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Euclides e o berço de Os Sertões
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Canudos, a Jerusalém maldita de Conselheiro
2004-03-04 10:01:46

 

Tese de professor da PUC-SP analisa papel da Bíblia no conflito, que tem fortes traços de guerra religiosa

Estátua de Conselheiro: profético

São Paulo - Mais de um século depois de Canudos – e exatamente 102 anos após a publicação de Os Sertões, a epopéia-reportagem de Euclides da Cunha sobre Antônio Conselheiro e seus seguidores –, um professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) levanta a hipótese de que essa guerra não foi só política e social, mas uma guerra religiosa.

“As constantes citações da Bíblia que acompanham o conflito não eram arquétipos literários, mas a tradução de um pensamento, o reflexo de uma percepção de vida e de futuro”, afirma Pedro Lima Vasconcellos, autor de Terra das Promessas, Jerusalém Maldita, título da tese que defende no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais.

Nenhuma novidade com relação à influência do sagrado na campanha – da pregação do penitente Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, à devoção de seus seguidores, que lutaram até o último homem, e até a última mulher e a última criança, na certeza de que o céu seria a recompensa para o martírio. Nova é a constatação de que as referências bíblicas são mais numerosas e mais conscientes do que se imagina.

Ligação explícita

“Nem mesmo o professor José Calasans, o maior especialista em Canudos, acreditava que essa ligação fosse tão explícita, pois ele achou minha hipótese interessante, mas não me animou muito, quando lhe expus o projeto da tese”, revela Vasconcellos, ao lembrar as dificuldades iniciais da pesquisa. Apesar de cético, Calasans apontou um caminho – o livro Só Deus É Grande, a Mensagem Religiosa de Antônio Conselheiro, do padre Alexandre Otten.

Vasconcellos, que não havia lido ainda Os Sertões, mergulhou na história do arraial de Belo Monte e da luta dos sertanejos fiéis ao Senhor Bom Jesus contra as tropas da recém-proclamada República. Estudou o perfil do Conselheiro e analisou, com sua lente de exegeta, a doutrina desse pregador – “um gnóstico bronco”, na definição de Euclides da Cunha – que tanto incomodava o arcebispado de Salvador e o governo da Bahia.

Uma das primeiras descobertas do doutorando da PUC foi uma citação do sertanejo Ezequiel Pereira de Almeida, que em carta a um ‘compadre’, em abril de 1897, apontava Canudos como terra de salvação. “Quem não quiser ser deportado mais tarde chegue à Barquinha de Noel, pois é o Belo Monte, não outro.” Euclides da Cunha se refere à carta em sua Caderneta de Campo, na qual fazia anotações como repórter do Estado.

Cenas bíblicas

“Nas reportagens, que o jornal publicou na série Canudos, Diário de Uma Expedição, em setembro e outubro de 1897, Euclides cita personagens e registra episódios que confirmam as referências bíblicas de Canudos”, observa Vasconcellos. Lendo Os Sertões, ele ficou surpreso, ao ver que o engenheiro, escritor e repórter foi muito além. “Apesar de positivista e agnóstico, Euclides também ligou cenas e diálogos da guerra a passagens do Antigo e do Novo Testamento.”

Referência preciosa e obrigatória, Euclides da Cunha foi apenas uma das fontes da pesquisa acadêmica do doutorando da PUC. “De dois manuscritos deixados pelo Conselheiro, um de 1895 e outro de 1897, o primeiro continua inédito”, informa o doutorando da PUC, que teve acesso aos originais e transcreve alguns trechos deles na tese. Trata-se de uma cópia do Novo Testamento, em letra caprichada, que vai do Evangelho de São Mateus à Carta aos Romanos, de São Paulo. O trabalho foi interrompido provavelmente por causa da visita do frade capuchinho.

O segundo manuscrito, de 628 páginas, só foi publicado em 1974, quando o professor Ataliba Nogueira o reproduziu em livro, com a convicção de que ali se retratava a verdadeira figura do líder de Canudos. Dividido em quatro partes, nas quais Antônio Conselheiro medita sobre as 29 dores de Nossa Senhora, comenta os dez mandamentos, transcreve versículos da Bíblia e prega sobre vários temas (cruz, missa, confissão, a construção do templo por Salomão...), o manuscrito termina com uma despedida.

Versículos em latim

“É um texto tocante, no qual Antônio Conselheiro diz adeus às aves, às flores e às pessoas”, disse Vasconcellos. “Nunca se esqueçam desse penitente”, eram essas as últimas palavras do profeta de Canudos. Desses escritos se pode concluir que ele não era tão bronco e ignorante como se pintou, pois citava em latim versículos bíblicos selecionados conscientemente, como observou o padre Alexandre Otten.

Merecem também atenção as profecias que prenunciavam o juízo final. “Em 1896 há de rebanhos mil correr da praia para o sertão; então o sertão virará praia e a praia virará sertão. Em 1897, haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho. Em 1898 haverá muitos chapéus e poucas cabeças... Em 1900 se apagarão as luzes...”

A conclusão de Vasconcellos é que, independentemente da fonte, as referências bíblicas de Canudos foram significativas para a definição do conflito. Uma guerra de cosmovisões sob o comando de um líder religioso, o penitente Antônio Conselheiro.

 
José Maria Mayrink
 
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