onde todos fracassaram.

Euclides da Cunha: herói e mártir de uma cidade justiceira

Aí onde as recompensas atribuídas ao mérito são maiores, aí também a “polis” reúne os homens mais valorosos. Se toda celebração não é senão uma forma discreta de autocelebração, se, honrando-se a grandeza, engrandece-se a si próprio, então tudo leva a supor que Atenas reserve em seu benefício uma parte do louvor que dedica a seus mortos e ao “epitáphion”.

Nicole Loraux (1994)

Se as dificuldades enfrentadas por Euclides da Cunha o transformam em um personagem heróico, fatos de sua vida familiar e as condições de sua morte o transformam em vítima: O que não seria Euclides da Cunha se a morte não o tivesse arrebatado de surpresa e de modo tão cruel e trágico? A narrativa considera que a morte trágica e cruel do escritor pôs em evidência o esplendor do seu talento, a grandeza do seu papel de esposo e o brilho majestoso de sua alma. Imagina que a fatalidade o colheu de surpresa em um jardim, teatro onde se desenrolou uma tragédia lancinante, tombando varado por certeira bala, mortalmente ferido sobre um canteiro florido.

A construção dessa cena procura amenizar comportamentos morais socialmente reprováveis: traição, adultério, vingança, assassinato. Na cena, a figura da esposa é colocada de forma a desempenhar papel estratégico:

Sua esposa que lá se achava, correu para erguê-lo. Era tarde. O inditoso, ferido duplamente no corpo e na alma, já agonizante, estendeu-lhe a mão trêmula e disse-lhe em voz sumida: - Perdôo-te! Dormia o sono da morte!...Grande, sublime, elevado como Cristo, não condenando. Perdoando!...

Nessa cena teatral, o escritor é apresentado como cordeiro sacrificial, colocado no papel de vítima, de oferenda da martiriologia cristã, além de herói é também mártir, quase um santo. É essa imagem que a sociedade rio-pardense recebe e assimila, incorporando-a ao imaginário coletivo. Esse discurso de mortificação, de sacrifício, traição, perdão e morte, serve de tema para cerimônias públicas voltadas para impressionar o povo e sendo utilizado com outras finalidades.            

Esquivando-se de julgamentos morais, o discurso prefere ressaltar as obras do escritor, destacando seus méritos reconhecidos pela cidade durante as comemorações anuais: A Ponte, O Ranchinho de Zinco e a Paineira são os preciosos documentos históricos da sua vida entre nós. Quem desconhecerá? A ponte é descrita como uma realidade imponente e sólida, grandiosa maravilha: Se não fosse Euclides, quem se animaria a fazê-la? O ranchinho, considerado como jóia, relíquia e patrimônio histórico, é comparado a uma crisálida adormecida em seu transparente casulo, à sombra augusta da frondosa paineira que lhe cobre de flores. Com esse discurso imaginativo, o casebre-crisálida, todos os anos, desperta para receber as grandiosa festas comemorativas que muito merecidamente lhe são prestadas pela população rio-pardense. Assim, em um cenário mítico-ritual, Euclides renasce, revive a cada 15 de agosto por mérito de uma cidade justiceira, cristã e patriótica que sabe perdoar e dar valor à grandeza dessa história honrosa para a nação.

Uma triste nota ainda é destacada por esse discurso ao referir-se a uma ausência sentida pela comunidade: Até hoje não se viu chegar ao pé daquela paineira o vulto de uma mulher coberta de crepe, tímida, chorosa, aproximar-se da porta da tosca choupana de zinco, com o rosto coberto, tristonha, arrependida, com um raminho de flores, ajoelhar-se e rezar fervorosa prece, em memória do malogrado autor da Ponte e desventurado escritor d’Os Sertões. A adjetivação agora é outra, mais adequada ao papel de vítima pranteada: inditoso, malogrado autor, desventurado escritor. Para essa cena, os sentimentos externados remetem-nos a valores cristãos e a ressentimentos de uma sociedade conservadora e predominantemente masculina, que utiliza a função clássica do mito para reconciliar os opostos: sacrifícios e glórias, traição e perdão, pecado e arrependimento. Se a esposa ingrata não vem penitenciar-se arrependida junto ao casebre, a cidade tem a grandeza de perdoá-la, tomando a si a missão patriótica e justiceira de guardiã da memória do escritor.

A memória dos sobreviventes

(...) o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores.

Jacques Le Goff (1996)

Onde faltam os monumentos escritos, deve a história demandar às línguas mortas os seus segredos... Deve escrutar as fábulas, os mitos, os sonhos da imaginação...Onde o homem passou, onde deixou qualquer marca da sua vida e da sua inteligência, aí está a história.

Fustel de Coulanges(1901)

 

Esse depoimento foi redigido num momento de grandes transformações políticas e sociais que provocaram deslocamentos inevitáveis, ressentimentos e mágoas. Os antigos cultuadores de Euclides, colocados em segundo plano, foram obrigados a ceder espaço, muito a contragosto, a novos agentes culturais.

José Honório de Silos, Paschoal Artese e Major João Modesto de Castro são os sobreviventes dessa história preciosa e exemplar. Lutam, cada um a seu modo, para não serem excluídos ou desapropriados desse movimento que proporciona prestígio social. Embora desunido, o grupo considera-se guardião da memória euclidiana e utiliza esse argumento para manter-se em evidência.

José Honório de Silos sempre esteve mais próximo de Euclides, tendo sido o primeiro copista de Os Sertões e autor de inúmeros artigos sobre o escritor. Considerado por Sousa Andrade fonte de todo crédito, tem sua palavra reconhecida como memória emblemática do euclidianismo local, razão que o consagra como presidente perpétuo das comissões de festejos em memória do escritor. José Honório serviu de cicerone ao intelectual Roger Bastide quando esteve na cidade, durante a Semana Euclidiana de 1945. Impressionado com a figura lendária que lhe foi apresentada pelo contemporâneo de Euclides, Bastide publica artigo no jornal Folha da Manhã, transcrito por Gazeta do Rio Pardo, de 7 de outubro daquele ano, em que faz as seguintes observações sobre o que ouviu:

 Que bonito título essa história poderia fornecer a um capítulo dum livro: Euclides e o fantasma. Eu amo esse Euclides que se atormenta com sombras noturnas, que discute com taberneiros, que se isola numa cabana para escrever uma obra imortal, reconstruindo em pleno Estado de São Paulo um verdadeiro mocambo nordestino, e que vai pregar aos homens do povo, aos domingos, o sonho da cidade futura, mais fraternal e mais justa.

Acostumado a não confundir fatos com representações, o intelectual percebeu os aspectos lendários e fantasiosos presentes na narrativa de José Honório, pronunciada, em clima de descontração, enquanto passeavam pela beira do rio. Apesar do sentido irônico do artigo, Bastide procura não ferir os brios dos rio-pardenses, limitando-se a repetir o que ouvira sobre o casebre: foi onde ele escrevia, entre duas ordens, os rascunhos geniais do seu livro, até onde ele passava suas noites trabalhando.

Paschoal Artese, proprietário e redator do jornal Resenha, sempre usou esse veículo de comunicação como trincheira de resistência às inovações introduzidas pelo novo modelo comemorativo implantado no final dos anos 30. Anteriormente, era costume que os organizadores dos festejos fossem escolhidos em reunião convocada pelo Grêmio Euclides da Cunha, onde os contemporâneos do escritor tinham assento privilegiado ao lado de professores e representantes da imprensa. Quando a autoridade municipal passa a nomear uma comissão, pelo critério da confiança, para reger essas festas, a novidade não agrada ao jornalista que passa a criticá-la abertamente. A questão ainda era polêmica em 1945 quando esse ato é reeditado oficialmente. Artese sai a campo, novamente, provocando a demissão de um dos membros nomeados. Manteve essa postura crítica durante toda a sua vida, atraindo muitas antipatias porque contrariava os poderosos do momento. Artese foi protagonista de uma polêmica rumorosa por afirmar que Euclides, além de socialista teórico, participara do clube socialista Os Filhos do Trabalho, fundado em 1900, em São José do Rio Pardo. Sustentava, ainda, que o escritor elaborara os estatutos desse clube. Essas afirmações foram rebatidas por uma pesquisa patrocinada pela Casa Euclidiana publicada em 1960 [xvii], deixando a palavra do jornalista abalada, mas não completamente desacreditada. José Honório de Silos que havia feito afirmação semelhante a Roger Bastide em 1945, acaba recuando e não endossa o depoimento de Artese.

 Dos sobreviventes, Major João Modesto era o que possuía menor capital político e cultural[xviii]. Portador, no entanto, das lembranças mais detalhadas e fiéis que aos outros passaram despercebidas ou que precisavam ser esquecidas. Por circunstâncias pessoais, teve a imagem empalidecida e a importância de sua participação nos acontecimentos foi diminuída. Seu depoimento, feito num momento tão delicado, pode ter sido a forma encontrada para externar ressentimentos ou demonstrar discordância com versões da história com as quais não concordava.

Nas páginas finais do manuscrito datadas de 1939, menciona, em forma de acróstico, os nomes dos que estão ocupando posição de relevo no sistema do poder municipal e na condução do culto euclidiano: Oswaldo Galotti, José Caetano de Lima, Agripino Ribeiro da Silva e Otávio Pereira Leite entre outros. Respaldados por formação superior, esses cidadãos irão determinar novos rumos às comemorações em memória do escritor. Começa aí a era Dr. Oswaldo Galotti, então com 34 anos, período em que, por inspiração desse médico e em função das novas diretrizes políticas e culturais empreendidas pelo Estado Novo, as comemorações passam por um processo de aprimoramento, administradas de forma mais racional e burocratizada.

A partir do momento em que são a ser melhor organizadas e administradas, as festividades atraem nomes importantes da intelectualidade brasileira, contagiando a todos os envolvidos com o sentimento de euclidianidade, característica que identifica a cidade.

A “terra santa” de Euclides

Não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lugar onde te encontras é uma terra santa.

(Êxodo, 3:5)

Estudos demonstram que só o social explica o social[xix] e que para viver no Mundo é preciso fundá-lo[xx] .Quando o texto do Major João Modesto foi escrito, a terra santa de Euclides já estava consagrada como espaço sagrado, que não podia ser profanado. O narrador considera-se guardião da memória desse grande homem, desse herói imolado em nome da honra e das virtudes cívicas. Na ânsia de louvar seu ídolo e de narrar a gênese dos acontecimentos, de acordo com suas memórias pessoais, extrapola, ingenuamente, os limites permitidos e profana esse lugar sagrado, assustando os demais membros dessa confraria de cultuadores de Euclides comprometidos em preservar uma determinada memória fundacional que não era propriamente a de que João Modesto se lembrava.

Que perigos, mágoas e desejos escondem esse discurso a ponto de ser interditado, excluído, ao que parece deliberadamente?

Pela teoria desenvolvida por Durkheim[xxi], os homens criam deuses e depois se tornam dependentes deles. Major João Modesto deseja narrar as maravilhas que presenciou e documentar a convivência que desfrutou ao lado daquele homem excepcional, quase um semi-deus, com tanta familiaridade, que é capaz de se lembrar até de pequenos detalhes de sua existência naquela cidade. Clama em tom de súplica para ser levado a sério, parecendo dizer: eu vi, eu ainda me lembro, eu estive com ele e sei como tudo aconteceu.

No momento em que o mito de Euclides já está consolidado, João Modesto, ingenuamente, pinta um quadro desolador e terrífico daquele lugar sagrado, descrevendo aquele deus criado como um ser comum. Movido pelo desejo de exaltar as transformações operadas por obra e por  milagre de Euclides, retrata esse semi-deus como homem nervoso, agitado, desorganizado, fumante inveterado que transpira por todos os poros como um trabalhador qualquer. Descreve o ambiente da construção da ponte como insuportável, desfazendo a imagem de serenidade e paz que havia sido criada em torno do escritor.

Para a confraria de euclidianos e para os sentimentos de euclidianidade dos rio-pardenses, esse discurso pode ter sido considerado perigoso e desastroso no momento em que se refere ao casebre de zinco, o lugar sagrado Euclides e interpretado como profanador de um território e de verdades consideradas sagradas:

“Fará um juízo errôneo quem supuser que Euclides trabalhava o dia inteiro no seu casebre cheio de cuidados pelos seus Sertões. Poucas vezes ali entrava e pouco se demorava. Não se deixava ficar sob a sombra do seu ranchinho, recostado à sua mesa de trabalho, se ocupando somente com o seu livro. Não.”

Esse não exprime mais que uma negativa. Enfatiza. Funciona como partícula de realce, conferindo mais força, e dando maior expressividade à revelação feita anteriormente, como quem deseja intensificá-la:

Raras vezes entrava no seu escuro casebre, no seu improvisado escritório, por cujas frinchas das folhas de zinco espiava sorrateiramente os trabalhadores que mangavam ou lerdeavam o serviço da ponte, distribuindo reprimendas a todos eles com rude franqueza.

O discurso do Major era inofensivo e inocente apenas para ele. Para os porta-vozes da cidade e da memória oficial, era perigoso porque poderia pôr a perder os planos de tombamento do casebre. Como é a fala que alimenta o mito, a fala do Major, baseada na sua memória pessoal, podia anular o mito criado pela fala oficial, mais política e institucionalizada. Podia prejudicar a memória que ainda hoje é reproduzida e que pode ser observada na  interpretação de Sousa Andrade:

“Ali, junto ao rio,(...) improvisara, à sombra de grande paineira, uma barraquinha de sarrafos e folhas de zinco,(...) na qual só muito raramente não passava o dia inteiro, almoçando, vendo pelas frestas o que se passava fora, ouvindo marteladas em falso, que de pronto censurava.”

Vivemos há muito tempo num mundo dessacralizado. Nada do que foi revelado pelo narrador do manuscrito diminui a importância da obra que aqui foi escrita, nem os méritos do escritor e a grandeza da cidade que se empenha em preservar essa memória há um século. Mentes abertas preferem encarar a realidade e não cultivar imagens ultrapassadas criadas pelo imaginário coletivo. Pouco importa se Euclides ficou muito ou pouco tempo na casinha de zinco, apenas um símbolo da sua presença naquele lugar. Nada muda se raras vezes entrava no casebre, como fala João Modesto, ou se só muito raramente não passava ali o dia inteiro, como afirma o discurso oficial.

Para o Brasil, o mais importante são as coisas que Euclides escreveu em Os Sertões e que ainda hoje não foram resolvidas. Para São José do Rio Pardo, Euclides da Cunha, Os Sertões, a Ponte e o Casebre são realidades vivas, às quais constantemente se recorre como fontes de uma sabedoria prática. Nesse sentido, seria muito proveitoso perguntar:

-         O que seria da cidade sem o ranchinho de Euclides?



 

 

[i] Mircea Eliade, Aspectos do Mito. (Rio de Janeiro, 1989), p. 9.

[ii] Olímpio de Sousa Andrade, História e Interpretação de Os Sertões. (São Paulo, 1960), p. 159.

[iii] Ibid, pp.159 a 164.

[iv] Trata-se do título de um capítulo da obra de Sousa Andrade, no qual se refere à frase escrita por Euclides, a zarcão na frente do barraco: What shall do a man, but to merry? Com essas palavras, Euclides estaria ironizando o desabamento da ponte: Diante de tanto disparate de natureza técnica, (...) que haveria de fazer um homem como ele, senão rir-se? Ibid, p. 179.

[v] Ibid, p. 178.

[vi] Ibid. pp. 178 e 179.

[vii] Alessandro Portelli. O massacre de Civitella Val di Chiana.(São Paulo, 1996), pp. 105 a 106.

[viii] Esse manuscrito com 37 páginas  foi encontrado recentemente sobre o forro da biblioteca de uma escola pública, pela Prof.ª Maria Olívia Garcia Ribeiro de Arruda, de quem recebi uma cópia.

[ix] Maurice Halbwachs, A Memória Coletiva.(São Paulo, 1990).

[x] Alessandro Portelli. O Massacre de Civitella Val di Chiana. (São Paulo, 1996) p. 127.

[xi] Olímpio de Sousa Andrade.História e Interpretação de Os Sertões.(São Paulo, 1960), P. 165.

Carmen Cecília Trovatto Maschietto

 
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